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Por muito tempo, a palavra literatura prestou-se, no campo dos estudos literários, a um emprego universalizante, pelo qual uma de suas acepções modernas servia tranqüilamente para a designação de diversas produções verbais de todas as épocas históricas. Assim, tornaram-se comuns expressões como “literatura antiga”, “literatura greco-romana”, “literatura medieval”. Mais recentemente, contudo, a partir de um momento que acreditamos poder situar nos anos 60 do século XX, uma hipótese alternativa restringe e problematiza a extensão de sentido do termo, assinalando que o início de sua utilização coincidiria com o próprio “aparecimento da literatura”. Esta, por conseguinte, não sendo uma constante através dos tempos, teria “aparecido” por volta da segunda metade do século XVIII ou mesmo início do XIX, sincronizada com o surgimento da própria palavra literatura, especialmente então inventada para designar aquele novo tipo de discurso (cf., entre outras, como expressões dessa posição: Foucault, s. d. [1966], p. 392-3; Roland Barthes. A retórica antiga. In: Jean Cohen et alii.  Pesquisas de retórica. Petrópolis [Rio de Janeiro]: 1975 [1970]. p. 156 e 161). É possível, portanto, admitir dois encaminhamentos básicos a propósito do conceito correspondente ao termo literatura. A orientação tradicional se fundamenta na hipótese realista de que os “fatos literários” existem independentemente do vocábulo literatura, o que permitiria, por exemplo, falar-se em “literatura grega antiga”, mesmo sabendo-se que tal modo de dizer constitui solução léxica recente, não sendo, portanto, contemporâneo do fenômeno que designa. Uma segunda orientação, por seu turno, se baseia na hipótese nominalista de que, sendo o termo literatura de “fresca data” (cf. Foucault, op. cit., p. 393), também os “fatos literários”  o seriam, razão por que expressões como “literatura grega antiga”, mais do que anacronismos, encerrariam verdadeiros nonsenses ontológicos.

A nosso ver, ambas as hipóteses apresentam inconsistências. Vejamos:

A primeira, na simplicidade de uma formulação alheia às mudanças históricas, não se dá conta de que a experiência cultural constituída pelo conjunto que, para evitar nomenclaturas anacrônicas ou equívocas, podemos genericamente chamar “artes verbais”, em torno de meados do século XVIII  torna-se objeto de profunda reconcepção, destinada a prosseguir ao longo do século XIX e a consumar-se no início do século XX. Os elementos convergentes nessa reconcepção podem ser esquematicamente indicados.

Um deles é a nova idéia de autor então formulada: à compreensão antiga e medieval de autor como autoridade, ou modelo discursivo chancelado pela tradição e passível de imitação, emulação, comentários e glosas, segue-se o ideal romântico e moderno de autor como individualidade criativa. Para ilustrar a referida compreensão antiga e medieval — tão estranha ao pensamento corrente de hoje, tributário da mentalidade implantada com o romantismo — , podemos mencionar duas situações: 1ª – na pedagogia medieval, as palavras Aristóteles e Cícero não funcionam como nomes próprios de indivíduos autores, mas sim, por um processo metonímico, nomeiam duas disciplinas do trivium: aristóteles designa a dialética e cícero, a retórica (cf. Hansen, 1992, p. 29); 2ª – a chamada Antologia palatina, reunião da epigramística grega compilada no período compreendido entre os séculos I d. C. e IX-X (assim chamada por ter sido descoberta na Biblioteca Palatina de Heidelberg, no século XVII), distribui os seus cerca de três mil e setecentos poemas em dezessete livros; os organizadores, alheios ao critério moderno de consolidação de autorias individuais, consagram os diversos livros a distintas modalidades de epigramas — por exemplo: amoroso – livro V; votivo – livro VI; funerário – livro VII; descritivo – livro IX; exortativo – livro X; báquico e satírico – livro XI; pederástico – livro XII; aritmético, enigmático e oracular – livro XIV (cf. José Paulo Paes. Paladas de Alexandria; epigramas. São Paulo: Nova Alexandria, 1993. p. 25-6) — , o que levou o tradutor contemporâneo, num claro sintoma de sua identificação liminar com a noção de autoria corrente apenas a partir do romantismo, a lamentar a “… a circunstância de os quase quatro mil poemas da Palatina estarem ordenados por assunto ou tipos e não por autores [, dissolvendo-se assim] a ‘singularidade dos poetas individuais’ num magma de glosas dos mesmos e ‘reiterados temas’ ” (Paes, op. cit., p. 27).

O outro fator da reconcepção em apreço advém do aprofundamento na divisão social do trabalho processada na aurora da modernidade. No campo intelectual, se até então heterogêneos produtos discursivos — prosa e verso; ciência e ficção; eloqüência; história; filosofia; carta — submetiam-se à mesma arte (no sentido clássico, isto é: técnica, habilidade, perícia, ofício), a partir de meados do século XVIII observa-se o crescimento da distância conceitual entre razão e imaginação, atribuindo-se competências específicas para a configuração verbal de cada uma dessas experiências: filosofia e ciência se ocupam com a razão, enquanto a imaginação (noção aliás tangente às de sensibilidade, sentimento e percepção) torna-se apanágio de uma arte (agora no sentido moderno, isto é: gratuidade estética, manifestação do belo, exposição do sentimento individual), cujos diversos gêneros — lírico, narrativo e dramático — logo seriam recobertos pela palavra literatura, então submetida a  um processo de reciclagem de significado, a ser adiante detalhado.

Referida a inconsistência básica da hipótese realista — em síntese, a conformação por assim dizer inocente com um anacronismo, donde sua concepção universalizante de literatura, segundo a qual, por exemplo, os poemas homéricos a integram tanto quanto as obras nossas contemporâneas  — , examinemos os problemas que afetam a hipótese que chamamos nominalista.

Para começar, observe-se que não é historicamente exato afirmar que a palavra literatura constitui uma aquisição léxica recente, datável do século XVIII. Na verdade, aquele século assistiu não à invenção da palavra, mas, como já adiantamos, à reciclagem do seu significado. Nesse sentido, é útil recorrer à história semântica do vocábulo e seus correlatos, o que faremos com base em levantamento de René Wellek (1982, p. 12-6, passim), combinado a informações mais precisas colhidas no Dictionnaire etymologique de la langue latine, de A. Ernout e A. Meillet (Paris: Klincksieck, 1951. 2 v.).

Em latim, a palavra littera traduz o grego gramma (gramma) significando letra do alfabeto, carácter da escrita. O coletivo litterae, equivalente ao grego grammata grammata) significa: 1 – uma carta (sinônimo, pois, de epistula); e, depois e por extensão: 2 – qualquer tipo de obra escrita; 3 – instrução, cultura. Varrão (século II a. C.) assinala que litteratura, por sua vez, que no latim de então significa a arte (na acepção de técnica, perícia, conhecimento) concernente às litterae, isto é, a habilidade de ler e escrever, constituiria palavra latina criada segundo o modelo grego grammatike (grammatiké). Cícero (século II-I a. C.) emprega litterae e também o neologismo litteratura, ambos no mesmo sentido de cultura obtida mediante o domínio da arte de ler e escrever, podendo acrescentar-se o detalhe de que o primeiro termo foi mais usual em Roma do que o segundo. Quintiliano (século I d. C. – II) também utiliza o vocábulo litteratura, com o significado já corrente no tempo de Varrão, vale dizer, conhecimento de ler e escrever. Aulo Gélio (século II d. C.), por sua vez, identifica o latim humanitas com o grego paideia (paidéia) servindo-se do vocábulo litterae para designar o estudo das artes e letras dos gregos, concebidas como representantes da idéia geral de homem (donde, humanitas, isto é, literalmente humanidade); a palavra então nomeia o estudo dos escritores gregos — Homero e os da época de Péricles (século V a. C.) — , opondo-se ainda, por seu significado, a tradição oral, identificada com os poemas homéricos na fase anterior à sua fixação escrita ocorrida no século VI a. C. O mesmo Aulo Gélio distingue ainda entre as expressões litterator (mestre de gramática, aquele que ensina as letras) — a qual, tanto quanto a forma litteratus, também encontrada, traduz o grego grammatikos (grammatikós)— e litteras sciens (aquele que conhece as litterae, isto é, segundo o emprego do autor em causa, aquele que conhece o corpo de escritos gregos mencionado). Tertuliano e Cassiano (ambos do século II d. C.), no alvorecer do cristianismo como religião de Estado, empregam a palavra litteratura no sentido de certo corpo de escritos, por oposição a scriptura, termo com que designam os escritos cristãos. No latim medieval, os vocábulos da família morfológica em questão — littera, litterae, litteratura, litteratus, litterator, litteras sciens — tornam-se pouco utilizados.

A partir do renascimento, com a afirmação de uma clara consciência acerca do que se pode chamar “letras seculares”, a família mencionada recobra o alento, passando a circular, além da expressão latina litterae humanae, também os derivados nas línguas vernáculas emergentes: lettres humains e bonnes lettres (século XVI); good letters (século XVII); belles lettres (século XVII, tanto na França quanto na Inglaterra); littérature e literature (fins do século XVII, respectivamente em francês e inglês, reconstituindo-se assim o latim litteratura, agora no sentido de conhecimento das belles lettres,  e não mais de mestria na arte de ler e escrever).

Deslizando mais um pouco em direção ao sentido contemporâneo, observe-se que os derivados do latim litteratura em francês, italiano, alemão e inglês — e cremos poder acrescentar à lista de René Wellek pelo menos também o português e o espanhol — , desde o início do século XVIII passam a designar um corpo de escritos, não se abandonando, contudo, a acepção mais antiga de erudição, conhecimento das letras. A concorrência desses dois significados praticamente superpostos — corpo de escritos e conhecimento das letras — acabou por resolver-se, no entanto, em favor do primeiro, no próprio curso do século XVIII. Assim, a palavra literatura, nos diversos idiomas ocidentais, passa a significar a partir de meados daquele século certo corpo de escritos bastante heterogêneo, repositório discursivo de saberes tidos como relevantes para todos os homens, repositório por isso chamado humanidades, termo que,  por conseguinte, na época, praticamente equivale ao vocábulo literatura.

Enfim, o sentido contemporâneo da palavra se delineia mediante o desdobramento de tendência à especialização dos discursos observável pelo menos desde o século XVII e consumada ao longo dos séculos XVIII e XIX. Tentando agora estabelecer alguma nitidez nesse processo que na verdade é lento e complexo, teríamos: 1- na época moderna, num primeiro momento literatura como corpo de escritos corresponde a um conceito amplo de humanidades, abrangendo pois a produção escrita em geral — filosofia, eloqüência, história, ciência, carta, prosa ficcional, poesia; 2 – a seguir, ocorre a autonomização da ciência, passando a palavra literatura a compreender um conceito mais restrito de humanidades, isto é, o conjunto dos escritos não científicos; 3 – por fim, esse conceito restrito de humanidades por sua vez se fragmenta em três segmentos: filosofia, ciências do espírito ( também chamadas ciências morais, políticas, históricas, culturais, sociais, humanísticas e humanas) e literatura stricto sensu (abrangendo a prosa ficcional e a poesia, ou, em termos talvez mais aceitáveis, os gêneros chamados lírico, narrativo e dramático). Se acrescentarmos agora, para concluir, que esse conjunto de escritos líricos, narrativos e dramáticos passa a especificar-se segundo as nacionalidades modernas  — abrindo-se assim espaço para expressões como “literatura portuguesa”, “literatura brasileira”, “literatura francesa”, etc. — , teremos chegado ao centro do significado contemporâneo do termo literatura. Verifica-se, portanto, mediante consideração mais atenciosa do trajeto histórico da palavra, que ela está longe de ser uma novidade setecentista ou oitocentista; apenas o significado contemporâneo referido é que constitui construção conceitual  recente, datável do século XIX.

Compreende-se contudo a elisão desse longo percurso de semântica histórica, cujos resultados são estimar em pouco mais de duzentos anos a idade de uma palavra que, no entanto, circula há cerca de vinte e dois séculos, e, em conseqüência, tomar por criação de neologismo operação bem menos radical: atribuir a uma velha palavra  um matiz semântico mais ou menos novo. É que afirmações de impacto à maneira de Foucault — “aparecimento da literatura [no século XIX]”, “palavra […] de fresca data” (cf. op. cit., p. 392-3) — , promovendo o pseudoneologismo, constituem estratégias argumentativas — tão retardatárias quanto radicalizantes — empenhadas em consolidar a autonomia de certo tipo de discurso, ainda concebido como estrela nova recém-saída da nebulosa das humanidades. Assim, para uma suposta novidade discursiva que se pretende afirmar — novidade contudo recuável pelo menos até o início do romantismo — , nada mais adequado do que uma palavra nova — na verdade, pseudonova — para designá-la. Veja-se, como exemplo-matriz desse tipo de exaltação do estatuto particular de certa espécie de discurso próprio à modernidade, estatuto visto como inédito e hipostasiado no nome literatura, a seguinte passagem do verbo fulgurante de Michel Foucault, transcrita na íntegra por sua índole refratária a sínteses ou paráfrases: “Da revolta romântica contra um discurso imobilizado na sua cerimónia à descoberta mallarmiana da palavra no seu poder impotente, vê-se bem qual foi, no século XIX, a função da literatura em relação ao moderno modo de ser da linguagem. (…) a literatura distingue-se cada vez mais do discurso de ideias, e fecha-se numa intransitividade radical; destaca-se ela de todos os valores que podiam na idade clássica fazê-la circular (o gosto, o prazer, o natural, o verdadeiro), e faz nascer no seu próprio espaço tudo o que possa assegurar a denegação lúdica desses valores (o escandaloso, o feio, o impossível); rompe com todas as designações de ‘géneros’ como formas ajustadas a uma ordem de representações e torna-se pura e simples manifestação de uma linguagem que não tem por lei senão afirmar — contra todos os outros discursos — a sua existência abrupta; não lhe resta então senão recurvar-se num perpétuo retorno sobre si, como se o seu discurso não pudesse ter por conteúdo senão o dizer a sua própria forma: dirige-se a si como subjectividade específica do acto de escrever, ou procura apoderar-se, no movimento que a faz nascer, da essência de toda a literatura; e assim todos os seus fios convergem para a ponta mais fina — singular, instantânea, e no entanto absolutamente universal — , para o simples acto de escrever. (…) silenciosa, cautelosa, colocação da palavra sobre a brancura do papel, (…) ela não pode ter nem sonoridade nem interlocutor, (…) nada mais tem a dizer, nada mais a fazer do que cintilar no fulgor do seu próprio ser” (op. cit., p. 393-4).

Mas essa distração relativa ao itinerário histórico do vocábulo — compreensível, como meio de afirmar determinada concepção histórica de literatura, conforme assinalamos, ou mesmo perfeitamente desculpável, se perfilarmos a opinião corrente segundo a qual minúcias filológicas não passam de sobrecarga de que nos devemos aliviar — não é a única inconsistência da hipótese nominalista. É que também não procede sua afirmação — aliás derivada da “distração” mencionada — de que “… é recente […] na nossa cultura o isolamento de uma linguagem particular cuja modalidade própria é ser ‘literária’ ” (Foucault, op. cit., p. 393). Vejamos por quê.

Duas passagens muito conhecidas, logo na abertura da Poética de Aristóteles, deixam bastante claras questões com certeza embaraçosas para aquela orientação, uma vez que afetam os seus dois esteios conceituais correlativos: 1ª – a existência de traços específicos de certa modalidade discursiva que hoje chamamos literatura, bem como o empenho de reconhecimento teórico-analítico desses traços, ao contrário do que pretende a hipótese nominalista, já vem de muito longe: “… se alguém compuser em versos um tratado de Medicina ou de Física, êsse será vulgarmente chamado ‘poeta’; na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e Empédocles, a não ser a metrificação: aquêle merece o nome de ‘poeta’, e êste, o de ‘fisiólogo’, mais do que o de ‘poeta’ ” (Poética. Porto Alegre: Globo, 1966. p. 69); 2ª – a existência desses traços independe da disponibilidade de uma palavra genérica que os nomeie, contrariando-se assim o pressuposto nominalista de que o designans é no caso em apreço coextensivo ao designatum: “… a arte que apenas recorre ao simples verbo, quer metrificado quer não, […] eis uma arte que, até hoje, permaneceu inominada” (ibid., p. 69).

Pode-se ainda acrescentar — num plano por assim dizer sociológico de argumentação — , a título de mais uma dificuldade para a hipótese nominalista da “invenção” recente da literatura, que a divisão social do trabalho sempre reconheceu de algum modo a “profissão” de escritor — e, portanto, sempre reconheceu a especificidade do produto do seu trabalho — , gratificando-o sob várias formas historicamente documentadas: a remuneração dos sofistas; a encomenda de epinícios e composições afins a poetas antigos; os prêmios atribuídos pelo Estado nos concursos de tragédias e comédias; a instituição do mecenato; as pensões concedidas por grão-senhores ou pelo Estado a literatos inválidos ou “aposentados”; enfim, diversas maneiras de reconhecimento cujas afinidades com os meios modernos tipificados no estrelato e no direito autoral parece que não podem ser contestadas.

No entanto, não obstante fortes indícios — se não evidências — históricos contrários à crença de que é recente o empenho teórico-analítico de isolar “… uma linguagem particular cuja modalidade própria é ser ‘literária’ ” (Foucault, op. cit., p. 393), é certo que o século XX tem-se revelado pródigo na proposição de teses acerca da suposta especificidade do discurso literário. Produziram-se, assim, diversos esforços para a depreensão dos traços que seriam próprios e definidores da literatura, por oposição a quaisquer outras manifestações verbais. Entre esses traços, num plano muitíssimo esquemático, cremos que é lícito dizer que avultam os conceitos de ficção e literariedade, cuja manifestação num texto sinalizaria para sua pertinência ao campo da literatura. Se quisermos ser um pouco menos genéricos, na impossibilidade de inventários exaustivos citemos alguns exemplos de teses sobre a fisionomia especial da literatura na trama dos discursos: intuição/expressão (Benedetto Croce, 1902); singularização do objeto (Viktor Chklovski, 1917); literariedade (Roman Jakobson, 1919); empregos científico e emotivo da linguagem (I. A. Richards, 1919); ambigüidade (William Empson, 1930); harmonia polifônica/qualidades metafísicas (Roman Ingarden, 1930); denotação e conotação (Yvor Winters, 1947); tensão (Allen Tate, 1948); desvio lingüístico (Leo Spitzer, 1948); forma — exterior e interior (Dámaso Alonso, 1950); escritura (Roland Barthes, 1953); plurissignificação (Philip Wheelwright, 1954); função poética (Roman Jakobson, 1960); conotação (Roland Barthes, 1964); discursos de re-presentação — mítico, onírico, literário (Luiz Costa Lima, 1973). Contemporaneamente, contudo, vem-se disseminando a idéia de que a investigação da especificidade da literatura deve ceder lugar a um estudo advertido para a extrema fluidez do conceito, decorrente muito mais de derivas históricas de identificação sempre muito complexa, do que de alguma necessidade absoluta ou universal imanente aos próprios textos (ver, por exemplo, as seguintes caracterizações do literário: mudança de horizonte [Hans Robert Jauss, 1967]; discurso ficcional [Wolfgang Iser, 1979]; imaginário/obra ficcional [Luiz Costa Lima, 1984]).

Agora, na suposição de haver rastreado o processo que conduziu ao significado moderno predominante da palavra literatura — conjunto de escritos líricos, narrativos e dramáticos especificáveis segundo as nacionalidades e dotados de propriedades que lhes conferem autonomia em face dos demais discursos — , convém mencionar outros sentidos hoje correntes, alguns fixados em usos lingüísticos consensuais e outros constitutivos de concepções bastante particulares de certos autores. Comecemos por estes últimos.

Paul Verlaine (1844-1896) inscreveu num famoso manifesto metrificado (de 1884) uma singular distinção entre literatura e verso (na acepção de elemento definidor da poesia), atribuindo à primeira um significado depreciativo que — tudo indica —  já então apresentava precedentes em utilizações comuns na língua. Eis a estrofe pertinente: “Que teu verso seja o bom acontecimento / esparso no vento crispado da manhã / que vai florindo a hortelã e o timo… / E tudo o mais é só literatura” (Arte poética. In: Gilberto Mendonça Teles [org.]. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petropólis [Rio de Janeiro]: Vozes, 1983. p. 54).

Benedetto Croce (1866-1952), por sua vez, em trama conceitual bastante específica, também propôs uma idéia de literatura em que se sobressai sua diferença em relação à poesia. A partir de distinções que faz entre o que chama “formas da vida espiritual e suas correspondentes expressões” (1967 [1935], p. 36) — expressões sentimental, poética, prosaica, oratória — , estabelece a diferença mencionada: “… se a poesia é a língua materna do gênero humano, a literatura é a sua condutora na civilização, ou, pelo menos, uma de suas condutoras para tal finalidade” (op. cit., p. 41); “A literatura não está entre as adversárias da poesia, ao lado da qual ela se coloca como amiga de menor envergadura (…) ” (op. cit., p. 49).

Finalmente, lembremos Jean-Paul Sartre (1905-1980), cuja distinção entre poesia e prosa, não obstante o ambiente conceitual específico em que se estabelece, apresenta analogias flagrantes com as concepções de Verlaine e Croce já referidas; assim, o que estes chamam literatura é perfeitamente assimilável à noção sartriana de prosa, como se pode inferir de asserções como a que segue: “Que há de comum entre eles [o prosador e o poeta]?  O prosador escreve, é verdade, e o poeta também. Mas entre esses dois atos de escrever não há nada em comum senão o movimento da mão que traça as letras. Quanto ao mais, seus universos permanecem incomunicáveis, e o que vale para um não vale para o outro. A prosa é utilitária por essência; eu definiria de bom grado o prosador como um homem que se serve das palavras. (…) a prosa não é senão o instrumento privilegiado de certa atividade, (…) só ao poeta cabe contemplar as palavras de maneira desinteressada (…) ” (1967 [1948], p. 18-9).

Quanto ao que chamamos sentidos fixados em usos lingüísticos consensuais, limitemo-nos a pouco mais do que ordenar o que se encontra registrado nos dicionárioos gerais relativamente às acepções da palavra literatura: 1 – arte de escrever; 2 – conjunto de obras distinto pela temática, origem ou público visado (donde expressões como “literatura infantil”, “literatura feminina”, “literatura policial”, “literatura regionalista”); 3 – bibliografia sobre determinado campo especializado de conhecimento (donde expressões do tipo “literatura sociológica”, “literatura jurídica”, “literatura médica”); 4 – expressão afetada, frívola ou sem o senso da realidade (donde frases como: “Tudo o que ele diz não passa de literatura.”); 5 – disciplina que estuda de modo sistemático a produção literária, segundo recortes e interesses cognitivos variados (donde expressões semelhantes a “literatura geral”, “literatura comparada”, “literatura portuguesa”, “literatura brasileira”).

Julgamos agora, considerando o percurso feito, poder arrematar este compacto sobre um dos termos de nosso vocabulário técnico a um só tempo mais primários e mais infensos a se deixar enredar numa exposição sistemática e contínua. Adotamos uma atitude descritiva que, além de nos ter permitido verificar a história do termo e apresentar seus significados contemporâneos — tanto os correntes quanto aqueles circunscritos à elaboração de alguns autores referenciais — , deu margem à introdução de um princípio para uma apreensão econômica da vasta controvérsia atual a seu respeito. Propusemos, assim, que duas hipóteses fundamentais se contrapõem hoje no empenho de definir literatura: a realista e a nominalista. Em seguida, procuramos demonstrar as dificuldades enfrentadas por ambas, não para rejeitá-las ou propor uma terceira, nova ou resultante da conciliação entre elas. Nosso propósito foi, isto sim, relativizar as hipóteses constituídas, ponderando sobre seus fundamentos conceituais. Por outro lado, a estratégia de conduzir a discussão pela trilha dos conceitos de base — e não pelo matagal dos chamados “conceitos de literatura” — nos poupou pelo menos de dois extravios: a desorientação no meio das sempre expansíveis concepções de literatura; a arenga partidária a favor deste ou daquele ideal de literatura.

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