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Termo que designa tanto uma representação teatral como uma narrativa, muito em voga na Idade Média, (sécs. XII – XV), que contam a vida de um santo ou da Virgem. Baseando o seu enredo em acontecimentos maravilhosos, a acção era desencadeada pela intervenção miraculosa da entidade divina retratada.

Enquanto representação teatral, o milagre era, essencialmente, fundamentado em lendas e nas Sagradas Escrituras; todavia, adicionavam-se-lhe pormenores referentes à vida quotidiana, como, por exemplo, personagens da povoação conhecidas por todos, o que enriquecia a sua vertente cómica. Foi muito popular e teve uma grande aceitação, em particular no que respeitava à acidentada intriga e ao suspense gerado pelos sucessivos golpes teatrais.

A origem destas peças poder-se-à situar no drama litúrgico, nas representações que tinham lugar em dias festivos, como na Páscoa, no Natal e no Corpus Christi, e na poesia trovadoresca. Em alturas de festa, desenvolveram-se representações no prolongamento da missa, passando estas peças para o coro e, mais tarde, para o adro da igreja. A Festa de Deus, instituída em 1264, parece ter sido vital na deslocação das peças para o adro, motivando também um aumento do conteúdo profano destas, pois o local já não era sagrado. No entanto, será esse conteúdo que marcará o fim dos milagres e abrirá caminho para os mistérios.

O primeiro milagre, intitulado Vida de S. Nicolau, foi escrito pelo trovador Jean Bodel, em França, no séc. XII. No entanto, data da segunda metade do século seguinte o mais significativo dos milagres, também da autoria de outro francês, Rutebeuf, o Miracle de Théophile, que é visto como o percursor de Fausto, pois trata de um sacerdote que se entrega ao Diabo. Mais tarde, o Séc. XIV marca o apogeu deste tipo de representações, com o ciclo de Miracles de Notre Dame, novamente em França. Estes eram pequenos dramas edificantes e graciosamente romanescos, motivados pela devoção à Virgem.

Outros exemplos europeus são os Marienklage, de origem alemã, os Mariken van Nieumeghen holandeses, a Rappresentazione e festa d’Abrem e d’Isaac suo figliuolo, do italiano Feo Belcari, e, ainda na Itália, a Rappresentazione di San Giovanni e San Paolo, de Lourenço de Médicis. Em Portugal, a peça Auto de S. Martinho de Gil Vicente, de 1504, inspirada num episódio hagiográfico, também é considerada fruto da tradição europeia dos milagres, embora nunca tenham existido no nosso país verdadeiros milagres.

A par com a produção teatral, os Livros de Milagres medievais são também numerosos. Consistiam em narrativas curtas que exaltavam a intervenção miraculosa de um santo ou, sobretudo, da Virgem Maria, na resolução de um problema ou numa cura. Estes relatos eram em Latim e em língua vulgar (português), tendo como principal objectivo a justificação para o culto de um determinado santo ou santuário, além de também edificar e propagar a fé cristã.

Mais do que uma preocupação literária, estes relatos possuíam uma preocupação documental, ou seja, procuravam ser testemunhos do poder da actuação divina sob as leis da ordem natural.

De entre outros, pode-se citar, do séc. XII, o De miraculis Sanctae Mariae Laudunenses, de Hermano de Laon, e os Miracles de Notre Dame, de Gautier de Coincy. Em Portugal, o Marial alcobacense dos séc. XII/XIII, as colectâneas de Milagres de Nossa Senhora de Évora e, escritos pelo Mestre Estevão, entre 1173 e 1185 em Lisboa, os Miracula S. Vicentii. Assim, como forma de assegurar a sua importância, cada santuário procura redigir uma colectânea de milagres com ele associadas e os Livros de Milagres sucedem-se até ao séc. XV.

Bibliografia:

Drama: H. Howens Post: As Obras de Gil Vicente Como Elo de Transição Entre o Drama Medieval e o Teatro do Renascimento (1975); Hardin Craig: English Religious Drama of the Middle Ages (1955); Jacques Burdick: Teatro (Lisboa, 1978); Léon Moussiniac: História do Teatro: Das Origens aos Nossos Dias (Lisboa, s.d.); Luiz Francisco Rebello: O Primitivo Teatro Português (1984); Marvin Carlson: Teorias do Teatro: Estudo Histórico-Crítico dos Gregos à Actualidade (S. Paulo, 1995); Patrice Pavis: Dicionário de Teatro (S. Paulo, 1999); Robert Pignarre: História do Teatro (Mem Martins, 1979); Livros de milagres: Augusto Aires Nascimento: “Um Mariale Alcobacense”, Didaskalia, 9 (1979); Id. e Saul A. Gomes, Milagres Medievais de S. Vicente de Lisboa, (1988); Mário Martins: “O Livro dos Milagres de Nossa Senhora da Oliveira”, Revista de Guimarães, 63 (1953); Id.: Peregrenições e Livros de Milagres da Nossa Idade Média (1957).