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O pensamento antigo sobre a natureza (e não só o dos mitógrafos e paradoxógrafos gregos) incorpora mitos científicos, que depois a alegoria medieval retoma dentro da espécie “prodígios”, mas muitas vezes apresentando-os retorica e experimentalmente como novitas. Trata-se, no caso da Antiguidade, duma tentativa de exploração dos enigmas naturais, onde o relato fantástico ou o mito residual é aceite como prova cientificamente boa; no cado dos autores medievais, e dalguns mais tardios, trata-se sobretudo do interesse de inserção dos enigmas numa metafísica de revelação. Em ambos os casos, os fenómenos não deixam nunca de ser considerados naturales res, partes da Imago mundi. Estão assim excluídas do conceito as miraculosas intervenções na ordem natural, do foro teológico/demonológico.

As ocorrências ora remetem para uma auctoritas (História dos Animais de Aristóteles, p. ex., ou o Timeu de Platão com a sua ideia cosmogónica), ora para a tradição oral baseada em relatos de viagens. Há uma linha de aproveitamento poético destes fenómenos desde Calímaco e Ovídio (Camões no Canto V d’Os Lusíadas, na descrição da tromba marítima); há alinha mais substancial da mitografia científica inserta em obras de divulgação enciclopédica (Teofrasto, Vitrúvio, Plínio o Velho; depois,  Santo Isidoro e, já nos sécs. XII e XIII, Gillaume de Conches, Alexandre Neckam, Bernard Sylvestre e Gossuin de Metz, ente outros);  ainda se deve ter em conta a tradição medieval  do imaginário maravilhoso associado á condição original do homem, de que a  Carta de Prestes João ao Imperador de Bizâncio é talvez o expoente, na descrição duma terra que destila mel, e cujos rios criam pedra preciosas. Até ao séc. XVIII subsistem fantasias utópicas deste tipo, embora por vezes já com reconhecimento crítico e, portanto, com carácter satírico.

Num livro de emblemas do séc. XVI (o de Nicolau Taurellus), destaca-se, para o bom entendimento do fenómeno mirabilis, a importância da occasio, ou seja, do momento feliz em que o observador reconhece o sentido oculto e maravilhoso que o Cridor imprimiu à sua obra. Assim há que entender p. ex., lances e sucessos maravilhosos dos romances de cavalaria, onde a maravilha tem lugar para que através dela se dê a revelação dalgum sentido profundo, e assim não se satisfaça apenas o apetite sensorial mercê da descrição linear e realista. Cervantes tematiza esta atitude satiricamente, fazendo dos lances maravilhosos os conhecidos fracassos quixotescos, mas dando-lhes também a importância de aprendizagem existencial.

Em termos deconcepção física do tempo cultural aqui em questão, as maravilhas decorrem no espaço dos quatro elementos, e em relação com eles. O Mirabilia aquarum, o tipo de fenómenos insólitos que mais atraiu os autores romanos (Plínio, Lucílio, Vitrúvio, Séneca), levam p. ex., desde o relato da exploração e de especulação sobre o enigma das nascentes do Nilo até à descrição das virtudes e efitos de certas fontes e da água de certos rios (as que rejuvenescem, as que engravidam, as que mudam a cor do cabelo, as que jorram vinho em certas datas do ano, etc.). A ligação com  fontes e rios mitológicos é evidente, mas é difícil estabelecer a prioridade do mito, ou do relato maravilhoso.

O fogo, que por menos estável se torna mais propício a desempenhar funções simbólicas, surge associado aos princípios divino e demoníaco; ou como fenómeno que une polaridades e que provoca o renascimento (fénix, p. ex.,), ou então que destrói e corrompe (o loureiro que resiste intacto ao raio); mais concretos são os exemplos de “águas inflamáveis” (fenómenos explicáveis pela existência de paz subterrâneo), como a fonte de fogo de Saint-Barthélemy, no Isère, referida por Santo Agostinho.

Na terra têm lugar todos os casos insólitos registados no vastíssimo número Lapidários, Herbários e Bestiários, bem como observações e práticas farmacêuticas e fisiológicas (Hildegard von Bingen, Alberto Magno (?) e cosmo-geográficas (Nicole Oresme).

No elemento ar se centram as observações e explicações poético-mitológicas de fenómenos maravilhosos da esfera celeste (cometas, estrelas cadentes, arco-íris), bem como as especulações sobre o céu e as suas qualidades (ainda em 1697, John Case fornecia dia e hora da criação dos corpos celestes).

A Alquimia, nas suas representações alegoricas, serve-se largamente desta tradição, reorientando-a segundo a sua mística natural. As fuguras imaginárias representadas nos mapas e cartas medievais remetem igualmente para esta fronteira do saber, entre o científico e o fantástico. Do mesmo modo têm de se considerar muitos dos emblemas barrocos (a avestruz que choca os ovos com os olhos, o crocodilo que devora e chora, etc.), tanto os reunidos como lição icónica, cuja instrução textual de leituras se resume a incriptio e subscriptio, como os que ilustram exemplários. O conceito tem ainda aplicação no caso dalgumas descrições exóticas de relatos e viagens do séc. XVIII.

{bibliografia}

A Schöne, Emblematik und Drama im Zeitalter des Barock, 1964; B. Ribémont, G. Sodigné-Costes, “Tradition antique et Mirabillia dans le libre XVII du Depropriedtatibus rerum de Barthelemi l’Anglais”, in  Euphrosyne, 19 (Lisboa, 1991); B.. Ribémont: “Vers et prose dasn l’écriture à caractère scientifique médievales: l’exemple de l’encyclopédiesme”, in  XX Congrès International de Linguistique et Philologie Romanes, V (VIII), (Tubinga-Basileia, 1993); Ch. O. Haskins, Studies in the history of mediaeval science, 1927; G. Aujac, Strabon et la science de son temps, 1966; G. Sarton, A History of Science – Hellenistic Science and Culture in the last three centuries b. C. , 1959; G. Boas, Essays on primitivism and related ideas in the Middle Ages, 1948; J. Mandeville, Mandeville’s Travels, , 1968; L. Callebat, “Science et Irrationnel – Les Mirabilia Aquarum”, in Euphrosyne, 12, Lisboa, 1988; O. Neugebauer, The exact sciences in Antiquity, 1957; R, Bertrand, Sagesse et chimères, 1953.