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Saída da revolta, da rebelião contra a situação de marginalidade à qual foi geralmente condenada, a literatura negra aparece como uma forma privilegiada de auto-conhecimento e da reconstrução de uma imagem positiva do negro. O conceito de literatura negra emerge da prórpia característica dos signos que estão em um perpétuo movimento de rotação: os signos que nos exilam podem ser aqules que nos constituem em nossa humana condição (cf. Octavio Paz, 1982). A apariação do que denominamos literatura negra está, pois ligada à compreensão desta rotatividade: um mesmo signo – negro – pode remeter à idéia de ofensa e de humilhação ou ser assumido com orgulho. A prática de um recentramento estético e cultural é a principal componente das literaturas negras, independentemente da língua através da qual se exprimem e do país de onde são originárias.

O fato de justapor um adjetivo à palavra literatura é sempre problenático na medida em que as etiquetas correspondem à necessidade de delimitar o conceito e circunscrever sua amplitude. Se as classificações fundadas na idéia de nação correm o risco de ser problemáticas, elas se tornam ainda mais nos casos onde a pertença a uma comunidade linguística ou étnica é mais significativa que a pertença a um país. Quando a classificação tem a ambição de dar conta do sexo (literatura feminina ou feminista) ou da raça (literatura judaica ou negra) dos escritores, as etiquetas correm o risco de tornarem-se heterofóbicas. Em estudos anteriores (Bernd, 1988), criticamos a definição de literatura negra associada à raça, ou simplesmente à cor da pele do autor. Tal classificação de tipo racial ou epidérmico é ideologicamente perigosa e cientificamente falsa.

Se as diversidades culturais não têm relação direta com as raças, é impossível, do ponto de vista científico, estabelecer relações entre uma determinada etnia e a produção de bens culturais. Não há, portanto, nenhuma correlação entre as características psicofísicas dos negros e as culturas por eles produzida. A hipótese de definir poesia negra pelo critério da cor da pele dos indivíduos foi portanto excluída de saída, dada a inexistência de fundamentos científicos que sustentem as correlações etnia/sensibilidade.

A segunda possibilidade seria escolher a temática como categoria para estabelecer o conceito de literatura negra. Este crtério seria também uma armadilha na medida em que a figura do negro, como escravo ou como homeme livre, emerge na literatura brasileira desde as primeiras manifestações literárias até asproduções mais recentes. O critério temático não teria pois funcionalidade: as contribuições de diferentes culturas africanas sincretizaram-se a tal ponto que qualquer tentativa de decantá-las seria totalmente supérflua.

Qual seria então a justificativa da apelação literatura negra? Contrariamente ao que se passa no Caribe onde os escritores protestam contra os asfixiantes prefixos tais como: “negro-africano”, “afro-americano”, no Brasil, a expressão literatura negra corresponde a uma reivindicação da parte de bom número de escritores afro-brasileiros que concebem a prática da escritura literária como um espaço propício à enunciação da reconstrução identitária, em crise após a desctruição brutal representada por um longo período escravista.

Neste sentido, o único critério possível para conceituar uma escritura negra seria o critério discursivo: a emergência de um eu enunciador que se quer negro é o elemento-chave que singulariza as obras. O surgimento de um eu-enunciador que assume sua condição de negro e de brasileiro constitui um espécie de divisor de águas entre um discurso sobre o negro, que sempre existiu na literatura brasileira, e um discurso do negro que corresponderia ao desejo de renovar a representação convencional construída ao longo dos séculos, quase sempre carregada de preconceitos e de estereótipos.

A sabotagem da tradição, a inversão da ordem, de modo a alterar a situação que relegava a literatura ao espaço da sombra, orientaram sua trajetória cujo princípio fundamental não poderia ser outro que a reapropriação sistemática de um esquema referencial fundador que teria como conseqüência a delimitação de um novo território (Deleuze e Guattari, 1977). Será, portanto, sob o signo do marronnage cultural de que fala René Depestre que Calibã vinga-se de Próspero, inscrevendo no tecido poético os dispositivos de transformação ideológica da consciência individual. Esta consciência torna-se autônoma quando chega a libertar-se do discurso mistificador da dominação. Tal autonomia só estará, contudo, completa quando a poesia permitir pensar o mundo como aceitação da diferença e conseguir modificar o atual sistema de representação onde um é sempre o bárbaro do outro.

A importância da emergência do eu-enunciador que se quer negro não está apenas no fato de assinalar uma ruptura com o discurso social que negava os negros, mas também por marcar, de maneira definitiva, a tentativa de compreender o que significa ser negro nas Américas. Não sendo mais africanos, nem brancos, sentindo-se tratados como brasileiros de segunda classe, identificando-se apenas parcialmente com o cânone ocidental, praticando uma religião amplamente sincretizada, não restava outra saída aos descendentes de ex-escravos do que empreender – através da palavra poética – um lento processo de rememoração dos vestígios (la trace) de sua história e de resgate dos fragmentos de narrativas ancestrais para, a partir daí, iniciar o processo (inacabado) de redefinição identitária.

A preocupação de mostrar a cara, de convocar a comunidade para exorcizar seu complexo de inferioridade por ser negro, logo o exercício de afirmação individual e coletivo é, em nosso contexto, muito mais premente do que afirmar sua pertença à nação brasileira, como ocorre, por exemplo, com os poetas africanos lusófonos para os quais a urgência está em afirmar sua vinculação às nações que acabam de emergir autonomamente, após um longo período de passado colonial. Deste modo, raras vezes a preocupação com o nacional aflora na poesia negra brasileira, havendo freferentemente um sentimento de solidariedade para com os outros negros da América, um desejo de ultrapassar – em termos de identidade – as fronteiras do nacional.

{bibliografia}

BERND, Zilá. Literatura negra. In JOBIM, J.L., org. As palavras da crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992. P. 267-276.

BERND, Zilá. O que é negritude. São Paulo: Brasiliense, 1988.

BERND, Zilá. Introdução à literatura negra. São Paulo: Brasiliense, 1988.

DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Kafka: pour une littérature mineure. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

PAZ, Octavio. O arco e a lira: Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982.