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A interpretação não é uma atividade inventada pelos teóricos da literatura do século xx — é o que alerta Umberto Eco. A interpretação, tanto de textos em geral quanto de comportamentos, gestos, obras de arte ou obras políticas, deriva da tarefa religiosa primeira: instituir o significado da Palavra de Deus, através da leitura criteriosa e autorizada da Bíblia.

No princípio, só poderia haver uma interpretação correta de cada texto; restava encontrá-la. Esta origem do ato de interpretar acabou por deixar alguns problemas para o presente. Há leitores que ainda acham, biblicamente, que só se possa encontrar uma e apenas uma interpretação correta para cada texto, assim como existem leitores que defendem, com ardor, o seu direito à interpretação livre, entendendo que cada pessoa tem a sua interpretação, pessoal e intransferível. Ambos os grupos incorrem em equívoco.

Por um lado, não há uma interpretação única sequer para a própria Bíblia — por isso, surgiram as religiões protestantes, que traduziram os textos sagrados para as línguas vulgares, de modo a facultar a leitura e a interpretação dos fiéis. Por outro lado, construir uma interpretação pessoal do que quer que seja não é de modo algum uma tarefa automática: leu, interpretou. Depende, antes de mais, de respeito ao texto que se lê e aos contextos, quer do texto, quer do momento em que se lê. Na maioria das vezes, o que se chama de “minha interpretação” não passa de um aglomerado desorganizado de clichês e citações alheias, lidas e ouvidas de passagem, sem digestão, sem trabalho pessoal de construção.

O próprio Umberto Eco contribuiu, sem querer, para a arrogância do leitor que acha que a sua interpretação é válida apenas por ser sua. No seu livro Obra aberta, defendia o papel ativo do intérprete na leitura de textos dotados de valor estético. Alguns muitos leitores, entretanto, se sentiram autorizados a exercerem um papel ativo demais, subestimando o fato de que a leitura aberta defendida por Eco era uma atividade provocada por uma obra e visando à sua interpretação. Ele estudava a dialética entre os direitos dos textos e os direitos de seus intérpretes — mas, de algum modo, os direitos dos intérpretes terminaram superdimensionados.

Em Interpretação e superinterpretação, publicado três décadas depois, Eco alertava: “Dizer que a interpretação é potencialmente ilimitada não significa que a interpretação não tenha objeto e que corra por conta própria. Dizer que um texto potencialmente não tem fim não significa que todo ato de interpretação possa ter um final feliz.” Mesmo que, como maliciosamente sugerira Todorov, um texto fosse apenas um piquenique onde o autor entrasse com as palavras e os leitores com o sentido, ainda assim as palavras trazidas pelo autor configuram um conjunto embaraçoso de evidências materiais “que o leitor não pode deixar passar em silêncio”.

Se não há, para cada texto, uma única interpretação correta, e se a interpretação de cada leitor também não é necessariamente correta, o problema de como interpretar bem persiste. A origem místico-religiosa do ato de interpretar pode ajudar a resolvê-lo.

No estudo dos textos e dos símbolos sagrados, os hermeneutas (o nome erudito daqueles que procuram por significados ocultos) enfrentavam o fato perturbador de que cada livro possuía alguma verdade, ao mesmo tempo contraditória em relação a outros livros. Não se sentiam bem para fazer como o califa da lenda, que teria ordenado a destruição da biblioteca de Alexandria com base no argumento de que ou os livros diziam o mesmo que o Corão, e neste caso eram supérfluos, ou então diziam algo diferente, e neste caso eram errados e perniciosos. Preferiam entender que, se os livros falam a verdade mesmo quando se contradizem, então cada uma de suas palavras deve ser uma alusão, uma alegoria: cada um deles conteria uma mensagem que nenhum deles jamais seria capaz de revelar sozinho. Em outras palavras, a verdade da interpretação se encontraria no processo, antes que no objeto ou no sujeito. Não é a interpretação de um livro por um leitor que tem o poder de estabelecer a verdade, mas sim o conjunto de relações entre interpretações e leitores, entre textos e contextos.

Como estabelecer por inteiro semelhante conjunto de relações é humanamente impossível, resta aceitar a primeira concepção de Umberto Eco, que entendia toda interpretação como potencialmente ilimitada e infinita. Isto não é simples, justamente porque o desejo de quem interpreta é o de chegar à verdade última e definitiva; é o de descobrir o tesouro do sentido, e não ficar construindo interminavelmente, babelicamente, o significado e as relações. Este conflito, esta contradição, torna toda interpretação suspeita.

A acusação menos grave que pode pesar contra uma interpretação é a de “malversação do sentido”, isto é, de dizer pelo texto o que o texto não tinha intenção de dizer. A acusação mais grave é a de “hybris”, vale dizer, de arrogância desmedida, por meio do seu afã de tudo-dizer — de tudo pretender esgotar, de modo a que não haja outra interpretação para o futuro. E a constatação mais perigosa é a de que é possível interpretar tudo.

É possível interpretar os sonhos, por exemplo, mas, ao mesmo tempo, muito perigoso, se não respeitadas condições mínimas de atenção e respeito. Experimente-se contar um sonho numa mesa de bar ou numa sala de jantar, para incontinenti se observar os circunstantes constrangidos, desviando os olhos, impacientemente esperando a menor pausa para contar seu próprio sonho e por sua vez constranger os demais. O constrangimento se amplia e torna-se invencível, quando entre os presentes alguém tenta interpretar o sonho do outro, aplicando com falsa segurança uma psicologia reduzida ao vulgar.

A interpretação de textos bíblicos, como sabemos, costuma provocar a multiplicação dos templos, uma vez que a maioria das interpretações se esforça por excluir as demais, coerente com a necessidade de tudo-dizer — que implica o desejo de a todos calar. A interpretação de textos literários, por sua vez, dinamiza o conflito de um modo específico: enquanto interpretar pressupõe tudo-dizer e tudo-esgotar, no estilo “jura revelar toda a verdade, nada mais do que a verdade, somente a verdade”, a literatura pressupõe momentânea suspensão justo do que quer que se entenda por “verdade”, para melhor perspectivizar as possibilidades de saber.

É este conflito que torna a interpretação uma tarefa delicada. Willen de Kooning disse, numa entrevista: “O conteúdo é um vislumbre, um encontro como um lampejo. É muito pequenino — um conteúdo muito pequenino.” A partir de Kooning, a escritora Susan Sontag produziu um trabalho exatamente contra a interpretação, questionando a tendência a separar, na obra de arte em geral, na literatura em particular, a forma do conteúdo, atribuindo caráter acessório à forma e essencial ao conteúdo. O projeto da interpretação reforça a ilusão de que algo chamado conteúdo não somente existe, como é imensamente mais importante, maior e mais profundo do que a aparência, isto é, do que sua forma.

“O que o autor quis dizer? ” — encontramos essa pergunta pouco inteligente, apoiada no dogma do conteúdo, nos manuais e nos testes de todos os graus de ensino. “O que o autor quis dizer?” — a resposta do aluno entediado e mal educado pode ser, todavia, a resposta mais correta: “sei lá!”; ou: “como é que eu vou saber? ” O autor, usualmente, não se encontra presente, em alguns casos faleceu há quatro séculos e três décadas, logo deveria ter respeitado o seu direito mínimo de não ter palavras ou “mensagens” postas à sua revelia na pena ausente. O máximo que o leitor, aluno ou professor, pode entender do texto, é o que ele mesmo, com suas determinações de idade, classe social, sexo e história pessoal, com seus condicionamentos culturais, políticos, micropolíticos, por extensão, históricos, se tornou capaz de entender. O autor, que foi o responsável pela escritura do texto, não pode ser responsabilizado in totum pelas leituras e pelos leitores. A cada um, sua parte.

É para esta perspectiva que Oscar Wilde chama a atenção, no seu prefácio a The picture of Dorian Gray: “It is the spectator, and not life, that art really mirrors” — é o espectador, e não a vida, que a Arte realmente reflete.

Como o espectador não é um, nem único, nem contempla o espetáculo em apenas um momento de apenas um lugar, de apenas um ponto de vista, não pode haver mesmo uma verdade última, a do autor. O intérprete, no entanto, insistirá: “não se percebe que X em realidade é — ou quer dizer — A? Que Y é em verdade B? Que Z é de fato C?” A interpretação pressupõe discrepância entre o significado do texto e as exigências dos leitores (posteriores); ela teria começado quando um texto antigo, por alguma razão, se tornara inaceitável mas não pôde ser desprezado. Precisa ser inserido na tradição por meio de uma tradução: o intérprete, sem pretender apagar ou reescrever o texto, termina por alterá-lo, sem contudo admiti-lo. A tarefa da interpretação equivale, portanto, à da tradução (que, por sua vez, equivale, em certo nível etimológico, tanto a tradição quanto a traição).

A interpretação que escava debaixo do texto, para desenterrar o sentido que se encontraria soterrado, termina por não só lhe tirar parte do chão como por afetar sua superfície, machucada pelos instrumentos de escavação. O fenômeno, sabe-se hoje, não é exclusividade da leitura de textos literários. O físico Heisenberg deduziu a sua Lei da Incerteza da observação do comportamento das partículas subatômicas, submetidas a feixes de raio laser para medir-lhes a velocidade; com o tempo, percebeu-se que o instrumento utilizado para aferir a velocidade daquelas partículas afetava, quer dizer, modificava, justo a velocidade que se queria “medir”.

A descrição de um fato — lingüístico, físico, social, estético, tanto faz — não apenas consagra seu conhecimento, mas, principalmente, produz este conhecimento. Em outras palavras: a verdade que se quer saber é a verdade que se vai construir (em termos populares: quem procura, acha). O sociólogo que faz entrevistas e enquetes na favela modifica, para curso tão imprevisto quanto subterrâneo, os hábitos e as regras da favela que queria descrever (com a vã pretensão de ele mesmo não existir ou marcar diferença). O antropólogo que visita um povo isolado não pode mais considerar este povo como… isolado. Sociólogo e antropólogo tornam-se aspectos cruciais dos fatos que querem descrever, tornam-se sujeitos que pertencem a seus objetos.

Para Susan Sontag, há uma minoria de casos em que a interpretação configura-se como um ato liberador, “uma forma de rever, de transpor valores, de fugir do passado morto”. A maioria das interpretações atuais, porém, seria “reacionária, impertinente, covarde, asfixiante.” Neste caso, a interpretação deveria ser condenada: “a Arte verdadeira tem a capacidade de nos deixar nervosos. Quando reduzimos a obra de arte ao seu conteúdo e depois interpretamos isto, domamos a obra de arte.”

Encontramos, no pensamento da escritora, além de um certo romantismo ingênuo, determinada tensão, grave, de que não se deve tentar escapar. Interpretar para transpor valores, para pensar à frente, para aceitar o desafio proposto pelo texto artístico, tomando-o como trampolim de desejo e de futuro, ou: interpretar para controlar a imaginação, trancando-a em chaves convenientes de compreensão, estruturais, psicanalíticas, sociológicas, lá o que seja.

Tomar o desafio proposto pelo texto artístico como trampolim de desejo e de futuro é o caminho apontado por Vilém Flusser, filósofo tcheco que morou muitos anos no Brasil. Flusser vê duas possibilidades fundamentais para a apreciação de uma dada obra literária: tentar compreendê-la como resposta, ou tentar enfrentá-la como provocação.O campo da primeira tentativa é a crítica, onde se analisa a obra, entendida como uma síntese das provocações às quais esteve exposto o intelecto dentro do qual a obra surgiu. Deste modo, a obra é uma resposta aos textos e aos contextos anteriores e/ou contemporâneos a ela mesma. Cabe à crítica tão-somente, embora não seja uma tarefa simples nem fácil, explicitar este diálogo daquela obra determinada com seu tempo. Para tanto, a crítica não precisa, necessariamente, pensar o próprio tempo e as próprias condições em que se exerce. Ao campo da crítica corresponde a atitude da curiosidade.

O campo da segunda tentativa é a especulação, onde a obra será experimentada como mensagem enviada em nossa direção pelo intelecto dentro do qual a obra surgiu. Deste modo, a obra é uma provocação, exigindo um leitor menos desejoso de compreendê-la, porque mais disposto a partir dela em direção a outra coisa, ou seja, mais disposto a tomá-la como trampolim, como ponto de partida, do que como piscina de conteúdos, do que como ponto de chegada. Ao campo da especulação corresponde, portanto, a atitude da simpatia, no sentido grego da palavra: co-vibração.Esta palavra, “simpatia”, pertence ao mesmo campo das palavras “respeito”, “atenção” e “cuidado”. No campo antônimo, encontraremos rapidamente “desrespeito”, “desatenção”, “estupidez”. De resto, sabemos: uma pessoa que esteja sempre falando “a verdade”, doa a quem doer, independente do contexto, do texto ou do outro, é logo reconhecida como, no mínimo, mal-educada.

Alain Badiou alerta: o Mal, com esse M maiúsculo, é, afinal, “o desejo de Tudo-dizer”. Porque uma verdade só se pode mostrar como subconjunto de uma situação, esta sim, que não se pode dizer toda. A ética de uma verdade se sustenta numa “espécie de comedimento em relação a seus próprios poderes”. Como termina por reforçar o personagem-narrador do romance de Isaías Pessoti: “Nenhum amor sobrevive à palavra, mas nenhum poder prescinde dela.”Vale dizer, nenhum amor sobrevive à palavra completa, ao conte-me tudo não me esconda nada, à insistência em escavar todas as “verdades”, em perguntar diariamente “mas o que é que você está pensando agora”, ou, “o que é que você pensou naquele momento”. Porque essa insistência não é amor, ou pelo menos não é só amor, se vem melada de um certo tipo de desespero que se traveste de suficiência, para melhor esconder a necessidade de controle, isto é, do poder — que não pode, este sim, prescindir da palavra exposta (como uma fratura, ou uma confissão).

Ora: o que vale para o amor vale para a teoria da literatura, ou para toda leitura (de livros, ou de mundo). Se quero o outro (seja o outro amante, seja o outro objeto do conhecimento pretendido, por exemplo um livro) como mero meio para ampliar o meu poder, então sem dúvida não posso prescindir da palavra completa, sem cortes, sem paradoxos, sem humor — sem algum nível de suspensão, ou de suspeição, do sentido. Entretanto, se quero o outro, à moda de Kant, como fim em si mesmo (e não como meio para satisfazer os meus interesses, ou os interesses de determinada ideologia), devo aprender a difícil arte de, mesmo que com palavras, buscar o silêncio (e um sorriso fino).

O alerta de Nietzsche é emblemático: “O que é então a verdade? Uma multiplicidade incessante de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em síntese, uma soma de relações humanas que foram poética e retoricamente elevadas, transpostas, ornamentadas, e que, após um longo uso, parecem a um povo firmes, regulares e constrangedoras: as verdades são ilusões cuja origem está esquecida, metáforas que foram usadas e que perderam a sua força sensível, moedas nas quais se apagou a impressão e que desde agora não são mais consideradas como moedas de valor, mas como metal.”

A chamada “verdade” corresponderia a um conjunto de palavras que emergiu de uma experiência original, única, absolutamente singularizada no espaço e no tempo. Mas as palavras, forçosamente, não devem e nem podem servir de forma precisa à experiência singular, assim como o mapa de uma cidade por definição não pode conter a indicação de todos os acidentes, todos os becos, todos os prédios, todas as rachaduras do asfalto de todas as ruas, sob pena de alcançar o mesmo tamanho, a mesma área, da cidade que pretendia mapear — quando se tornaria não apenas de manipulação impossível, como de utilidade absolutamente dispensável.

As palavras, ou, de modo um pouco mais preciso, os conceitos, nascem da identificação do não-idêntico — isto é, nascem para viver como lembrança que deve servir ao mesmo tempo a inúmeras experiências análogas, mas jamais idênticas. Assim como nenhuma folha será perfeitamente idêntica a nenhuma outra, o conceito “folha” não encontra correspondência ponto a ponto em nenhuma folha de nenhuma árvore (ou, de nenhum caderno).

Todas estas restrições filosóficas não nos permitem, entretanto, condenar a interpretação à morte. Este, na verdade, é o seu tempo. Condenada, ela rirá de nós, e nos obrigará, ainda por cima, a interpretar o seu riso. Como solucionar, então, o conflito entre a interpretação, que pressupõe tudo-dizer e tudo-esgotar, e a literatura, que pressupõe momentânea suspensão das verdades?

Como costuma acontecer, o problema contém a solução na sintaxe de sua formulação. Deve-se manter a questão, e o conflito, ativos e abertos. Um projeto inteligente de interpretação recua diante da interpretação final, sob pena de negar seus próprios termos. Mesmo que o ato de escrever tente preencher um vazio, ele não pode se comprometer com projeto de acabar com o vazio — o enigma que o motiva precisa de proteção e salvaguardas. De igual modo, a interpretação deve, através da sintaxe, do estilo e do método, proteger suas conclusões, para preservar tanto o enigma do texto quanto a interpretação do outro.

{bibliografia}

Alain Badiou. Para uma nova teoria do sujeito: conferências brasileiras [1994]. Friedrich Nietzsche. Das Philosophenbuch: Theoretische Studien. Isabele Stengers. Quem tem medo da ciência? [1990]. Isaias Pessoti. Aqueles cães malditos de Arquelau [1993]. Oscar Wilde. Complete works [1981]. Susan Sontag. Against interpretation [1961]. Umberto Eco. Opera aperta [1962]. Umberto Eco. Interpretation and overinterpretation (1992). Vilém Flusser. “Esperando por Kafka”; in revista Comentário [1963].