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Termo intimamente ligado ao confessionalismo. Refere textos literários, que têm como centro a expressão da intimidade de um indivíduo; em termos discursivos, o texto irradia de um sujeito de enunciação, que se toma a si mesmo como objecto de conhecimento, acabando por actualizar o conhece-te a ti mesmo decorrente da sabedoria antiga e do exame de consciência cristão. Termo que surge, por vezes, em articulação com a autobiografia.

A auto-análise é uma prática religiosa cristã com vista ao aperfeiçoamento da pessoa. As confissões de Santo Agostinho são disso exemplo. Há ainda uma faceta profana, que tem a ver com o confessar-se, narrar a própria vida ou justificar-se aos olhos dos outros, prática comum a vários períodos literários. No entanto, falar de si, analisando-se, só se tornou prática corrente a partir do iluminismo (devido à Declaração dos direitos do homem) na medida em que, anteriormente, o confessionalismo estava reservado a uma minoria. A literatura confessional como um conjunto de textos de teor intimista é, por isso, uma produção típica da modernidade visto que o princípio dos tempos modernos é a subjectividade. Neste sentido, a centralidade adquirida pela subjectividade é justificada pela ausência de modelos, que caracteriza a modernidade na medida em que é uma época compelida a criar a partir de si própria tudo o que é normativo. A individualização de teor confessional surgiu da reacção moderna contra o homem abstracto do neoclassicismo. Jean-Jacques Rousseau é autor de uma obra precursora da literatura psicológica e confessional moderna, Les Confessions (1782) em que o autor afirma a diferença redical do seu eu (“um homem em toda a verdade da natureza”). É um olhar sobre si mesmo marcado por uma sinceridade, que ultrapassa tudo quanto se conhecia até então em matéria de humildade e de renúncia pessoal. Não se trata já de um homem frente ao julgamento divino mas de um ser humano perante a hipocrisia da ordem social e as adversidades da existência.

A consciência individual é, pois, central na literatura confessional. O estilo das obras costuma ser divagante e emocional (concretizado mais frequentemente na narrativa) visto que o discurso decorre de um entendimento da personalidade como um feixe de contradições e de paixões. Esta paixão individualista encontra-se sobretudo no confessionalismo romântico patente em todas as literaturas europeias em que a expressão do eu afirma muitas vezes uma personalidade e um modo de vida em luta com a sociedade. Este entendimento do confessionalismo irá criar uma tradição contestatária (por vezes com laivos antiburgueses) cuja manifestação mais evidente é a do herói romântico, figura do rebelde sujeito a situações e a emoções extremas. No caso português, estes aspectos são notórios na obra de ficção narrativa de Almeida Garrett (1799 – 1854), Viagens na Minha Terra (1845 – 1846). É considerado um livro “inclassificável” exactamente pelo que há nele de discurso digressivo por parte de um narrador que quer dialogar com o leitor, não se furtando à intimidade. Mas há ainda um confessionalismo involuntário na configuração do protagonista Carlos, máscara ficcional do próprio autor.

O confessionalismo é, por vezes, entendido como a literatura do eu. Em termos literários, tal atitude narrativa consubstancia-se no narrador autodiegético, o que relata as suas próprias experiências como personagem central da história. O registo de primeira pessoa gramatical, na literatura confessional, cria a coincidência entre narrador, protagonista e autor empírico. O facto de se tratar normalmente de uma narração ulterior em que os acontecimentos estão dispostos numa versão definitiva delimita significativamente a noção de confissão, quando entendida como auto-revelação do sujeito. Por um lado, a divisão do sujeito em narrador e personagem obriga a um desfasamento, que atinge o cerne da revelação individual. Por outro lado, a distância temporal (mas também afectiva e outra) leva à descoincidência entre o eu-narrador e o eu-personagem. Ao confessar-se mais tarde, o eu já não é o mesmo na medida em que as suas circunstâncias já são diversas.

A literatura confessional moderna de cariz romântico não questiona a distinção entre a obra e o seu autor. A sinceridade da experiência individual posta em discurso literário visa sobretudo a vida do autor, esquecendo o texto. De facto, vários textos confessionais, mesmo muito mais recentes, são considerados como “documentos humanos”; são os casos de De Profundis (1905) de Oscar Wilde, Cartas de Katherine Mansfield, Prosas Perdidas de Manuel Laranjeira, obras apresentadas com essa designação numa colecção da Portugália de meados da década de 60 do presente século. Sabemos que alguns dos autores escreveram tais textos com o desejo de deixar atrás de si um legado de verdade. Outro não é o intuito inicial, sobretudo porque o autor quer explicar-se enquanto pessoa ao seu público já formado pela leitura de obras inequivocamente literárias. Mas tais escritos revestem-se logo de uma ambiguidade na medida em que, apesar do relato verídico, o autor pode perfeitamente ficcionalizar passagens da sua vida, não havendo nada que o impeça de tal. Esta ambiguidade leva a distinguir a sinceridade estética da humana.

A noção do que constitui revelação de um sujeito altera-se significativamente com a psicanálise. A suposição de o ser humano ser tal como se vê a si próprio é problematizada pela descoberta do inconsciente. A partir daqui, é relativamente claro que todos os autores se revelam quer queiram quer não e que uma confissão pode acarretar insinceridades involuntárias. As literaturas europeias oiotocentistas e finisseculares deram conta, entre muitos outros aspectos, da passagem da sinceridade à autenticidade. A ideia de sinceridade é esvaziada progressivamente da carga de sentimentalismo e de confessionalismo que lhe atribuíra o romantismo. De facto, o simbolismo intensifica o subjectivo até ao auto-esquecimento total. Nietzsche, contemporâneo dos simbolistas, invoca, nas suas reflexões, uma subjectividade descentrada, liberta de todos os constrangimentos da cognição e de todos os imperativos da utilidade e da moral. O a-historicismo de cariz niilista, muito finissecular, cria agora uma linha de demarcação entre a literatura dominante e a minoritária.

A ideia de sinceridade – intrínseca ao confessionalismo – surge cada vez mais como uma convenção entre outras. Em arte, não há mentira nem verdade. A literatura confessional é fortemente questionada pelos movimentos literários do século XX. O modernismo problematizou o eu de modo a desacreditar a sinceridade, agora vista como o oposto da literatura. O valor da literatura já não está na transposição da experiência humana e o biografismo sofre, então, um duro golpe. Proust é um dos autores que, no princípio do século XX, se insurge contra a relação directa entre a pessoa do autor e a sua obra. Contre Sainte-Beuve (1954), conjunto de textos críticos da autoria de Marcel Proust, rejeita o método biografista de Sainte-Beuve e afirma o valor insuperável da personalidade artística, contrapondo-se às convenções sociais. Proust desvaloriza a inteligência como manifestação de senso comum para dizer que cabe ao instinto o primeiro lugar na formação da sensibilidade e do talento do artista. A matéria da arte emana do eu profundo do artista, que se distinge do eu exterior. Diferença não perceptível para Sainte-Beuve, que não vê o abismo que separa o escritor do homem do mundo e que confunde a conversação com a literatura. Proust reformula a tradição contestária, aprofundando-a ao demonstrar a inutilidade do conhecimento da biografia do escritor para o entendimento do texto literário. Na literatura portuguesa, é sobretudo José Régio, que adopta tal distinção, reafirmando a independência do escritor face ao mundo social. Mas é João Gaspar Simões, que a consagra na crítica literária como convenção presencista em O Mistério da Poesia (1931).

Os modernismos reivindicam, de facto, a autenticidade na arte. O eu pode ainda ser central no texto literário mas é uma entidade complexificada pelo desprendimento, que frequentemente acarreta a despersonalização, como é bem evidente na poética de Fernando Pessoa. O período modernista desvincula a identidade poética da identidade pessoal. É o caso da correspondência entre Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Apesar das cartas trocadas poderem ser lidas também como ficção, ressaltam aspectos de confessionalismo pessoal nelas, que ficam do lado da realidade e não da literatura.

A impersonalidade tem já, no entanto, predecessores mesmo no período romântico como Keats. Segundo este autor, o poeta não tem personalidade. É da sua autoria o conceito de “capacidade negativa”, que faz do poeta um camaleão. A reivindicação de uma não identidade para o poeta abre as portas à verdade da imaginação e à ironia. A ironia, que conquista o direito de cidadania na literatura nos finais do século XVIII, representa uma forma de reconhecimento de que o mundo é paradoxal na sua essência e de que a expressão completa da realidade é impossível. O ironista recusa a certeza, as ideias feitas e representa o mundo como um jogo de oposições sem solução à vista. Certos romances de Camilo Castelo Branco, como Coração, Cabeça e Estômago (1862), são exemplos felizes da ironia, que veicula uma atitude ambivalente do autor face a algo que lhe foi sempre caro, o próprio romantismo.

A aventura moderna do confessionalismo tem sido remetida para fora da literatura ao longo do século XX porque uma das noções mais espalhadas na teoria da literatura contemporânea é a autonomia dos textos literários. A doutrina da centralidade do texto rejeita a referência à realidade natural e social, que, no entanto, o torna possível. O formalismo e o estruturalismo são exemplos de uma teoria literária (fortemente motivada por modelos cientificistas), que analisa o discurso literário na sua formalidade retórica em detrimento da força referencial. A literatura confessional é, então, uma das manifestações da força referencial, tornada excrescente.

Não é apenas a teoria, que expulsa o confessionalismo da literatura entendida como linguagem artística. O carácter impessoal, neutral do texto literário é inscrito em inúmeras obras, que reiteram a dissolução da personagem, o enfraquecimento do ser e da realidade a partir de uma atitude imaginativa e irónica. É uma literatura típica do último pós-guerra, que se desenvolve em contextos sócioculturais marcados pela crise do humanismo. O hermetismo da obra literária decorre, frequentemente, de uma indiferenciação das componentes textuais. São exemplos portugueses os romances O Delfim (1968) de José Cardoso Pires, A Noite e o Riso (1969) de Nuno Bragança, Finisterra (1978) de Carlos de Oliveira, Signo Sinal (1979) de Vergílio Ferreira. Os narradores contemporâneos, cosncientes da multiplicidade de universos existentes na realidade, só ousam descrever fragmentos com a máxima prudência. O leitor caminha também com precaução entre os obstáculos a uma leitura linear tornada impossível. O princípio da indeterminação da referência (formulado por Quine e generalizado por Hilary Putnam) afirma que cada mundo do universo pode ser descrito por um número considerável de livros diferentes. Um universo da ficção é composto de uma base, que é um mundo real, rodeada por uma constelação de mundos alternativos. Nesta sociosfera de incerteza e de multiplicidade, a possibilidade do confessionalismo é limitada pelas dificuldades ontológicas da ficção.

Na década de oitenta do século XX, assistiu-se à crítica da teoria, que estabelece a autonomia dos objectos semióticos (como são considerados os textos literários), chamando a atenção para outros domínios dos estudos literários como as relações discursivas entre o texto e seus contextos sociais e culturais, a recepção das obras. É o caso da filosofia da ficção, que analisa as questões da verdade literária, da natureza da ficcionalidade, da distância e das semelhanças entre literatura e realidade, como é exemplo o trabalho de Thomas Pavel, Fictional Worlds (1986). No momento civilizacional em que nos encontramos, finissecular outra vez, é difícil o ressurgimento da literatura confessional porque este género se democratizou e, como tal, perante a autonomia da linguagem literária como artística, surge como vulgar e demasiado ingénuo. Deu-se, por isso, a saída do confessionalismo da literatura pela trivialização das confissões da vida íntima de protagonistas da cena cultural contemporânea: autobiografias de actores de cinema, memórias de políticos, biografias autorizadas a partir de confissões de gente famosa, etc..

{bibliografia}

Ferraz, Maria de Lourdes A., A Ironia Romântica, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1987; Fokkema, Douwe W., História Literária – Modernismo e Pós-Modernismo, Vega, Lisboa, s/d.; Habermas, Jurgen, O Discurso Filosófico da Modernidade, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990; Lejeune, Philippe, Le Pacte Autobiographique, Seuil, Paris, 1975; Monteiro, Adolfo Casais, Estrutura e Autenticidade na Teoria e na Crítica Literárias, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1984; Pavel, Thomas, Fictional Worlds, Harvard University Press, 1986; Proust, Marcel, Contre Sainte-Beuve, Gallimard, Paris, 1991; Régio, José, Páginas de doutrina e crítica da “presença”, Brasília Editora, Porto, 1977; Sena, Jorge de, “As “Confissões” de Rousseau e o Problema da Sinceridade”, prefácio a Confissões de Jean-Jacques Rousseau, Relógio d’Água, Lisboa, 1988; Simões, João Gaspar, O Mistério da Poesia, Inova, Porto, 1971.