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Os estudos de cinema, integrados nos curricula de humanidades, só muito recentemente, já na última década do século passado, começaram a constituir programas de algumas cadeiras de cultura, nas licenciaturas portuguesas, muito em especial nas áreas de estudos anglo-americanos. É óbvio que a integração desses estudos, na área, se realizava à semelhança do que se praticava nas universidade americanas e inglesas, no desenvolvimento que as humanidades tiveram naqueles países, dentro de um novo entendimento disciplinar que teve como base a afirmação e pertinência dos estudos culturais tal como se consolidaram a partir de Raymond Williams [“… Um grupo de intelectuais marxistas britânicos – como Raymond Williams, Edward P. Thompson e Richard Hoggart – destacou-se por ter a preocupação de tentar reformular o conceito de cultura, de forma que este novo conceito os ajudasse a entender as transformações culturais pelas quais a Europa passava naquela época e, principalmente, a Inglaterra, que enfrentava uma crise política e económica. Assim, esses pensadores fundaram uma nova disciplina, que ficou conhecida como “estudos culturais”. cf. Raquel Sousa Lima http://www.historia.uff.br/cantareira/edic_passadas/V8/artigo02.htm].

Quanto à perspectiva da relação assumida dentro dos estudos comparatistas de literatura, cremos que essa prática não tem tradição, constituindo-se, de algum modo, como uma novidade no terreno dos estudos interartes. Entre nós, alguns trabalhos académicos, ou mesmo investigações feitas na área da relação intersemiótica, já existem. É a essa área de estudos que pertence, cabalmente, uma disciplina que  coloque no seu âmbito e desenvolva uma das vertentes mais prometedoras das possibilidades de inovação: a dos estudos da intersemioticidade, sem esquecer o horizonte da pluri ou da multisemioticidade de qualquer das linguagens artísticas. Encontramos, em Jorge Urrutia, por exemplo,  uma reflexão sumária  dos estudos a que nos referimos, que nos parece adequada, tendo a sua perspectiva a vantagem de se reportar, predominantemente, a um espaço cultural muito  próximo do nosso:

“Sem dúvida que  a introdução do conceito de intertextualidade modificou o modo de conceber a relação do cinema com a literatura. A noção de texto primeiro da literatura comparada ampliou-se até poderem ser compreendidos, nela, textos não exclusivamente literários. São vários os caminhos que  pode tomar o estudo das relações do cinema com a literatura […] (in Sánchez Noriega, 2000: 12).

Podem enumerar-se alguns tópicos que servem para estabelecer as matérias disciplinares principais, dentre do grande território de uma disciplina comparatista de Literatura e Cinema: o dos estudos dos contactos de todo o tipo que os escritores estabeleceram com o cinema, desde as suas origens, deixa perceber a já longa história das relações que é, no fundo, a que vai do cinematógrafo às versões digitais e domésticas dos filmes, relação essa que pode mesmo ser encarada como uma via complementar da análise dos textos literários; também em torno das adaptações de obras literárias para o ecrã há uma área de estudos importante, desde o efeito estatístico da sua frequência, até às consequências estético-poéticas, sociológicas e ideológicas que daí advêm; também é importante que se note, como tópico, que o cinema proporcionou à literatura teóricas possibilidades de teóricos novos géneros que vão do “cine-romance” de Alain Robbe-Grillet, ao “poema cinematográfico” resultante da prática de muitos poetas posteriores ao advento do cinema; e, entre os mais importantes temas, deve constar o da adaptação, quer da literatura ao cinema, já tradicional, quer do cinema à literatura.

Observa-se que os modernos (ou pós-modernos) “gestos de ruptura relativamente à tradição, pela criação absoluta de um novo” que se instaurasse como “tradição” (Octávio Paz), enquanto cinema – que foi um dos modos mais produtivos de o cinema se relacionar, quando apareceu, com as vanguardas literárias e com os modernismos, então no apogeu –, não se tendo dado a partir da produção nacional, o “diálogo” entre a literatura e o cinema, em Portugal, registou-se, maioritariamente, entre a literatura portuguesa e o cinema americano – será interessante determo-nos, no entanto, sobre o fenómeno. Tanto quanto é do nosso conhecimento, o primeiro discurso crítico a apresentar os sinais dessa relação é o  de Baptista-Bastos, em O Filme e o Realismo, sempre como dependência, e nunca como interacção. O que também, nos tempos mais recentes, não nos deve parecer tão peculiar, dada a dominância que os modelos estéticos/poéticos da produção cinematográfica americana vêm tendo em todo mundo.

Nas relações que o cinema mantém com a literatura, a dominância do modelo narrativo e dos próprios parâmetros do romanesco, é notória. E essa notoriedade revela-se desde os primórdios do cinema, nos textos teóricos que se fizeram como produção  poeticamente  reflectida. Em 1926, Boris Eikhenbaum, além de afirmar a maior facilidade da adaptação do romance ao cinema do que ao teatro, enumera os grandes escritores russos que “foram levados” ao ecrã (Eikhenbaum, in Albèra, 1996:204; cf. tb. Sánchez Noriega, 2000: 32). A questão da relação com a poesia lírica, quase sempre desenvolvida episodicamente nalgumas experiências e abordagens teóricas especulativas, não se tem apresentado, por isso, tão frequentemente. No entanto, Eikhenbaum, no artigo que acabamos de citar, sublinha o facto de a montagem cinematográfica propiciar ao espectador um discurso interior, concluindo ele que, se o cinema, como muitos afirmam na sua época (e mesmo ainda hoje) “se opõe à cultura da palavra, é unicamente no sentido em que a palavra está escondida nele e é necessário descobri-la” (Eikhenbaum, in Albèra, 206-207; cf. tb. Sánchez Noriega, 2000: 39).

Retoma ele, na época em que se fundam as grandes concepções teóricas do cinema na União Soviética, sobretudo com Eisenstein e Pudovkine, uma noção que já tinha fascinado, nos primórdios dos anos 20,  os surrealistas  e os cineastas franceses seus contemporâneos, frequentemente designados por “impressionistas”. As perspectivas que Germaine  Dulac sugere, quando se refere ao “poema sinfónico em que o sentimento explode, não em factos, não em actos, mas em sonoridades visuais”, quase em uníssono com D’Annunzio, ao afirmar que o cinema deve dar aos espectadores as “visões fantásticas, as catástrofes líricas e as mais ousadas maravilhas”, ou com Louis Delluc, que admirava nos filmes “a força nova da poesia moderna” (cf. in Clerc, 1993: 13), chamam-nos a atenção para uma dimensão da dialéctica entre a palavra (oral e escrita) e a imagem icónica, levada à máxima expressão paradoxal,  resultante do discurso do cinema, que, posteriormente, não conheceu muitos desenvolvimentos teóricos. Desenham-se, assim, as viabilidades de um cinema arvorando as máximas potências de um lirismo incandescente, profético e capaz de acrescentar à palavra novas dimensões da expressão e do dizer.

Eisenstein inscreve, frequentemente, o cinema na perspectiva geral dos sistemas de expressão e de significação que assentam na escrita ou na figura. Para isso, insiste em  buscar, nas formas não alfabéticas, um modelo linguístico que não se subordine à língua falada, tendo em vista uma concepção da escrita que presida à formulação teórica da montagem.  Não andamos longe, como se vê, de uma concepção da imagem que a aproxima do elemento mínimo de uma língua natural. O que fica em aberto, numa discussão que talvez ainda não esteja encerrada nos nossos dias, é se esse elemento mínimo se pode apenas enquadrar no nível de uma primeira articulação, equivalendo, assim, ao signo, ou se pode  mesmo integrar-se no de uma segunda articulação, equivalente ao fonema e/ou ao grafema – como significante puro.

Tal perspectiva assume duas vertentes, quase sempre na base de novas perspectivas tendentes a valorizar o cinema como linguagem, mas frequentemente pouco exploradas enquanto problemáticas específicas que poderiam elucidar as relações entre a poesia e o cinema. Uma, representada pelos surrealistas e “impressionistas” do cinema, que parece dar a primazia à imagem na articulação tensa e dinâmica com a palavra, o que podemos dizer, evocando a definição que Breton faz de surrealismo: “expressar – verbalmente, pela palavra escrita ou por qualquer outra forma – o funcionamento do pensamento no seu fluir”, que se apresenta como a realização explicita da conexão metafórica entre a tecnologia e o jogo favorito do surrealistas, centrado na escrita automática, «verdadeira fotografia do pensamento» (Breton) e análoga ao conceito de fotogenia dos impressionistas; a outra, ligada à prática da montagem, que Eisenstein assume como uma das pedras de toque, na fundação da sua teoria do cinema, torna-se a base da conceptualização que leva a perspectivar o cinema como uma linguagem. (Seria lícito ver, neste conceito tão caro aos impressionistas franceses do cinema, qualquer coisa que, referindo-se à especificidade do cinematográfico, se aproximaria do conceito de literariedade em relação à literatura, para marcar o que no cinematográfico é  especificamente fílmico, apesar de tudo. No entanto, é de reconhecer que o conceito de fotogenia nunca foi teoricamente elaborado ao nível a que o foi o de literariedade. Assim, compreende-se que, com toda a facilidade, se tenha perdido o sentido da sua designação de um algo de inefável mas específico que, em relação ao movimento, se constituiria contra o instante do fotograma, impondo-se como imagem em pose (a diva passa a ser o conteúdo preferencial da fotogenia) e que, contra os limites do verbo,  ostentaria a luminosidade da sua presença, – um dar-se a ver que prescindiria da palavra para gerar sentido a partir de si aí. Note-se, ainda, que a designação de impressionismo em relação ao cinema  não é coincidente coma que se usa em relação à pintura, embora ambas as “escolas” – e a de cinema nunca existiu de facto, a não ser como confronto com o expressionismo, sobretudo cinematográfico, alemão – possam partilhar “poéticas da figuração” nalguns pontos similares.)

O fenómeno cultural de massas, que o cinema representou, encontra-se associado às artes do palco ou das imitações mimadas, sendo fenómenos empiricamente observáveis, desde a origem do animatógrafo, as alternâncias de espectáculos de projecção e de representação em salas de cineteatro. A questão da dialéctica entre a palavra e a imagem, pela intensificação da pertinência do significante poético, perde-se, nas abordagens que se vão fazendo às relações entre a literatura e cinema. Por se ter manifestado, de imediato, muito mais ligado à dimensão espectacular e de acção representada do teatro, de modo evidente, e à poética da narrativa em geral e do romance em particular, de modo menos ostensivo, mas mais perene e profundo, a relação deste com o cinema ganha importância no discurso teorizante. Seria exemplo deste último vínculo a importância que lhe atribui o próprio Eisenstein, por exemplo, num artigo cuja tradução francesa foi publicada em 1971, no nº 231 dos Cahiers du Cinéma: “É […] de Dickens, do romance vitoriano, que nasce a primeira linha de expansão estética do  cinema americano, tendência ligada ao nome de David Wark Griffith”. Com isso, os cineastas procuram reforçar o valor do cinema como mensagem cultural, sem deixar de assegurar o valor do fenómeno espectacular. Ou, dito de outro modo, procuram : 1) prestigiar culturalmente o cinema, fazendo-o associar-se a um género já canonizado da literatura; 2) tirar proveito dos elementos que, no romance, sendo narrativa, já tinham feito dele  o género literário adoptado pela indústria cultural de massas(cf. Gilson, 1970: 110); 3) distingui-lo da dimensão performativa do teatro, demarcando-se de alguns procedimentos que, na época, faziam dele “simples instrumento de registo de textos ditos pelos actores teatrais” – acerca desta complexa questão é proveitoso consultar a entrada “Mise em scène” do Dictionnaire théorique et critique du cinéma (Aumont et Marie, 2002, Nathan, Paris) – , inserindo-o, como variante específica, entre os diversos géneros culturais do espectáculo.

Por outro lado, não podemos ignorar que, com a adaptação, o fenómeno da transtextualidade, no sentido que Genette lhe dá, assume novas proporções e tende a aparecer naturalizado pela própria apetência de fruição cultural. A imagem de uma luta pela sobrevivência enuncia-se sob a perspectiva mais positiva segundo a qual a transposição se pode realizar.  Restaria acrescentar que o guião nos parece ser um dos objectos fundamentais a serem considerados pela reflexão narratológica. Não podendo caracterizá-lo satisfatoriamente aqui, onde apenas sumariamos, devemos adiantar, apesar de tudo, que o guião, em todas as suas fases de elaboração, da sinopse à planificação final, coloca-se-nos  como objecto central a toda e qualquer abordagem comparatista às relações entre a literatura e o cinema, que se pretenda séria e consequente. Por um lado, ele é um objecto textual que, embora quase sempre esquecido, permanece nos arcanos da referência e da subjacência,  mais silenciado do que os textos de teatro. Por outro lado, essa mesma leitura, a ser culturalmente validada, gera problemas surpreendentemente novos.

{bibliografia}

Albéra, François (org.), 1996, Les Formalistes russes et le cinémapoétique du film

(antologia), Nathan, Paris

Baptista-Bastos, 1962, O Filme e o Realismo, Arcádia, Lisboa

Clerc, Jeanne-Marie, 1993, Litterature et cinema, Nathan, Paris

Gilson, Étienne, 1970, Cultura e sociedade de massa, Morais, Lisboa

Jorge, Carlos J.F., 2011, Histórias , Imagens e Letras, Apenas Livros, Lisboa

Peña-Ardid, Carmen, 1996, Literatura y cine, Cátedra, Madrid

Sanchez Noriega, 2000, De la literatura al cine, Paidós, Barcelona