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Conceito fundado por Roland Barthes para se referir ao mundo da língua, entendido aqui como uma realidade dinâmica onde todo um conjunto de diferentes falares sociais se confrontam ininterruptamente no seio da sociedade. Será em Le plaisir du texte (1973) que Roland Barthes tenta definir os modos pelos quais diferentes sistemas ideológicos se relacionam dentro de um mesmo espaço socio‑político. Refere‑se‑lhes metaforicamente como sendo cada qual uma espécie de ficção ou de romance, possuído pelos seus próprios espectros e intrigas, alimentado por crises e conflitos mais ou menos latentes, povoado de personagens de recorte moral duvidoso ou exemplar. Dar‑lhe‑á voz um sociolecto particular bem demarcado dos restantes e que se reconhece apenas a si mesmo como válido, co‑habitando com os demais em permanente tensão. A existência social da língua acaba por se revestir, pois, de um carácter agonístico.

Fazendo eco de algumas teses estruturalistas, o ensaísta francês argumenta que a sobrevivência desse sociolecto num meio hostil dependerá, à semelhança do que sucede a nível do texto literário, de um grau de consistência interna que lhe ofereça alguma solidez conceptual. Mas igualmente importante para que o falar possa vingar em sociedade será aquilo que designa de classe sacerdotal, i.e., a plêiade de intelectuais, artistas, religiosos, políticos, encarregues de o partilharem entre si e de o divulgarem, atribuindo‑lhe assim um valor e um poder que de outra forma não teria.

Barthes, todavia, alerta‑nos para algo de não menor monta e que interfere na nossa leitura do real: cada língua vive a sua verdade tal como a constrói, permanecendo cega às verdades erigidas pelas outras línguas e lutando para alcançar entre elas uma posição hegemónica. Também já Nietzsche, admite‑o Barthes, havia calcorreado estes domínios em Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (1873) [Da Verdade e Mentira no Sentido Não-moral]. Nesse ensaio, o filósofo alemão explora a íntima relação existente entre o processo evolutivo da língua e a concepção do mundo. A determinado passo da sua crítica à sacralização da verdade lê‑se: “Wie die Römer und Etrusker sich den Himmel durch starre mathematische Linien zerschnitten und in einen solchermaßen abgegrenzten Raum, als in ein Templum, einen Gott bannten, so hat jedes Volk über sich einen solchen mathematisch zerteilten Begriffshimmel und versteht nun unter der Forderung der Wahrheit, daß jeder Begriffsgott nur in seiner Sphäre gesucht werde.” [“Do mesmo modo como os romanos e os etruscos dividiram os céus com linhas matemáticas fixas e, como num templo, confinaram um deus em cada um dos espaços assim delimitados, assim também cada povo tem sobre si um firmamento de conceitos dividido matematicamente e sabe, tal como a Verdade o exige, que cada deus‑conceito deve ser procurado apenas dentro da sua esfera.”] Esta verdade, como se pode depreender das palavras de Nietzsche, não tem origem em qualquer entidade metafísica; decorre, pelo contrário, do desgate natural que o tempo impõe sobre a própria língua e em particular sobre todo o conjunto de metáforas e de outras figuras de estilo que brotam do seu uso social. Os conceitos que norteiam e normalizam a existência dos indivíduos em sociedade mais não são do que o restolho de tais metáforas e imagens, já apagadas, erodidas, que outrora animaram a fantasia humana. Cristalizaram‑se e fazem agora parte de um edifício de crenças que alberga a consciência de si (Selbstbewußtsein). É esta mesma verdade, talhada à medida da ambição humana—a qual, segundo Nietzsche, levaria o homem conceber o Universo como metamorfose do seu próprio corpo—e sujeita às limitações impostas pela palavra, que preside, afinal, ao estabelecimento das instituições sociais, das suas leis e hierarquias, proibições e possibilidades.

Roland Barthes extrairia das palavras do filósofo de Basel ainda outras consequências. Se Niezsche estava essencialmente preocupado em denunciar o nascimento da verdade a partir da morte da metáfora, Barthes compreendeu que dentro uma mesma língua várias são as verdades que emergem, cada qual procurando conquistar terreno às restantes—daí crer que a arte que impera na língua é a topica (lat.), i. e., a arte de encontrar argumentos—e instituindo‑se pretensamente como extensão da própria natureza. Nesse confronto, vence aquele falar que, segundo o Autor, logra estigmatizar o adversário por via de um vocábulo, “meio científico, meio ético”, com o qual simultaneamente o explica e o condena.

O texto, não obstante, é o único espaço que resiste a estas invectivas, permanecendo impermeável a qualquer tipo de apropriação por parte das paranóias que se degladiam no seu exterior. Para Barthes o texto é um espaço de pacificação dos conflitos, residindo o prazer da sua leitura na aceitação do falar outro e no deixar permear‑se pela sua diferença orgânica.

{bibliografia}

Roland Barthes: Le plaisir du texte (1973); F. Nietzsche: Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinne (1873).