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1. A palavra arcaica anglo-francesa jouissance, retomada e ampliada por Jacques Lacan no seminário sobre “Deus e a jouissance de A mulher”, sugere traduções interpretativas tão subtis como “orgasmo”, “gozo”, “fruição” “prazer”, “satisfação”, “posse”, “apetite” ou “desejo”. Em português, o termo tem sido traduzido por “gozo”, no entanto, tal tradução carece de uma mais precisa definição: “Gozo” (do espanhol goce, que, por sua vez deriva do latim gaudium para “júbilo, fruição”), ao equivaler-se a jouissance terá de traduzir gosto, prazer; posse ou uso de alguma coisa de que advêm satisfação, vantagens, interesses; deleite sexual, prazer, orgasmo. O sentido para onde também nos arrasta o termo, significando zombaria, desdém ou menosprezo por alguém, é antípoda do sentido lacaniano de jouissance, que não encontra realização fora do contexto sexual. Distingue-se de “prazer”, porque este, segundo Freud, embora motor de toda a actividade psíquica, é apenas um breve momento entre o desejo e a satisfação do desejo, assinalando desta forma um equilíbrio homoestático de um organismo submetido a uma tensão, que ele procura manter a um nível o mais baixo possível. A jouissance transgride este limiar de homeostase e “coloca-se” para além do princípio de prazer. Em francês, o termo tem ainda uma forte conotação sexual (que se perdeu em inglês, por exemplo, onde hoje é normalmente traduzido por “enjoyment”), significando literalmente “orgasmo”, porém há uma diferença entre ambos que se pode avaliar pela realidade quântica do orgasmo em oposição à impossibilidade de se quantificar a jouissance. Esta é precisamente o prazer que deixou de ser possível quantificar e ficou em excesso. Se a jouissance ordinária se atinge por ejaculação, a jouissance é uma jaculação, isto é, um arremesso para o infinito e, ao mesmo tempo, um arremesso interminável. Se o prazer é desejo que obedece a um princípio de constância, a essa tendência do homem para reduzir as suas tensões através da satisfação do desejo, a jouissance é tudo o que não permanece e tudo o que não permanece pré-ocupa-nos de tal forma que o prazer se torna numa proibição para não irmos além de um certo limite de jouissance. Isto conduz a um certa tensão que é aquele sentimento de impotência perante a morte que todos experimentamos e que ameaça tornar-se o centro da vida – em tudo equivalente ao instinto de morte que Freud identificou como o instinto por excelência por ser o que tende a reduzir completamente todas as tensões por via da autodestruição. Este é o caminho da jouissance original: a pulsão de Tanatos (a personificação mitológica da morte a que Freud recorre para ilustrar o instinto de morte) regula a actividade psíquica de todo o sujeito em conflito consigo mesmo.

No citado seminário “Deus e a jouissance de A mulher”, Lacan afirma que A mulher não existe, isto é, enquanto realidade sexual (a maiúscula do artigo, que traduziria essa realidade, está anulada pela possibilidade universal que o artigo definido lhe concederia, pelo que este surge lacanianamente cortado), a mulher tem apenas o valor de uma fantasia. Isto significa que a relação sexual assim entendida é o resultado de um só indivíduo. Contraposta a esta posição fantástica da mulher, Lacan propõe o conceito de jouissance, esse momento em que a sexualidade é assumida como um excesso que ultrapassa em significado o universo fálico. O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, ilustra na perfeição o princípio da jouissance da mulher. “Concupiscência”, ou apetite sexual ou desejo intenso de gozo, é o termo de Eça que corresponderá à jouissance. As palavras que Eça destaca – “gozo, delícia, delírio, êxtase” – são significantes da jouissance e determinarão toda a dialéctica do desejo n’O Crime do Padre Amaro. A seguinte cena dá-nos a linguagem da jouissance: “Numa cela do seminário, tendo por testemunha suspeita uma imagem da Virgem, Amaro ficava todo nervoso: sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir, e, no fundo das suas imaginações e dos seus sonhos, ardia, como uma brasa, silenciosa, o desejo da Mulher.” (O Crime do Padre Amaro, Obras Completas de Eça de Queiroz, vol.4, Círculo de Leitores, Lisboa, 1980, p.29).

Este é, portanto, o tipo de comportamento que vemos em Amaro, que deixa marcas profundas à medida que o romance progride. A mais conseguida expressão da jouissance encontra-se na frase dos «Cânticos de Jesus»: «Oh! Vem, amado do meu coração, corpo adorável, minha alma impaciente quer-te!» (p.84), em que a significação é dada pela tripla sequência: Vem > quer-te / amado > adorável > impaciente / coração > corpo > alma. Aqui vemos prefigurada a linguagem da pulsão sexual. Convém esclarecer o termo “pulsão”, fundamental para a sexualidade. O que a leitura do «Cântico de Jesus» nos ensina é que a pulsão pode ser sublimada, sendo o seu objecto indiferente, pois é mais importante o processo de formação da pulsão do que propriamente aquilo a que ela nos leva. Interessa-nos mais o apelo transcendente transcrito dos «Cânticos» do que o objecto a que ele se refere. A pulsão assim transmitida, começando na forma apelativa “Vem” leva-nos a um nível de imensuralibilidade que é precisamente o que Lacan chama jouissance (formada do verbo do calão francês jouir, “vir-se”) e Eça repetidas vezes invocou como “concupiscência”.

Falamos do mesmo êxtase que o maior arquitecto-escultor do séc.XVII, o italino Bernini, esculpiu no famoso grupo O Êxtase de Santa Teresa, na Igreja em Roma de Santa Maria della Vittoria. Lacan, no citado seminário sobre a jouissance de Deus e da Mulher, diz: “… apenas temos que ir ver a estátua de Bernini a Roma para compreender que ela [Santa Teresa d’Ávila] está a vir-se, não há dúvida. E o que é a sua jouissance, o que é esse estar a vir-se? É claro que o principal testemunho dos místicos é o facto de estarem a sentir essa experiência sem saberem nada acerca dela. (minha tradução a partir de Juliet Mitchell e Jacqueline Rose, 1982, p.147).

A esta experiência chama Lacan uma “jaculação mística”, em que o apagamento do e está para a ausência do falo. Ampliemos a leitura de Lacan: no sentido em que Santa Teresa de Ávila experimenta um êxtase que é um sentir-se para além de, o estado a que chega é o momento da jouissance, mas de um estado perverso que confunde de propósito o olhar de Deus com o olhar/sentir do sujeito humano extasiado. Santa Teresa contara que um anjo lhe trespassara o coração com uma seta de ouro flamejante: “A dor foi tão intensa que gritei; mas ao mesmo tempo, senti uma tão infinita doçura que desejei que a dor jamias acabasse. Não foi uma dor física, mas mental, embora afectasse também, de alguma maneira, o corpo. Foi a mais doce carícia da alma por Deus. (Citado por H. W. Janson, História da Arte, 4ªed., Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1989, pp.513-514.)

Será difícil encontrar melhor definição de jouissance feminina. A distinção entre exterior e interior, que é necessária a toda a relação heterossexual, perde-se neste tipo de jaculação mística, ao traduzir-se por um espasmo de prazer que a linguagem da jouissance de Santa Teresa verteu em “dor intensa”, “infinita doçura”, “dor mental” e “doce carícia”. Se esta jaculação é dada pela ausência do falo não o é menos pelo desejo de ter Deus dentro de si, ou seja, pelo desejo de ver preenchido um vazio superior, que pode perfeitamente denunciar um sentimento de castração que importa erradicar. Podíamos pensar, como o fizeram Charcot (fundador da neurologia no final do séc.XIX), que o misticismo é apenas uma questão de “vir-se”. Não é tanto assim. Não é só assim. A jouissance que Lacan reclama de feminina está presente na linguagem, nessa instância em que significado e prazer se combinam e a que Lacan chama signifiance. Por isso Lacan sugere que se interprete essoutra face do Outro a que chamamos Deus como a expressão da jouissance feminina. Assim podemos ler a “doce carícia da alma por Deus” de Santa Teresa d’Ávila; assim podemos ler o desejo da Mulher segundo a visão extasiada do padre Amaro. A começar pela leitura tumescente [inchada] que faz dos «Cânticos a Jesus» (p.84), a que aludimos no início deste estudo. O tipo de êxtase que Amaro experimenta nessa leitura não difere em nada do êxtase sexual de Santa Teresa d’Ávila aos olhos de Lacan.

2. Num outro sentido, Roland Barthes também utiliza o termo para indicar o prazer que é possível extrair do texto. Barthes admitiu  em “Theory of the Text” (artigo inicialmente publicado em Encyclopaedia Universalis, 1973), que qualquer texto “textual” conduz pela sua essência criativa à jouissance do autor, seja literário ou não, isto é, conduz necessariamente não só a um prazer de escrita como a própria escrita ou texto produzido é uma espécie de clímax sexual – um têxtase. Se reduzíssemos este princípio de textualidade e decidíssemos que qualquer tentativa de levar o erotismo criativo da escrita para além de certos limites significa entrar de imediato no limiar do literário, então teremos encontrado um critério de definição da literariedade. Do texto que seja resultado de um têxtase, podemos dizer que é literário. O princípio do têxtase textual está naturalmente sujeito ao livre arbítrio do leitor. Em O Prazer do Texto (1973), Barthes sugere ainda que no acto de leitura intervêm dois aspectos essenciais: o prazer e a jouissance; e, para se poder estabelecer o valor de um texto, avança com a ideia de que ele pode ser scriptible (“escrevível, que se pode escrever, mas ainda não está escrito”) ou lisible (“legível, que pode ser lido, mas não escrito”). O escrevível obriga o leitor a cumprir um outro papel para além do inevitável consumidor de textos: deve tornar-se, no exercício da sua skepsis literária, um produtor. O verdadeiro prazer do texto não está ligado a um simples acto de leitura, mas a todo o investimento emocional que o leitor faz sobre o texto, sobre o escrevível que se constrói para além do princípio do prazer.

Bibliografia:

Alberto Eiguer: Des perversions sexuelles aux perversions morales: La jouissance et la domination (2001); Carlos Ceia: Sexualidade e Literatura (2002); Didier Moulinier: Dictionnaire de la jouissance (1999); Jacqueline Rose: Feminine Sexuality: Jacques Lacan and the École Freudienne, ed. por Juliet Mitchell e Jacqueline Rose, (1982); Jacques Lacan: Seminário XX (Encore) (1972-3); Jacques-Alain Miller: Percurso de Lacan – Uma Introdução (2ª ed., Rio de Janeiro, 1988); Pierre Boudot: La Jouissance de Dieu: ou, Le Roman courtois de Thérèse d’Avila (1979).