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Embora desde sempre o leitor tenha tido um papel privilegiado no processo da análise e crítica literária, foi só no século XX que surgiram as teorias que podemos designar, genericamente, por teorias de recepção, ou seja, teorias cujo principal objecto de interesse é a resposta do público às obras literárias. São duas as principais tendências teóricas orientadas para o leitor: as teorias de resposta americanas e a estética da recepção alemã. Contudo, também a crítica fenomenológica, a desconstrução, a crítica psicanalítica, a semiótica estruturalista, e até a nova crítica americana (new criticism) contribuíram de alguma forma para avançar mais um pouco na conquista da autoridade do leitor enquanto sujeito, por excelência, da concretização da literatura. Alguns teóricos, no entanto, são incluidos em determinados movimentos ou escolas sem que eles próprios tenham declarado uma simpatia ou posição em particular, como é o caso de I. A. Richards. Outros, como Roland Barthes, têm uma história complicada de ligações a movimentos opostos. Outros ainda, como Jonathan Culler, propuseram-se conciliar teorias aparentemente inconciliáveis. Por consequência, se considerarmos que os dois grandes pontos de referência da teoria literária deste século são o formalismo e o pós-estruturalismo, (já que o primeiro inaugurou o estudo das obras “em si” e o segundo rompeu definitivamente com o estudo da pretensa objectividade estrutural da literatura), não é correcto considerar que as teorias de recepção fazem parte apenas dos movimentos pós-estruturalistas. Mas o problema da contextualização destas teorias no quadro da crítica literária é mais complicado ainda. Segundo Jane P. Tompkins, no seu estudo histórico sobre o papel do leitor neste panorama (Reader-Response Criticism: from Formalism to Post-structuralism), não só as teses de recepção se encontram todas inevitavelmente ligadas ao formalismo, na medida em que continuam a prezar o sentido como objecto primordial da interpretação e crítica literária e a admitir, na prática, todas as características do texto descritas pelo formalismo, como ainda, se formos rigorosos, há que considerar que toda a crítica literária, desde a Antiguidade Clássica até ao formalismo se preocupou mais, e mais genuinamente, com a recepção das obras por parte do público, do que as teorias que declararam fazê-lo no século XX. De acordo com a retrospectiva de Tompkins, desde Platão, Longino e Aristóteles, para quem a literatura era avaliada e descrita conforme a reacção que provocava no público (uma tragédia, por exemplo, era definida como o drama que provocava piedade e temor); passando pela Idade Moderna, em que a estreita relação entre o autor e o público patrono levava a uma preocupação constante com a reacção dos leitores/espectadores, tanto por parte do autor como daqueles que avaliavam a obra, de acordo com a sua capacidade para agradar, ou mesmo para desagradar (no caso da sátira); até uma escrita dirigida à vida psíquica e emocional do leitor como foi a do Romantismo, sempre o público teve um papel fundamental não só na avaliação, mas na própria concepção das obras literárias. O mito do sentido, característico deste século, e coincidente com o aparecimento da ideia anti-tecnocrata de que a literatura não tem de servir para o que quer que seja, foi para J. P. Tompkins o poderoso grilhão que o formalismo lançou aos pés da crítica literária e do qual as teorias de recepção não se conseguiram, de todo, libertar. J. P. Tompkins faz ainda uma outra observação de grande interesse: a de que o único aspecto em que as teorias de recepção se afastam verdadeiramente do formalismo, ao mesmo tempo que se aproximam das concepções antigas de poesia, é o facto de  considerarem que autor, texto e leitor estão sujeitos a um poder superior que provoca, influencia e dita a concepção, a interpretação e a crítica das obras literárias: toda uma conjuntura social, moral e política cuja autoridade determina, mais ou menos directamente, o modo como escrevemos, lemos e avaliamos o que lemos.

A maioria das teorias centradas no leitor, porém, apenas sugere essa ideia, sendo Stanley Fish o único teórico que realmente descreveu o fenómeno literário como sendo um resultado da autoridade institucional daquilo que ele definiu como a “comunidade interpretativa” de uma sociedade. Também Michael Riffaterre se referiu a essa autoridade, defendendo no entanto, ao contrário de Fish, que ela resulta de um compromisso constantemente reformulado entre os seus membros. A linha de pensamento dos críticos das teorias de recepção, porém, caracteriza-se antes de mais pela proclamação do direito do leitor a um lugar de destaque no processo literário. Na sua versão mais radical, essa atitude pretenderia essencialmente deslocar o ponto de referência da análise literária, num gesto claramente anti-formalista, da obra propriamente dita para o sujeito a quem ela se dirige, em quem ela se concretiza, sem o qual ela não existe. E, uma vez instalado na crítica literária o mito do sentido, este ponto de vista arrastou obviamente o problema da autoridade legítima na sua determinação. Se o leitor é o agente concretizador do processo literário, será lícito acreditar que o sentido reside nessa entidade virtual e incompleta que é o texto em si? Por um lado o texto parece falar por si, conter uma verdade intrínseca. Por outro lado, se ele só tem existência no leitor, parece ser mais justo considerar que a verdade do texto é nada menos que a verdade do leitor. O texto pode falar por si, mas não fala para si. Basicamente, houve quatro tentativas de supressão deste obstáculo: alguns críticos defenderam que o sentido reside no texto, e que cabe ao leitor descobri-lo (I. A. Richards e o Roland Barthes da primeira fase); outros acreditaram que o sentido, no singular, não existe, cabendo ao leitor resignar-se a especular sobre ele (críticos da desconstrução); outros ainda que o sentido é em parte fornecido pelo texto e em parte construído pelo leitor (Roman Ingarden, Wolfgang Iser); e por fim houve quem defendesse que o sentido é construído pelo leitor, que reescreve o texto quando o lê (Jonathan Culler, Stanley Fish).

I. A. Richards pode ser considerado como precursor das teorias de recepção por diversas razões, já que lançou para a crítica literária vários princípios que viriam a ser fundamentais para teorias tão diferentes entre si como a nova crítica americana, a desconstrução e a estética da recepção. A sua ênfase na leitura como fase determinante do processo literário não pretendeu estabelecer a “verdadeira” fonte de sentido do texto, mas consciencializar o público da necessidade de melhoramento da sua resposta à literatura, de uma responsabilização geral no sentido de se valorizar a poesia, para com isso se aprender a valorizar a própria vida. Embora os ideais de Richards estejam impregnados daquela indignada inocência vitoriana do princípio do século (os seus Principles of Literary Criticism datam de 1924), que se revoltava contra o materialismo inculto da sociedade industrializada, a sua constante relativização dos pressupostos formalistas é de louvar: foi Richards quem primeiro declarou, despreocupadamente, que a instabilidade de sentido num texto deve ser encarada com naturalidade; que o potencial irresistível da literatura reside nos “abismos” que ela cria, para que o leitor possa construir as suas “pontes” de sentido; e que a poesia é uma experiência como qualquer outra, e não simplesmente um objecto com um sentido intrínseco. Contudo, a teoria de Richards está trespassada de contradições algo desconcertantes, o que explica que ela tenha sido aproveitada nalguns aspectos pela nova crítica americana, que proclamou, antes de mais, o desinteresse total pelos efeitos da literatura no leitor, e noutros pelas teorias de recepção, cujas teses se basearam na importância fulcral do leitor para a determinação do sentido e do valor do texto. Se esta disparidade leva a concluir que uma das duas tendências críticas terá feito uma leitura limitada do trabalho de Richards, ela foi certamente a nova crítica americana, que, manifestando-se na linha do formalismo, só pôde citar o seu mais sensato precursor no princípio de que o texto literário é um sistema inteligível de significações com um sentido específico e comunicável, sendo o facto de maior importância para o estudo da literatura o de que existem vários tipos de sentido. A nova crítica, que teve em William Empson o seu mais insigne representante britânico, baseou-se neste princípio para declarar que “as maquinarias da ambiguidade já existem nas próprias raízes da poesia”, se bem que a partir das suas especulações em torno da ambiguidade estes críticos se tenham recusado a avançar mais no sentido de conferir aos leitores a responsabilidade de preeencher os espaços vazios que Richards detectara na literatura. A posição de Cleanth Brooks é elucidativa: num ensaio de 1951, intitulado “The Formalist Critic”, Brooks parte do princípio de que todos os críticos se vêem forçados a conceber um “leitor ideal” (v) – que obviamente não existe – para evitar o problema da diversidade de leituras de um texto literário. O formalismo, segundo Brooks, concebe esta entidade para depois a pôr de lado, já que o que interessa a este tipo de crítica é apenas a obra em si. Ironicamente, poderíamos dizer que se o formalismo e a nova crítica pressupõem um leitor ideal e, admitindo que ele não existe, se baseiam na sua (in)existência para se concentrarem no texto, que por sua vez só terá uma leitura ideal, então este tipo de crítica nunca poderia chegar à integridade do texto, já que não acredita que alguém possa efectuar a leitura que efectivamente lhe corresponde. Mais problemática ainda se torna a nova crítica se lembrarmos que os seus teóricos foram unânimes em aceitar que a obra literária só é concebível através desse acto subjectivo e subjectivizador que é a interpretação, ao mesmo tempo que proclamavam como único estudo válido o estudo da obra enquanto estrutura objectiva. Considerados como o grande manifesto da nova crítica americana contra o leitor, os ensaios de W. K. Wimsatt “The Intentional Fallacy” e “The Affective Fallacy”(escrito com a colaboração de M. Beardsley e publicado em 1954) denunciaram o estudo das causas, efeitos ou resultados da poesia como sendo a maior falácia da crítica literária.

Mas face às novas teorias pós-estruturalistas a nova crítica não poderia vingar. E para a desautorizar, Roland Barthes terá contribuído em muito com o seu famoso ensaio “A Morte do Autor”, onde, embora ainda dividido entre o estruturalismo e a sua contestação, Barthes afirma já, em 1968, que “o leitor é o espaço onde todas as palavras do texto são inscritas sem que nenhuma se perca [e que] a unidade do texto reside não na sua origem mas no seu destino”, proclamando um “nascimento do leitor” que só pode acontecer à custa da morte do autor. Mas o leitor de Barthes não tem história, biografia ou psicologia: é apenas “esse alguém que guarda em si, num só plano, todos os traços que constituem um texto literário.” Esta teoria, portanto, ainda não dá ao leitor o direito de fundir a sua própria integridade com a obra que lê, de fazer dela um resultado da fusão de duas consciências. Ao reconhecer uma origem e um destino no processo literário, se bem que dê um estatuto privilegiado ao destino, Barthes não vai tão longe como Georges Poulet, para quem origem e destino, sujeito e objecto, texto e leitor, são indistintos na leitura, embora, curiosamente, Poulet conceba a obra literária como personificação da consciência única do autor, restituindo-lhe assim, talvez sem querer, a autoridade que Barthes lhe roubou.

Entre autor e leitor está o modelo teórico do crítico psicanalista Normand Holland, que se propôs dar conta da relação entre os padrões que o crítico encontra no texto, objectivamente, e a experiência subjectiva do leitor. Holland ecoa Richards no sentido em que a sua análise textual pretende des-cobrir não só as mais profundas fontes de sentido do texto, mas a nossa própria interioridade, o outro que há em nós. Porém, e ao contrário do que o título The Dynamics of Literary Response sugere, o modelo de Holland acaba por fazer do leitor um elemento passivo, um mero voyeur do descortinar das fantasias do autor (expressas nos tais padrões do texto), ou quando muito alguém com quem o autor partilha essas fantasias, tendo por isso um papel indiscutivelmente secundário, como notou Frederick Crews, um crítico deste método. A “Crítica Transactiva” de Holland, no entanto, defende que o processo de conversão das fantasias do autor, expressas na obra, em sentidos moral, social e intelectualmente aceitáveis, é efectuado pelo leitor e determinado pela sua personalidade, ou mais propriamente por aquilo a que Holland chamou “tema-identidade”. No estudo prático Five Readers Reading, Holland parece atribuir assim ao leitor um papel definitivamente activo. Mas a verdade é que nesse caso coloca-se um outro problema: a leitura que o próprio Normand Holland, como crítico, faz das interpretações dos seus cinco leitores é, também ela, condicionada pelo seu tema-identidade. Pelo que este tipo de crítica literária afunda autor, texto, leitor e/ou crítico num insondável abismo de mistério e ambiguidade que leva a psicanálise a ultrapassar, em muito, os limites daquilo que é verificável e razoável na crítica literária.

Um ano depois da publicação de Dynamics of Literary Response, Georges Poulet apresenta, em 1969, a sua tese fenomenológica (Phenomenology of Reading): o sentido do texto parece estar cada vez mais radicado nesse processo complexo e heterogéneo que é a leitura. O excerto mais citado da teoria de Poulet será talvez o que retrata a experiência mística a que a fusão autor-texto-leitor dá lugar: “Por uma estranha invasão da minha pessoa pelos pensamentos de outra, sou um eu a quem é concedida a experiência de pensamentos que lhe são alheios. Sou o sujeito de pensamentos que não os meus. A minha consciência comporta-se como se fosse a consciência de outro…”. Segundo o seu princípio básico de “intencionalidade”, a dicotomia sujeito-objecto desintegra-se na noção fenomenológica de que toda a consciência é consciência de algo, logo não podemos ter a certeza da existência “objectiva” e independente das coisas, mas apenas ter a certeza da sua presença como coisas apreendidas pela nossa consciência. Mas embora isto pareça conduzir a uma crítica literária em que o texto, tendo existência apenas enquanto objecto da consciência do leitor, é entendido e avaliado de acordo com esse princípio, a teoria de Poulet dá uma reviravolta surpreendente à pretensa autoridade do leitor enquanto agente do texto, e até mesmo em relação à autoridade do autor, fazendo do próprio texto o verdadeiro “senhor” do processo da leitura: “É a obra que traça em mim as próprias barreiras dentro das quais se define esta consciência […] É a obra que me força a visualizar uma série de objectos mentais e que cria em mim uma rede de palavras […]. E é a obra que, por fim, […] se apropria da minha consciência […]. A obra vive a sua vida em mim; […] confere um sentido a si própria dentro de mim. […] A obra parece primeiro pensar por si própria e depois informar-me sobre aquilo que pensou.”

Bem mais inclinado para as teorias de recepção é Jonathan Culler, que curiosamente se manifesta dentro das linhas estruturalistas de análise literária. Culler escreve a sua Structuralist Poetics, no entanto, em 1975, quando se insinuava já a mentalidade pós-estruturalista, e por isso mesmo viu-se ocupado na tarefa de tentar conciliar a sua tendência com a da época, por meio da semiótica. Começa por declarar que a crítica literária deve preocupar-se não com o sentido literário em si mas com a forma como esse sentido é produzido. Baseia-se na noção de “competência” do leitor – já que este só está apto a “fazer” o sentido de um texto (make sense) se tiver interiorizado todo um sistema de regras e convenções de interpretação – para concluir que o texto não tem um sentido intrínseco, mas sim um sentido que o leitor constrói quando faz uso das suas capacidades para dar corpo aos sentidos potenciais do texto ( que, se o leitor possuísse uma outra “competência”, seriam diferentes), e para preencher os “espaços vazios” do texto. Culler é sem dúvida o crítico mais promissor de entre os precursores de uma teoria verdadeiramente orientada para o leitor. Inclusivamente, a sua semiótica acaba por conduzir a uma crítica em que o objecto da interpretação passa a ser a própria interpretação, tornando-se, nas palavras de Julia Kristeva, “uma auto-crítica perpétua”. É impossível definir, no entanto, até que ponto o leitor é de facto soberano na sua teoria, já que Culler acaba por ceder ao inevitável dualismo entre “um interpretador e algo para interpretar, um sujeito e um objecto, um agente e algo sobre o qual ele age, ou que age sobre ele.” É precisamente este último impasse, esta ambiguidade, que não permite tirar quaisquer conclusões sobre a eventual soberania do leitor. Talvez por estar já inserido no ambiente de pessimismo que caracterizou a desconstrução, na sua consciência de que a literatura resiste e desafia as tentativas vãs do leitor para “assimilar” e “naturalizar” aquilo que lê, o Culler desencantado de On Deconstruction não é o mesmo que, anos antes, defendia que o leitor retira sentido do texto através de um processo de naturalização que o torna “plausível e justificável”. O seu contributo para as teorias de recepção, porém, ainda se estende a outros dois aspectos da sua tese: por um lado, Culler resolveu, por assim dizer, o embaraçoso impasse em que ficara o leitor “ideal” de Brooks, alegando que o termo é enganador, já que sugere uma pretensa leitura ideal, e que “falar de um leitor ideal é esquecer que a leitura tem uma história”. Por outro lado, antecipou Fish ao sugerir, já em 1975, que todo o desenrolar do processo literário está invariavelmente condicionado pelo sistema de convenções interpretativas, que de resto é o que nos faz exigir que os textos tenham um sentido.

Curiosamente, depois de todos estes precursores, as teorias de recepção propriamente ditas acabam por acrescentar pouco a uma teoria literária efectivamente centrada no leitor. Os seus teóricos ocuparam-se principalmente em desenvolver as ideias já referidas, segundo três tendências distintas. Por um lado, temos a tese de Hans Robert Jauss que, influenciado pela hermenêutica de Gadamer, defende uma crítica centrada no público histórico, ou nos públicos, de uma obra, no sentido em que o crítico deve estudar a relação entre a recepção que ela teve no passado e a que tem no presente. A sua perspectiva é portanto claramente histórica, já que sustenta que “a forma como uma obra literária, no momento histórico da sua apresentação, satisfaz, ultrapassa, desilude ou refuta as expectativas do público proporciona, obviamente, um critério para a avaliação do seu valor estético.” Por outro lado temos Wolfgang Iser, talvez a figura principal desta tendência teórica, já que se encontra ligado tanto à estética da recepção alemã como às teorias de resposta americanas, e cuja tese pode bem ser considerada como a mais exemplificativa daquilo que constituiu a crítica da recepção. Como a de Georges Poulet, a teoria de Iser atesta a influência filosófica da fenomenologia, e mais propriamente da aplicação das ideias de Husserl à crítica literária efectuada pelo polaco Roman Ingarden, que se preocupou com o “modo de existência da obra literária, na medida em que ela não é nem puro sujeito nem puro objecto.” Também para Ingarden, como para Culler, a obra literária enquanto objecto estético é concretizada no leitor, que preenche os seus “espaços em branco”. Mas de acordo com os condicionamentos que o texto lhe impõe: pelo que esta concretização não é, portanto, completamente subjectiva. Iser vai então considerar o acto de ler como o processo de tentar “imobilizar” a estrutura oscilante do texto, convertendo-a a um sentido específico. O texto oferece ao leitor uma pluralidade de “visões esquematizadas” que constituem uma objectividade multifacetada impossível de apreender na totalidade. Cabe ao leitor, então, detectar tantas visões esquematizadas quanto possível, de modo a obter uma concepção precisa do objecto. Existe entre elas, para Iser, uma vastidão de subjectividade que oferece ao leitor a possibilidade de efectuar um jogo de interpretações para as ligar entre si, já que o próprio texto não tem poder para tal. Este elemento subjectivo da literatura representa o mais importante elo entre texto e leitor.

É conveniente notar, porém, que para Iser existe uma assimetria fundamental entre o texto e o leitor, já que o primeiro não tem poder para se defender, por assim dizer, das interpretações erróneas, ou para se auto-modificar. (Nesta assimetria residirá, num certo sentido, – e pela primeira vez – a justificação para se considerar que o leitor tem a autoridade máxima no processo literário). Um ano depois, Iser explica a sua perspectiva através da comparação entre o texto e o céu de noite: salpicado de estrelas fixas, que no entanto podem ser ligadas por meio de linhas variáveis. Esta comparação suscitou uma célebre crítica por parte de Stanley Fish, que veio contrapor à alegoria de Iser a afirmação de que as “estrelas” de um texto são tão variáveis como as linhas que as unem. Fish será então o teórico mais radical desta tendência crítica, cuja tese preconiza uma outra forma de encarar a importância do leitor no processo literário. Para Fish, nada é fornecido pelo texto, tudo é produzido pelo leitor, que, para todos os efeitos, “escreve” o texto que lê. O sentido reside portanto no leitor, ou melhor, é o próprio acontecimento da leitura: “The meaning of an utterance […] is its experience – all of it.” O mérito da sua teoria, no entanto, reside não propriamente neste radicalismo que parece fundir todas as teses anteriores em nome da soberania do leitor, mas mais na engenhosa explicação que Fish encontra para se defender das possíveis objecções ao seu raciocínio. Na medida em que dois leitores, ao lerem o “mesmo” texto produzem dois textos diferentes, um dos desafios que se coloca é explicar porque razão é tão frequente o caso de vários leitores efectuarem a mesma leitura, ou a mesma “escrita” de um texto. Fish defende-se desta objecção alegando que essa coincidência se deve ao facto de os leitores pertencerem à mesma “comunidade interpretativa”, pelo que “fazem” o texto da mesma maneira, mas isso não tem necessariamente de acontecer. Por outro lado, Fish defende-se da objecção, por assim dizer, oposta: se, de acordo com a sua teoria, as noções de textos “iguais” ou “diferentes” são fictícias, como se explica que dois textos distintos dêem origem a sequências diferentes de actos interpretativos? A resposta, para Fish, é mais uma vez bastante simples: na verdade, não tem de ser assim. “Sempre foi possível pôr em acção estratégias interpretativas concebidas para converter todos os textos num só, ou melhor, para fazer permanentemente o mesmo texto.” Prova disso é a exegese católica descrita por Santo Agostinho e aplicada durante séculos e séculos, que interpreta todos os textos ora como uma exortação ao comportamento virtuoso ora como uma representação do procedimento avesso a essa virtude. A noção de “comunidade interpretativa” é então o sustentáculo de toda a teoria de Fish, e sem dúvida aquilo que confere uma inegável sensatez a uma tese por vezes demasiado intransigente no seu teimoso radicalismo. Com efeito, embora Fish tenha levado as suas ideias quase ao absurdo no desentendimento com Iser (defendendo acirradamente a inexistência de um objecto anterior à interpretação, Fish alegava que nem mesmo aquilo que é “dado” pode ser apreendido com tal, a menos que o interpretemos como dado), a sua ideia de que a interpretação é invariavelmente condicionada por todo um sistema institucional cuja ideologia determina as estratégias segundo as quais aprendemos a interpretar valeu-lhe uma posição de respeito e destaque no quadro das teorias de recepção. É bem evidente, no entanto, que até mesmo Fish, com a sua premissa de que, teoricamente, o leitor pode fazer o que quiser de um texto literário (que afinal não tem sentido mas apenas proporciona a oportunidade de o criar), acaba também ele por fazer do leitor uma entidade impotente e indefesa, que mais não faz, na prática, do que agir de acordo com as normas que esse grande “ninguém” que é a comunidade determina.

{bibliografia}

Elisabeth Freund: The Return of the Reader: Reader Response Criticism, Methuen (1987); Frank Gloversmith (ed.): The Theory of Reading (1984); Georges Poulet: “Phenomenology of Reading”, New Literary History, vol.1, no.1 (1969); Hans Robert Jauss : Literaturgeschichte als Provokation der Literaturwissenschaft (1970), (A Literatura como Provocação – História da Literatura como Provocação Literária, Lisboa, 1993.); Id.: “Esthétique de la réception et communication littéraire”, Critique, 413, (1981); Jane P. Tompkins (ed.): Reader-Response Criticism – From Formalism to Post-Structuralism (1980); Jonathan Culler: “Semiotics as a Theory of Reading”, in The Pursuit of Signs: Semiotics, Literature, Deconstruction, Cornell University Press (1981); Luiz Costa Lima (ed.): A Literatura e o Leitor – Textos de Estética da Recepção (1981); Norman N. Holland: The Dynamics of Literary Response (1968); R. C. Holub: Reception Theory – A Critical Introduction (1984); Regina Zilberman: Estética da Recepção e História Literária (1989); Stanley Fish: “Interpreting the Variorum”, Critical Inquiry, 2 (1976); Umberto Eco: Leitura do Texto Literário – Lector in Fabula: A Cooperação Interpretativa nos Textos Literários (Lisboa, 1983); Wolfgang Iser: “Indeterminacy and the Reader’s Response in Prose”, in Aspects of Narrative, Selected Papers from the English Institute, (1971); Id.: “The Reading Process, a Phenomenological Approach”, New Literary History, 3, (1972); Id.: Der implizite Leser; Kommunikationsformen des Romans von Bunyan bis Beckett (1972), The Implied Reader; Patterns of Communication in Prose Fiction from Bunyan to Beckett (1974).