Ao estabelecer as coordenadas para a sua gramática narrativa de superfície, Greimas recupera o conceito de modalidade, que já havia sido explorado nos domínios da lógica clássica e, mais recentemente, da linguística. A modalidade pode ser entendida como um elemento de informação que define o modo de relacionamento entre o sujeito e o predicado dentro de um dado enunciado.
Em Du Sens, Greimas fala-nos de enunciados narrativos descritivos, que são a tradução, a nível superficial, das operações da gramática fundamental. Tais operações reportam-se a processos metalinguísticos autónomos, projecções das relações enquadradas por um dado modelo taxinómico. Os enunciados narrativos descritivos, por seu turno, implicam já um sujeito humano (ou, pelo menos, antropomorfizado) ao qual é atribuído um determinado fazer meta‑semiótico (porque constitutivo de uma mensagem‑objecto incorporada num processo comunicativo) ou um determinado estado (os chamados enunciados atributivos da ordem do ter e do ser).
Através da modalidade procede-se a uma complexificação do enunciado narrativo descritivo, tanto do ponto de vista semântico como sintático, por via da inclusão de um valor modal dado. Greimas demarcou quatro desses valores (o querer, o dever, o saber, o poder) que devem anteceder qualquer performance, i. e., o processo de transformação de estados ou de transferência de objectos. Estes valores modais foram, entretanto, reagrupados tendo em conta três distintos níveis de existência que já anteriormente haviam sido definidos por Saussure. Assim, considerar-se-ão o dever e o querer como modalidades de virtualidade (ou seja, aquelas em que o fazer é perspectivado a priori, sem que se encontrem reunidas todas as condições para a sua realização), enquanto que o poder e o saber se reúnem sob a designação de modalidades de actualidade (com cuja a aquisição o sujeito do fazer fica qualificado para levar a cabo a sua performance). Um terceiro nível de existência, o da realidade, compreende ainda o ser e o fazer, o que corresponde dentro do programa narrativo à fase principal de transformação de estados, em que — dada a extinção dos sujeitos modalizadores e das próprias modalidades — se verifica o processo de desmodalização. Os três níveis de existência funcionam, assim, como estádios que cobrem todo o programa narrativo seguido pelo sujeito, e que vão desde o ponto zero até à sua realização (Greimas & Courtés, 1979: 230-3).
Cada modalidade não é definível per se, senão quando devidamente integrada num quadro de interdefinições de predicados modais em que é tornado explícito o investimento semântico. Para que isso seja possível, há duas classes de modalização, o ser e o fazer, que permitem o estabelecimento de dois quadros distintos para cada modalidade. A modalidade do dever, por exemplo, só pode ser então equacionada enquanto dever-fazer ou dever–ser. No primeiro caso projectar-se-á o seguinte quadro semiótico:
Note-se que as denominações atribuídas a cada um dos termos visam a condensação de dois predicados num só valor modal. Desta forma, tendo em conta as quatro modalidades daqui resultantes, poder-se-á falar de uma categoria modal deôntica. No segundo caso, as denominações acabam por ser diferentes:
Mudando a classe de modalização, assim também passamos a ter outras denominações: entra-se agora no domínio da categoria modal a que Greimas e Courtés deram o nome de alética ou aletológica (do grego aletheia, que significa «verdade»). Este tipo de articulação é extensível a outros valores modais. Da articulação do querer com as duas classes de modalização, por exemplo, resulta a categoria modal volitiva — se bem que neste caso em particular para cada um dos termos não tenha sido atribuído uma denominação específica.
Dada a complementaridade existente entre algumas das modalidades, a mesma categoria modal (ou “sistema de modalidades”) pode ser detectada na articulação de valores modais distintos. É o caso da já referida categoria alética, patente não apenas no dever‑ser, mas também no poder‑ser. Para tanto, compare‑se o quadrado semiótico anterior com o que se segue:
Para além deste paralelismo evidente, outras modalidades há que partilham de característica comuns. Atente‑se, a título ilustrativo, sobre as que resultam dos valores modais do querer e do dever. Para além de se tratarem de condições prévias para qualquer performance (são, afinal, modalidades de virtualidade), podem ser encaradas como duas faces de um mesmo processo (o querer mais não sendo do que um dever que o sujeito impõe a si próprio) ou ainda como sendo uma a transformação da outra por via da transferência (o querer do destinador transferido para o sujeito torna‑se no dever deste).
Outras modalidades (que fogem aos valores modais já definidos em Du Sens) foram contempladas por Greimas e Courtés aquando da elaboração do seu Sémiotique: Diccionnaire raisonné, entre as quais se contam as chamadas veridictórias e as epistémicas, fundamentais para se definir os modos como o conhecimento e a realidade são apresentados dentro de uma dada narrativa. Se, no tocante às primeiras, é operada uma articulação entre o ser e o parecer, por forma a aferir a validade das posições cognitivas do sujeito em termos de “verdadeiro” ou “falso”, “mentiroso” ou “secreto”, já as segundas, que equacionam o crer com o ser e com o fazer, avaliam o julgamento epistémico quer do enunciador, quer do enunciatário. Nesse caso, enunciador e enunciatário podem exprimir tanto “certeza” como “incerteza”, “probabilidade” como “improbabilidade” perante aquilo que sabem, que julgam saber ou que pretendem dar a crer.
Qualquer uma das modalidades desempenha um papel crucial na progressão de um dado percurso narrativo. Na realidade, qualquer fazer pragmático ou cognitivo implica sempre que o sujeito tenha anteriormente adquirido um conjunto de competências modais que lhe permitam agir. Isso está bem patente nalgumas narrativas, em particular em certos contos tradicionais ou gestas medievais, como Sir Gawain and the Green Knight. Em Édipo Rei, por exemplo, se bem que pareça difícil sustentar tal proposição, dado que aparentemente todo o fazer precede e é levado a cabo em função do querer‑saber, a performance final é sempre um fazer cognitivo, i. e., o reconhecimento (anagnorisis) de uma culpa latente. Consoante a aquisição, combinação e/ou negação das diferentes modalidades e a posição do actante no percurso narrativo, assim se vai definindo o seu “papel actancial” (v. actor).
A. J. Greimas: Sémantique Struturale (1966); A. J. Greimas: Du Sens: Essais Sémiotiques (1973); A. J. Greimas: Du Sens II: Essais Sémiotiques (1983); A. J. Greimas e J. Courtés: Sémiotique: Dictionnaire raisonné de la théorie du langage (1979); Groupe d’Entrevernes: Analyse Sémiotique des Textes: Introduction, Théorie – Pratique (1979).
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