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Termo que deriva do Sânscrito “gnärus” (saber, ter conhecimento de algo) e “narro” (contar, relatar) e que chegou até nós por via do Latim. Para Platão o termo aplica-se a todos os textos produzidos pelos prosadores e poetas, pois ele considera como narrativas as narrações de todos os acontecimentos passados, presentes e futuros. Para além do género mimético onde se inclui a tragédia e a comédia, Platão distingue ainda dois géneros narrativos: o género narrativo puro representado pelo ditirambo, e o género misto, representado pela epopeia. Aristóteles ao classificar os modos como o poeta imita “os homens em acção” distingue o modo narrativo contrapondo-o ao modo dramático. Os poemas épicos incluem-se no modo narrativo e têm a característica de o seu discurso ser enunciado por um poeta narrador que se converte em “outro”, como acontece com Homero, narrando os acontecimentos e as acções através de personagens.

O abade Bérardier de Bataut na sua obra Éssai sur le récit, ou Entretiens sur la manière de raconter, (1776), define narrativa pelo seu conteúdo (“exposição pormenorizada de um facto verdadeiro ou inventado”) e pela sua finalidade (“instruir os seus leitores ou ouvintes”), o que, considerando que estávamos no século das luzes, não é de admirar que se tivesse instituído uma função didáctica à narrativa. Gérard Genette, Discurso da Narrativa, (1972) define a narrativa sob três aspectos que ela apresenta: a “narrativa designa o enunciado narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a relação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos”; por outro lado, Genette toma também em consideração o conteúdo desse enunciado e designa por narrativa “a sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios, que constituem o objecto desse discurso, e as suas diversas relações de encadeamento, de oposição, de repetição, etc.”; finalmente, o autor considera que o conceito de narrativa poderá ser também visto como o acto de narrar em si mesmo, isto é, “um acontecimento: não aquele que se conta, mas aquele que consiste em que alguém conte alguma coisa.”

Sendo a narrativa a enunciação de um discurso que relata acontecimentos ou acções, para a sua definição é necessário tomar em consideração a história que ela conta e o discurso narrativo que a enuncia. Assim, a história será o conteúdo do acto narrativo, ou seja, o seu significado, enquanto o discurso que a dá a conhecer será o seu significante. A narrativa é, pois, em última análise, a instância surgida da simbiose entre a história e o discurso narrativo. A vida humana é simultaneamente sujeito e objecto de inúmeros acontecimentos e a tendência do Homem é de reviver estes acontecimentos principalmente, mas não apenas, através da linguagem verbal articulada. Desde Aristóteles até aos nossos dias, todos os teóricos concordam em que imitar é uma qualidade congénita da pessoa humana e daí serem incontáveis as narrativas que estão presentes nos mitos, nas lendas, nas fábulas, na História, nas tragédias; encontramo-las em vitrais de igrejas, em filmes, nos palcos dos teatros, na banda desenhada, no bailado, nas composições musicais e nos próprios discursos das crianças logo que estas têm a capacidade de articular frases.

Alguns críticos e teóricos limitam o conceito de narrativa aos géneros narrativos, nomeadamente ao romance, à novela, ao conto, à balada e ao poema épico; tampouco excluem desse conjunto o texto jornalístico, o documentário, o relatório, i.é, incluem no universo da narrativa todo o texto que conta uma história, ou um ou mais acontecimentos. Gerald Prince, Dictionary of Narratology,(1987) define o termo como “O contar de um ou mais eventos reais ou fictícios comunicados por um, dois, ou mais narradores a um, dois ou mais narratários”. Para Prince a representação dramática de eventos não faz parte do universo dos textos narrativos, pois estes eventos em vez de serem contados, têm lugar sobre o palco. Contudo, frases como “Deixei cair o cigarro”, ou “A luz apagou-se”, são narrativas, de acordo com a definição deste teórico. Outros autores têm um conceito mais amplo relativamente ao texto narrativo. Com efeito, H. Porter Abbott, The Cambridge Introduction to Narrative, (2002), estende os limites da narrativa ao próprio género lírico, pois este nem sempre se apresenta numa forma estática. Efectivamente, se o conceito de arte para os Gregos era de imitação não do real, mas sobretudo do ideal, conceito, aliás também defendido por Sir Philip Sidney, em An Apology for Poetry, (1595), então a lírica poderá também corresponder aos pressupostos do texto narrativo, uma vez que o poema lírico igualmente pode contar acções e mesmo eventos: Quinze Haikais Japoneses, in Herberto Helder, Poesia Toda, (1981), são exemplo de curtas narrativas, tais como,” Pelo meio do arrozal/Vou até à ameixoeira/Para ver o seu perfume.” Um dos factos que leva teóricos como Gerald Prince, op.cit., a recusarem o textos líricos e dramáticos como narrativas, é o facto de eles, aparentarem a ausência de um narrador. Se por um lado, como defende Mieke Bal, em Narratology: Introduction to the Theory of Narrative, (1985), o uso da linguagem implica a existência de um locutor que a articule e que este terá de ser um “eu” forçosamente. Então o “eu lírico” poderá, mesmo que silencioso, enunciar actos e acções como no exemplo acima. Por outro lado, o texto dramático inclui narrativas, uma vez que estas surgem sempre que o locutor tem de contar algum acontecimento; além disso dever-se-á tomar em consideração o teatro épico ou teatro dramático narrativo, de Brecht, no caso português representado por Bernardo Santareno, O Judeu, onde a personagem Cavaleiro de Oliveira, é um narrador em todo o sentido do termo. Gerald Prince (ob. cit.) afirma ainda que “A dramatic performance representing (many fascinating) events does not constitute a narrative…” pois estes acontecimentos em vez de serem contados ocorrem sobre o palco, ou seja, para Prince, a narrativa não se trata de uma representação, mas sim de uma apresentação e, por isso, carece de uma voz enunciadora, isto é, dum narrador. Contudo, o narrador é um instrumento que não tem de se revelar apenas através da linguagem verbal articulada, nem, tampouco, terá de estar representado por uma personagem audível, a própria câmara associada a técnicas cinematográficas de som e luz cede à cena o papel de narrador. Também em outras formas de expressão artística a narrativa está presente: Tchaikovski e O Lago dos Cisnes conta uma história cuja temática representa a dualidade da vida humana; as ciências musicais descodificaram a totalidade da obra deste compositor como autobiográfica.

A narrativa apresenta também uma dualidade temporal, pois, se por um lado, há o tempo da diegese, por outro, temos o tempo do discurso narrativo. Laurence Stern, Tristram Shandy (1759-1767), demonstra esta assimetria temporal, quando se refere ao tempo de leitura, ao tempo da história e ao tempo da narrativa: dirigindo-se ao “hipocrítico” ele diz, “I would remind him, that the idea of duration and ot its simple modes, is got merely from the train and succession of our ideas”, (Vol. II, Cap. VIII), o que sintetiza o conceito de tempo no interior da narrativa. Semelhante facto revela a imensa plasticidade deste género literário, pois ele pode prolongar ou reduzir, conforme o seu desiderato, a diegese, ao ponto de Todorov se ter referido a “deformações temporais” ou “infidelidades cronológicas” dos acontecimentos”, pois também a ordem dos eventos da diegese poderá ser alienada no discurso narrativo. Porque muitas vezes os factos e acontecimentos narrados não surgem em primeira mão, i.é, cada narrador, no acto de narrar, poderá estar a contar algo que ouviu de outro narrador, surge a narrativa enquadrada, cujo paradigma se encontra em As Mil e uma Noites. Este modo narrativo permite inserir inúmeras narrativas, narradas por outros tantos narradores em tempos mais ou menos distantes entre si. Theodor Storm, em Der Schimmelreiter, (1888), usando esta técnica logra representar a imagem de um tecido social em todas as suas condições internas e externas, causais e irracionais, organizadas numa hierarquia reflectida nos vários enquadramentos narrativos. Esta estrutura, movendo-se em dois eixos – interior e exterior – é uma tentativa de demonstrar a complexidade da realidade através dos vários períodos da vida de um ser humano inserido numa sociedade específica e que vai desde a juventude com os seus sonhos ao confronto com as forças da natureza e do preconceito da sociedade, tendo a particularidade de poder ser vista, sentida e narrada em várias épocas por várias personagens. Nas últimas décadas do século XX surge ainda o hipertexto, cuja funcionalidade pode ser comparada à da narrativa enquadrada, uma vez que cada texto remete para outro através de hiperligações (que funcionam como narrativas enquadradas) electronicamente instaladas no próprio texto. Karin Wenz, professora de Inglês assistente na Universidade de Kassel, Alemanha, considera que o hipertexto enriqueceu o espaço narrativo com uma tridimensionalidade através do enquadramento de novos elementos visuais e acústicos tornados acessíveis pela hiperligação. Com o desenvolvimento da informática, dos jogos de simulação e das gramáticas da narrativa, surge a Narrativa Arborescente, na qual se inserem os livros em que o leitor é o herói. Trata-se de “o conto ao gosto de cada um”. É neste princípio base que o dramaturgo Alan Ayckbourn escreve Intimate Exchanges, (1985), a partir do qual o realizador Alain Resnais produz o filme Smoking e No Smoking.

{bibliografia}

Gérard Genette, Discurso da Narrativa. Trad. Fernando Cabral Martins; H. Porter Abbottt, The Cambridge Introduction to Narrative, 2002; Jean-Michel Adam e Françoise Revaz, A Análise da Narrativa, 1997; Karin Wenz, A Conference held at the National University of Singapure. http://www.scholars.nus.edu.sg/cpace/ht/wenz/narrativ.html; Vitor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura1988.