Select Page
A B C D É F G H Í J K L M N O P Q R S T Ü V W Z

No livro Leçon

(1978), que constitui o texto de sua aula inaugural, em 7 de
janeiro de  1977, do
curso que ministraria, de 1977 a 1980, no
Collège de France,
Roland Barthes (1915-1980), depois de proferir, no limiar
daquela tradicionalíssima instituição, “onde reinam a ciência, o
saber, o rigor e a invenção disciplinar” (p. 8),
 um discurso protocolar, 
enuncia, literal e contundentemente: “Esse objeto em que
se inscreve o poder, desde toda eternidade humana, é: a
linguagem – ou, para ser mais preciso, sua expressão
obrigatória:  a
língua. A linguagem é uma legislação, a língua é seu código” (p.
12). Tendo estabelecido uma fronteira, incisiva, mas móvel,
entre língua e linguagem (distinta da fala, ou linguagem, a
língua é, no entanto, dela solidária, ensina
 Saussure, à página 27 de
seu Curso de lingüística
geral
), o semiólogo francês define a língua, ao mesmo tempo
que lhe revela os pecados capitais, neste termos lapidares (o
significante “lapidares” terá, aqui, para além da corriqueira
conotação de “concisos”, a significação de “que apedrejam”):
“Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que
toda língua é uma classificação, e que toda classificação é
opressiva: ordo quer
dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação. Jákobson mostrou
que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer, do que
por aquilo que ele obriga a dizer” (p. 12-13). Depois de citar
três “exemplos grosseiros” da língua francesa, o autor de
Eléments de sémiologie
(1965) estatui que “assim, por sua própria estrutura, a língua
implica uma relação fatal de alienação. Falar, e com maior razão
discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada
freqüência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada”
(p. 13). Tendo dialogado com o filósofo e filólogo Joseph Ernest
Renan (1823-1892), Barthes maneja toda 

a força da Retórica e desfere o aforismo fatal: “Mas a
língua, como desempenho de toda linguagem, não é nem reacionária,
nem progressista; ela é simplesmente: fascista: pois o fascismo
não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (p. 14).

Revelando  pagar
 tributo a Roman Jakobson
(1896-1982), “o poeta da lingüística”, segundo Haroldo de Campos
(1929-2003), Barthes transparece ter bebido nas fontes
lingüísticas de Ferdinand de Saussure (1857-1913), o insigne pai 
da lingüística e padrinho da semiologia barthesiana. No
entanto, rebela-se contra a lingüística, perpetrando o
assassinato do pai, na medida em que, contrariamente a
 Saussure, que postulava
ser a  lingüística –
dado que a linguagem é um sistema de signos – parte da
semiologia, instaura a semiologia sob o signo da lingüística.
Outro ponto de atrito entre os dois pensadores, um suíço, outro
francês, é o fato de Barthes não conferir, prioritariamente
 à linguagem ou fala ou,
ainda, discurso,  a
natureza comunicativa, mas a de sujeição.

Canonicamente, lemos  Saussure,
em seu discurso-fundador, onde conceitua, separada e
conjuntamente, língua e linguagem, irmãs-siamesas do mesmo
sistema de signos: “Mas o que é a língua? Para nós, ela 
não se confunde com a linguagem; é somente uma parte
determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao mesmo
tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto
de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para
permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em
seu todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; a cavaleiro de
diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e
psíquica, ela pertence além disso ao domínio individual e ao
domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria de
fatos humanos, pois não se sabe como inferir sua unidade. A
língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de
classificação. Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os
fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural num conjunto
que não se presta a nenhuma classificação”(p. 17). Portanto, a
langue (língua) –
estrutura (note-se que  Saussure
não usou o signo “estrutura”, que lhe é posterior, mas
“sistema”) abstrata, fundamental – 
distingue-se da

parole (palavra, linguagem, discurso); a língua seria fixa,
ao passo que a linguagem – realização ou atualização da língua –
se mobilizaria em uma diversidade infinita de expressões; no
entanto, visto ser a língua de natureza social, na medida em que
uma comunidade adota suas convenções, a língua pode
modificar-se, constituindo, assim, um movimento diacrônico, que
daria conta do caráter evolutivo da língua; já a análise
sincrônica estabelece um corte num dado momento da história da
língua. “(…) Sincronia
e diacronia
designarão respectivamente um estado de língua e uma fase de
evolução”, conforme Saussure ( p. 96).
 A língua é um tipo
particular de código; código, entende-se como uma estrutura
semiótica que propicia a comunicação entre o emissor e o
receptor. Em termos tomistas ou escolásticos, a língua seria
potentia, ao passo
que a linguagem será
actus.

Código, portanto fato social
par excellence (o
epíteto “social” soa pleonástico; no entanto a redundância
opera, no sintagma em questão, significações importantes), a
língua é o locus
privilegiado da ideologia. Na Babel em que nos coube viver e
discursar, caberia, também, 
uma pergunta de cunho ideológico, até porque a língua é
uma instituição eminente social, como, aliás, 
insiste  Saussure:
haveria uma língua superior? Sabe-se que, no decorrer da
História,  as conquistas,
através de guerras, fazem-se com a imposição da língua dos
vencedores aos vencidos. O império da língua configura o que
Barthes designou como “cominação”, ato de sujeição, ato de
submissão, dominação pela língua “vitoriosa”. Assim como não há,
no concerto das artes, clássicas e contemporâneas,
 uma arte superior, não
pode haver uma língua hegemônica, apesar de a famigerada
globalização impor o inglês estadunidense como língua universal,
bem como a expansão e massificação da
Internet inculcar uma
língua esdrúxula, cheia de abreviações, mutilada, arrogantemente
hermética, praticada, sobretudo, pelos mais jovens, que têm
preguiça de escrever uma palavra com sua extensão, naturalmente
poética. Desde que 

existe,  há algum
tempo, a Internet a
cabo e a rádio,  não
 mais procede a desculpa
da economia de impulsos telefônicos, que levava a cortar
palavras; mas o vício terá permanecido, insuportável para todos
aqueles que amamos as palavras em seu desenho, voluptuoso,
meditativo e polissêmico. 
Como parêntesis diacrônicos, 
prestamos homenagem ao pensador sardo Antonio Gramsci
(1891-1937), que, por detrás das grades de seu cárcere vitalício
e mortal,  conferiu ao
signo “hegemonia” uma instigante 
atualidade para se pensar a estrutura como um todo, vale
dizer, a infra-estrutura e a supra-estrutura, ou, em termos
gramscianos, o “bloco histórico”. No “império dos signos” (Barthes),
não há, definitivamente, qualquer lugar para a hegemonia de
determinada língua. Aliás, em
Depois de Babel:
aspectos da linguagem e tradução, George Steiner, discutindo a
quase infinita proliferação  das
línguas, “esta multiplicidade desvairada”,
mystère suprême da
antropologia, segundo Lévi-Strauss,
 reflete, amplamente,
sobre uma inexistente relação de dependência entre país, dito
desenvolvido, e língua desenvolvida, ou país “subdesenvolvido” e
língua “subdesenvolvida” (2002): “Não dispomos de padrões (ou só
de padrões extremamente aventurosos) que nos permitam afirmar
que qualquer língua humana é superior a uma outra, que sobrevive
por combinar mais eficazmente que outras as exigências da
sensibilidade e da existência física” (p. 83-84); na “álgebra da
língua”, são  muito
mais complexos os problemas do que podem supor nossas vãs
lingüística e semiologia. Já Karl Marx (1818-1883) não
deslindava o mistério de a  Grécia, 

país com infra-estruturas arcaicas, ter produzido uma
arte tão sublime. Há muitas mais coisas entre o céu e a terra do
que possa elucubrar nossa vaidosa filosofia. Ainda sob a rubrica
do traço essencialmente social da língua, cumpre assinalar a
recente publicação do livro
História social da língua
nacional
, com a organização de Ivana Solze Lima e Laura do
Carmo, que  discute
como a língua portuguesa no Brasil tem uma história própria,
marcada por condições culturais e sociais específicas,
relacionadas à colonização, à escravidão, à 
relação com os indígenas e à imigração.

Com relação ao amor à língua, recite-se o texto de Clarice
Lispector (1920-1977), escritora brasileiríssima, nascida na
Ucrânia: 

Declaração de amor

           
Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa.
Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente
trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter
sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra
os que temerariamente ousam transformá-la numa linguajem de
sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um
verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem
escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de
superficialismo.

           
Às vezes ela reage diante de um pensamento mais
complicado. Ás vezes se assusta com o imprevisto de uma frase.
Eu gosto de manejá-la – como gostai a de estar montada num
cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes lentamente, às para nos
dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que
escreve-nos atamos fazendo do túmulo do pensamento alguma
coisa que lhe dê vida.
           
Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do
encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O
que recebi de herança não me chega.
           
Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me
perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês,
que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever,
tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era
escrever em português. Eu até queda não ter aprendido outras
línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem
e límpida.

“Minha pátria é a língua portuguesa”, terá decretado Bernardo
Soares, semi-persona
 de Fernando Pessoa
(1888-1935), que, no seu desassossego, inclusive lingüístico,
escolheu, definitivamente,   o
idioma de Camões (1524-1580). O poeta baiano Caetano Veloso
 retoma, para além de uma
plêiade de outros signos culturais,
 esses dois
poetas-expoentes  lusos e
canta o  hino
“Língua”,  onde
 urde um jogo de
significância, não só entre as várias e variadas figuras de
linguagem, como na tensão entre a denotação e a conotação, na
medida em que o signo “língua” goza, tanto do sentido de órgão
físico da fonação, 

quanto do sentido de código sensorial, sensual, seminal:

Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias

Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade

E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua”
Fala Mangueira! Fala!

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó

O que quer
O que pode esta língua?

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!

Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem

Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé

e Maria da Fé

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?

Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção

Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria

E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(– Será que ele está no Pão de Açúcar?
– Tá craude brô

– Você e tu
– Lhe amo
– Qué queu te faço, nego?
– Bote ligeiro!
– Ma’de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
– Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um
espantalho!

– I like to spend some time in Mozambique
– Arigatô, arigatô!)

Nós canto-falamos como quem inveja negros

Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.

           
Analisando a poesia da paulista
 Hilda Hilst (1930-2004),
em Ficções (1977),
Leo Gilson Ribeiro enuncia: “Não será através de todas as
palavras de uma língua que se exorcizará a Angústia. O
dicionário inteiro não abolirá o Tempo, a Morte, o apodrecimento
da carne” (1977, p. XI). No entanto, as palavras “em estado de
dicionário”, como declara Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987), poderão, através do movimento poético, 

trapacear o tempo, a morte e todas as vicissitudes da
condição simplesmente humana.

{bibliografia}

BARTHES, Roland. Aula. Trad. De Leyla Perrone-Moisés. (1980). LIMA, Ivana Stolze e CARMO, Laura. História social da língua nacional. (2008). LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. (1984). RIBEIRO, Leo Gilson. In: HILST, Hilda. Ficções ( 1977). SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. Trad. Antônio Chelín, José Paulo Paes e Isidoro Blikstein. (1969). STEINER, George. Depois de Babel: aspectos da linguagem e tradução. Trad. Miguel Serras Pereira. (2002).