Select Page
A B C D É F G H Í J K L M N O P Q R S T Ü V W Z

Medida contra a literatura em geral, (para adultos), a literatura infantil enferma de um estatuto de menoridade e de marginalização dos canônes, que encontra expressão na sua tripla concepção como ficção popular, como material pedagógico, e/ou como mercado do livro para crianças. Para a literatura infantil confluem os interesses adultos de didactizar e controlar a criança, pela transmissão cultural de certos textos e de certos valores, bem assim como os interesses económicos de uma indústria de comercialização de livros para crianças que floresce com a imprensa, a partir do século XVIII, e se revela, no século XX, muito rentável. De acordo com a primeira preocupação, a literatura infantil surge associada às tradições literárias dominantes e à crítica destas, tanto mais que estas se encontram ligados à escolarização e formação das crianças das classes médias, enquanto que os interesses económicos sempre visaram ligar a literatura infantil à indústria, tendo consequentemente convidado a um olhar de desconfiança e a uma apreciação negativa dos críticos de literatura, atitudes acentuadas, no século XIX e XX, pelo alargamento do livro infantil às crianças das classes trabalhadoras. Subjacente a ambas posições, que definem a literatura infantil como material essencialmente pedagógico e estético e como um sub-produto da literatura, encontra-se uma complexa relação entre adulto e criança, determinada pela concepção cultural de infância em cada época histórica e espaço cultural. Basicamente, poderíamos considerar dois modos gerais de conceptualização crítica da literatura infantil: um que a mede contra a literatura em geral e outro que procura considerá-la na sua espeficidade própria. As teorias que procuram definir a literatura infantil a partir da literatura para adultos classificam a literatura infantil como forma simplificada de ficção que serve os leitores menos experientes como um patamar para aprendizagens estéticas, linguísticas e culturais futuras e configuram-na como opção de leitura das crianças em vez de marcas de um texto: os bons textos de literatura infantil serão os que tanto apelam à criança de 8, como ao adulto de 80, anos, afirmava C. S. Lewis; os bons autores de livros para criança são os que escrevem para si próprios ou para a criança que foram; ou então apresenta-se a literatura infantil como uma versão escapista dos temas da literatura para adultos, como Carpenter (1985), o qual considera que a ficção para crianças representa uma versão ideal do mundo, enquanto que a ficção adulta se proporia representá-lo tal como ele é. As críticas feministas (vide Paul: 1987 e Foster & Simons: 1995) acusam as comunidades literárias e educativas, de orientação patriarcal, de não terem sabido explorar as potencialidades subversivas e as mensagens em código que as mulheres escritoras emitiram na escrita para jovens, tornada expressão alternativa e marginal dos canônes literários. No essencial, a vertente literária propõe que encaremos a literatura infantil como um capital cultural e estético, a combinar com o da família e da escola, duas instituições chamadas formalmente a construir a noção de criança e de infância como um estádio à parte da vida adulta, carente de acompanhamento e de policiamento; enquanto literatura, a ficção para crianças é chamada a promover o enriquecimento pessoal, moral e estético dos jovens, como um estágio para aprendizagens futuras. Alternativamente, a literatura infantil é proposta como um género literário, com características e convenções próprias (Inglis: 1981), ou munida de especificidades narratológicas, como defende Barbara Wall (1991), ao propôr que se encontre, na própria estrutura narrativa, a espeficidade do livro infantil. Nos livros infantis, ou naqueles que têm constituído a literatura infantil, confrontam-se relações de três tipos entre narrador e leitor implícito: o narratário pode ser singular (o adulto que escreve para o narratário criança), duplo (o escritor adulto procura juntar leitores adultos e infantis, alternadamente) e dual (os adultos adoptam um modo narrativo que lhes permite abarcar simultaneamente o narratário adulto e o narratário criança). Assim, reside no próprio texto a marca da sua adequação a um leitor criança, o que torna a literatura infantil definível a partir das estruturas textuais e já não em função do que encontra lugar como leitura das crianças. Serão literatura infantil, i.e. textos para crianças, os que a constroem diegeticamente como leitor implícito.

Contudo, a definição de um narratário infantil, de um leitor criança que é chamado a partilhar as heranças culturais dos adultos, ou mesmo a configuração intra-diegética de um protagonista infantil, implicam sempre uma determinada concepção cultural de criança nas mentes de críticos e de autores, que passa inquestionada, e ignorada, de adulto para criança, num processo de marginalização da criança, uma vez que a versão dela que os adultos ficcionalizam textualmente se constitui estratégia de domínio da criança. Jacqueline Rose (1992) considera que a literatura infantil camufla a relação impossível entre adulto e criança, em que o primeiro é sempre autor, dador, criador e o segundo, a criança, leitor, produto e recipiente. Todo o texto para crianças, mesmo quando oriundo de uma cultura infantil, é preparado por adultos e constitui-se uma estrutura fundamental de mediação da experiência de infância, vivida ou observada, por adultos, que condensa, quando escrita a pensar no gosto da crianças, representações narrativas dos desejos delas, os quais, sob pressão de outros aparatos reguladores, levam as crianças a auto-produzirem-se à semelhança das imagens e concepções que as cercam e em função de versões delas próprias tornadas culturalmente mais plausíveis. Os discursos teóricos contemporâneos assinalam, por esta razão, a necessidade de uma teoria da criança-sujeito, capaz de ter voz sobre o que para ela é escrito. Peter Hunt lança a ideia de uma crítica centrada na criança (childist), estabelecendo como critérios o do gosto e prazer de crianças leitoras, independentemente de os textos corresponderem às intenções estéticas, culturais ou literárias dos adultos, (autores, leitores, críticos), ou de constituirem um apoio pedagógico para outras aprendizagens, configurando desse modo a literatura infantil à margem de questões de valor, tradição ou canône literários. Desenvolvendo a ideia de Hunt, Karín Lesnik-Oberstein (1994) debate a necessidade de a crítica de literatura infantil ter de resultar da negociação entre adulto e criança e encontra, em estratégias semelhantes às usadas pela psicanálise infantil, modos de entender as respostas e os critérios infantis, de leitores-criança, chamados a pronunciarem-se sobre o que é escrito e/ou comercializado para eles.

{bibliografia}

Peter HUNT (1994) An Introduction to Children’s
Literature
. Oxford and New York: Oxford University Press;
Peter HUNT (Ed.) (1996) International Companion Encyclopaedia
of Children’s Literature
. London: Routledge; Fred INGLIS
(1981) The Promise of Happiness. Cambridge: Cambridge
University Press; Karín LESNIK-OBERSTEIN (1994) Children’s
Literature. Criticism and the Fictional Child
. Oxford:
Oxford University Press; Jacqueline ROSE (1992) The Case of
Peter Pan or the Impossibility of Children’s Fiction
.
London: Macmillan (rev. edition; first ed. 1984); Morag STYLES,
Eve BEARNE & Victor WATSON (Eds) (1992) After Alice.
Exploring Children’s Literature
. London: Cassell; Morag
STYLES, Eve BEARNE & Victor WATSON (1996) Voices Off. Texts,
Contexts and Readers
. London: Cassell; Barbara WALL (1991)
The narrator’s voice. The dilemma of children’s fiction.
Basingstoke: Macmillan.