Tipo de literatura que projecta, normalmente através do sonho, imagens fantásticas do mundo. As possibilidades criativas da literatura visionária são imensas, podendo ser reconhecida em um número elevado de géneros literários. O conceito restrito que aqui se descreverá diz apenas respeito à tradição visionária de carácter religioso, da Antiguidade à Idade Média, e a um tipo mais recente de exploração do imaginário criativo pelo uso de estupefacientes (a literatura produzida sob o efeito de drogas).
1. A visão positiva do futuro, de raízes utópicas, como base de toda a literatura visionária está presente desde logo nos mais antigos mitos da civilização ocidental. Por exemplo, Platão, no Livro X de A República, apresenta-nos o Mito de Er, uma alegoria sobre a punição dos maus e a premiação dos justos, que mostra que a literatura visionária pode ter uma função pedagógica: devemos viver com moderação de costumes, comportamentos e ideias.
O gramático romano Macróbio (século IV d.C.) estudou o papel dos sonhos e das visões diurnas na literatura e hierarquizou as narrativas visionárias em cinco níveis, de forma gradual: o nível inferior é o das narrativas que apenas pretendem agradar ao ouvido; segue-se o nível das narrativas de pendor ficcional, não adequadas à reflexão filosófica; o terceiro nível inclui as narrationes fabulosae, adequadas à busca da verdade moral da religião e capazes de suscitar a reflexão filosófica; no nível superior, encontram-se as narrativas que nos aproximam de Deus e do intelecto mais puro. A Idade Média conheceu livros de grande espiritualidade que ilustram estes dois últimos graus da literatura visionária: o elogio da vida contemplativa virtuosa e solitária em Boosco Deleitoso, de Frei Paio de Coimbra, obra com forte influência de Petrarca e onde se narra a peregrinação da alma em busca da salvação; o Horto do Esposo, obra de um monge português anónimo, que mistura representações da vida mística com histórias para deleitar; o exemplum do século XII Visão de Túndalo, narrativa de origem cisterciense escrita pelo irlandês Marcos e traduzida em português, por volta do século XV, por monges do mosteiro de Alcobaça. Este sermão visual, igualmente de cariz pedagógico, pretende mostrar aos vivos os castigos e recompensas que esperam os cristãos que serão julgados segundo os actos praticados na terra. O bom cristão não precisa temer o Inferno, porque, se agir correctamente, será levado directamente ao Paraíso. O cavaleiro pecador Túndalo percorre os três espaços do Além: Purgatório, Inferno e Paraíso e só se podia salvar se realizasse essa viagem iniciática. Ninguém se salva se não realizar uma viagem deste tipo, porque o homem medieval se via como um viajante (homo viator) eterno entre dois mundos: o lugar de todas as tentações, a terra, e o Paraíso, Reino de Deus. O objectivo da literatura visionária dos monges medievais é, invariavelmente, o de avisar pedagogicamente os homens sobre os castigos a que podem estar sujeitos se não praticarem boas acções. A iconografia medieval ilustrou bem esta pedagogia religiosa do castigo dos peados com Os Sete Pecados Capitais, de Bosch e O Juízo Final, de Fra Angelico.
A síntese de Santo Agostinho (visões corpóreas, espirituais e intelectuais) é outras das várias tentativas de classificação das representações visionárias. O tipo de representação que uma visão fantástica do mundo pode traduzir interessou os maiores estudiosos da psique do século XX, como Freud e Jung. Este distinguiu dois tipos de literatura: a psicológica e a visionária. A primeira recolhe experiências conscientes da vida do quotidiano e não possui nada de extra-ordinário; a segunda é um tipo de criação artística que envolve a participação activa da imaginação onde tudo é revirado: “Here everything is reversed. The experience that furnishes the material for artistic expression is no longer familiar. It is something strange that derives its existence from the hinterland of man’s mind, as if it had emerged from the abyss of pre-human ages, or from a superhuman world of contrasting light and darkness. It is a primordial experience which surpasses man’s understanding and to which in his weakness he may easily succumb. The very enormity of the experience gives it its value and its shattering impact. Sublime, pregnant with meaning, yet chilling the blood with its strangeness…nothing is missing in the whole gamut that ranges from the ineffably sublime to the perversely grotesque.” (Jung, The Spirit in Man, Art, and Literature, vol. 15, Princeton University Press; New Haven, 1959).
As características de uma literatura visionária assim definida podem ser resumidas aos seguintes pontos: 1) referência a elementos ancestrais; 2) representação de elementos fantásticos; 3) construção de cenários utópicos; 4) tradução de experiências sobrenaturais ou que ultrapassam o entendimento humano; 5) glorificação da experiência final para os que são merecedores de alcançar os mais sublimes lugares.
2. Existe no século XX — em particular, mas não em exclusivo se nos lembrarmos de toda a literatura do passado que foi produzida sob o efeito do álcool, por exemplo — um tipo de literatura que tem privilegiado as manifestações mais bizarras do mundo, sob o efeito de estupefacientes, em ambientes psicadélicos ou em celebrações de grupo com forte pendor místico e dionisíaco. A décadas de 1960 e 70 conheceram várias obras de inspiração lisérgica ou de outras fontes alucinogénias.
Aldous Huxley, Timothy Leary, Alan Watts, Jerry Garcia e John Lennon estão entre os mais conhecidos artistas que produziram uma literatura visionária singular, em clara oposição à tradição medieval, pelo total despreendimento do mundo e pela completa ignorância do poder da contemplação divina. Uma importante antologia do género está ainda em circulação, Hashish Club: An Anthology of Drug Literature, editada por Peter Haining, e lá encontraremos os autores citados. O Clube ainda hoje reúne por todo o mundo, mas na origem trata-se de um grupo de intelectuais franceses que realizaram experiências artísticas sob o efeito do haxixe ou do ópio para afirmar o poder da imaginação criadora.
Seria injusto reduzir este tipo de literatura ao momento histórico em que, a partir da década de 1960, se generaliza o uso de drogas. De notar que os artistas do século XIX, por exemplo, já nos haviam legado obra-primas literárias escritas sob o efeito do álcool e/ou de drogas. Decadentistas franceses como Théophile Gautier (Essai, 1844) e Charles Pierre Baudelaire (“Les paridis artificiels”, 1860) declararam os benefícios da escrita sob o efeito do haxixe; e Edgar Allan Poe não hesitou em descrever o seu processo de escrita como o resultado de visões alucinogénias: “Usually I had half filled the bowl of the hookah with opium and tobacco cut and mningled, half and half. Sometimes when I had used the whole this mixture I experienced no peculier effect; at other times I would have smoked the pipe more than two thirds out, when symptoms of mental derangement, which were even alarming, warned me to desist. However the effect proceeded with an easy gradation which deprived the indulgence of all danger. … I resolved to proceed by ‘degrees’. I would take a ‘very’ small dose in the first instance…. No doubt it was this very reeling of my senses — it was the dull delirium which already oppressed me, that prevented me from perceiving the incohereance of my — which blinded me to the folly of defining anything as either large or small where I had no preconceived standard of comparison.” (“Life in Death”, 1849).
Augusto Magne(ed.): Boosco Deleitoso, vol. 1, (Rio de Janeiro, 1950); Elizabeth A. Petroff (ed.): Medieval Women’s Visionary Literature (1986); Jacques Le Goff: O Imaginário Medieval (Lisboa, 1994); José Augusto Miranda Mourão: A Visão de Túndalo; da Fornalha de Ferro à Cidade de Deus (1988); Maria Clara Almeida Lucas: A Literatura Visionária na Idade Média (1986); Mauro Mancia: O Sonho como Religião da Mente (Lisboa, 1991); Mircea Eliade: Mitos, Sonhos e Mistérios (Lisboa, 1989; Sigmund Freud: A Interpretação dos Sonhos (Lisboa, 1999); Steve F. Kruger: Dreaming in the Middle Ages (1992); Studia Lusitanica, nº 1 (Lisboa, 1998).
http://www.revistamirabilia.com/tundalo.html
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