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Termo decorrente da filosofia de Kant, mais concretamente da impossibilidade da experiência do objecto tal como é em si próprio pelo sujeito. Tal facto originou uma outra dimensão entre os sujeitos, ou seja, a intersubjectividade.

A fenomenologia de Edmund Husserl, filósofo alemão responsável pelo conceito de “intencionalidade” e de consciência como um encontro entre sujeito e objecto, constituiu igualmente uma tentativa de ultrapassagem do solipsismo decorrente da separação entre o eu e o outrem (quando encarados como duas substâncias isoladas). A ideia de uma separação entre estes dois termos epistemológicos é abandonada a favor do conceito da “intencionalidade” da consciência, partindo-se da noção da existência dos objectos apenas como objectos da consciência do sujeito, pelo que a consciência é sempre a consciência de alguma coisa. Segundo Husserl, a “intencionalidade” diz respeito à direitura da consciência em relação aos seus objectos, à forma como o conhecimento é posicionado, perspectivado e activo, constituindo os seus objectos. A teoria da “intencionalidade” defende que a percepção procede por “aspectos”, sendo esta sempre inerentemente incompleta, porque qualquer objecto é sempre apreendido a partir de um ponto de vista determinado e bem definido. Assim, aquilo que é observado revela—se através do acto de percepção por meio dos aspectos dependentes da atitude e da determinação do ponto de vista do observador. Há uma correlação entre esses aspectos observados e o ponto de vista do observador. Este papel dos “aspectos” na percepção implica um conhecimento temporal, caracterizado por “horizontes”, sendo que a percepção se processa a partir de hipóteses subentendidas acerca daquilo que está para além dos horizontes. Desta forma, a compreensão é sempre guiada pelas expectativas criadas e liga-se à questão da parte e do todo, pelo que a compreensão da parte se faz pela consciência do todo a que pertence, embora a compreensão do todo só se processe a partir das partes que o compõem.Assim, a teoria da “intencionalidade” desperta o problema da existência de outros sujeitos, porque, por um lado, não é possível percepcionar a experiência de outra pessoa para si mesma e, por outro lado, a consideração dos “horizontes” da percepção implica a assunção de que os aspectos apreendidos por um observador se relacionam com aqueles percepcionados por outros observadores a partir de outros pontos de vista. As divergências entre ambos mostram que a percepção é intersubjectiva, porque revelam a dependência entre os vários observadores, bem como o isolamento de cada um face aos outros (solipsismo). A intersubjectividade reside no facto de o mundo ser partilhado por vários observadores e, como tal, o conhecimento baseado nos limites dos horizontes e naquilo que se subentende para além desses horizontes necessita de confirmação intersubjectiva.

Roman Ingarden, filósofo e teórico literário, aplicando a fenomenologia de Husserl ao estudo da literatura, considera a existência da obra literária como objecto apresentado à consciência. Para Ingarden, o objecto estético é uma realização do conteúdo de uma dada ideia da mente do artista, o qual teve igualmente de criar os meios necessários à realização desse conteúdo, ou seja, a obra de arte correspondente. Assim, a existência do texto literário depende do acto intencional, no sentido que Husserl atribui à palavra, do seu criador. Mas, essa existência depende também do acto intencional do leitor, porque a obra literária é “um objecto intencional e intersubjectivo” que tem a sua origem nos actos de consciência do autor, os quais são preservados pela escrita, actos esses que são reanimados pela consciência do leitor. Porém, a obra tem, paradoxalmente, uma história para além da consciência que a originou e da consciência de um leitor individual. Novamente, os limites dos horizontes referidos por Husserl intervêm no conhecimento da obra de arte, sendo que esta nunca é idêntica à intencionalidade do autor e do leitor e, como tal, nunca está totalmente dependente da consciência de ambos. A obra de arte baseia-se nessas consciências, mas transcende-as, existindo para além delas. Por exemplo, a existência de uma dada personagem depende de frases específicas de um texto, mas existe para além delas, pelo que é possível falar dessa personagem sem recordar todas essas frases do texto. A transcendência da obra de arte face às consciências que nela intervêm decorre da sua intersubjectividade e, desta forma, permite a confirmação e o confronto das várias visões da mesma. O carácter intersubjectivo da obra literária deu origem a dois tipos de teorias: as teorias orientadas para a presença do autor no texto e as orientadas para o modo de ler e para o papel do leitor. No entanto, as ligações entre estas teorias são suficientemente fortes para que se torne difícil uma demarcação rígida entre ambas.

O crítico fenomenologista, Georges Poulet, vê o texto literário como a corporização da consciência do autor, pelo que a leitura mais legítima será aquela em que o leitor alcançar identificação com essa consciência. Sendo que qualquer texto literário parte de um acto de consciência, o leitor terá também ele um ponto de partida que será o cogito do autor, rediscobrindo a maneira de pensar e de sentir apresentada no texto, bem como a forma como esta se origina e apresenta, tal como os obstáculos com que se depara. Ler é descobrir o cogito do autor.Por seu turno, Jean-Paul Sartre defende a presença de uma “escolha original” através da qual o autor define a sua existência. Tal relaciona-se com a sua concepção de liberdade, ou seja, a definição da existência pela forma como esta ultrapassa as suas condições presentes com vista a um futuro não totalmente controlável ou determinado. Porém, a grande ameaça face à liberdade provém da existência de outros sujeitos, mais concretamente da ideia de que a ligação fundamental do sujeito com outrem-sujeito se reduz à permanente possibilidade do primeiro ser visto por esse outrem, pelo que a captação do ser-sujeito do outrem tem lugar na e pela revelação do ser-objecto do sujeito para esse outrem. Assim, perceber é olhar e é tomar consciência de ser olhado. A liberdade de outrem é revelada ao sujeito através da indeterminação do ser que o sujeito é para esse outrem e este facto implica uma luta entre ambos, no sentido de uma ameaça constante às auto-definições de cada um. Desta forma, a leitura da existência do autor é a leitura do meio pelo qual ele usa a sua liberdade face a outrem.

No âmbito das teorias orientadas para o papel do leitor, é de salientar novamente o trabalho de Roman Ingarden, segundo o qual a obra literária é um todo esquemático que tem pontos de indeterminação, pontos esses que são preenchidos pelos leitores. Como qualquer outro objecto, o texto literário apresenta-se apenas a partir de aspectos e, como tal, através de visões incompletas. De acordo com Ingarden, as várias concretizações de uma dada obra são reguladas por certos limites de variabilidade predeterminados pela estrutura dessa mesma obra.

Numa fase mais recente do seu pensamento, Wolfgang Iser virá a contestar a teoria de Ingarden, considerando a leitura como um processo de descoberta, no qual as surpresas, frustrações e inversões desencadeadas pelas disjunções numa obra literária provocam a reflexão acerca das pressuposições do leitor. Assim, para Iser, a leitura é uma actividade mais dinâmica do que o simples preenchimento de pontos de indeterminação no texto, rejeitando a ideia de que o sentido é algo escondido nesse texto.

Hans Robert Jauss, crítico ligado à Teoria da Recepção, recuperando a ideia de um conhecimento temporal, caracterizado por horizontes, vê a leitura como alteração nos horizontes do leitor, em consequência da disparidade existente entre o seu horizonte de expectativas e o horizonte da obra. Jauss utiliza o conceito de “fusão de horizontes” introduzido por Hans-Georg Gadamer, um dos críticos mais importantes da Hermenêutica moderna, segundo o qual existe uma fusão entre as experiências encerradas no texto e os interesses actuais dos leitores, o que implica, por parte do autor, a sujeição a várias formas de compreensão, diferentes daquelas previstas por ele.

No contexto da Teoria da Resposta do Leitor, David Bleich, partindo do carácter intersubjectivo da obra literária e da possibilidade da ocorrência de várias interpretações de um mesmo texto, considera a interpretação como uma construção da mente do leitor, pelo que a literatura adquire significado a partir dessa mesma construção. A obra literária é então vista como um objecto simbólico e as várias interpretações são aceites como “verdadeiras”, porque reflectem os valores subjectivos de uma dada comunidade de leitores. Como tal, o estudo da literatura está dependente do estudo das pessoas que nela intervêm: o autor e o leitor. Para o autor, a obra literária é a resposta à sua experiência de vida, e para o leitor, a interpretação dessa obra literária é a resposta à sua experiência de leitura. Ambas as respostas deverão ser sempre tidas em conta no estudo da literatura.

Finalmente, é de retomar o papel da fenomenologia hermenêutica na compreensão dos objectos culturais, entre os quais se inclui a literatura, como práticas reveladoras de um esforço e de um desejo de ser, de existir. Paul Ricoeur vê a intersubjectividade dos objectos culturais naquilo que eles têm de social, sendo estes decorrentes da forma como uma dada comunidade se compreende a si própria. Os objectos culturais revelam as visões do mundo e do ser humano das comunidades que os produziram. No plano da análise literária, a noção de “conflito de interpretações” reflecte a aceitação de diferentes métodos de compreensão, pelo que a linguagem tem o papel de mediador das várias intencionalidades (novamente no sentido que Husserl dá ao termo). Para Ricoeur, cada indivíduo tem a possibilidade de fazer algo de novo com aquilo já existente, procurando novas formas de significação.

Concluindo, o abandono de uma separação entre o sujeito e o objecto e a afirmação da construção mútua dos dois termos epistemológicos tem como consequência as várias tentativas de reformulação do solipsismo que teria confinado o sujeito à sua própria realidade. A ideia da inexistência de sujeitos e objectos puros cria a necessidade de uma relação entre os vários sujeitos-objectos, relação essa que se baseia na confirmação e no confronto do seu modo de ser no mundo. É através da linguagem que se produz essa relação múltipla assente na subjectividade dos vários intervenientes num processo de partilha de expectativas. Assim, em última instância, essa outra dimensão entre os sujeitos a que se dá o nome de intersubjectividade contribui para abalar a concepção de uma verdade objectiva, fazendo da relatividade um processo de conhecimento, cuja utilidade provém da constante reformulação das convicções subjectivas. No campo da literatura, deixa de fazer sentido a defesa de uma única teoria baseada na objectivação absoluta do texto literário, pelo que a problematização e a discussão se apresentam como os caminhos mais viáveis para a apreensão da obra literária como um objecto eminentemente simbólico.

{bibliografia}

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