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Os níveis de língua estão associados ao ensino das várias
línguas ao terem em conta a sua natural variação. A teoria dos
níveis de língua herdou da estilística a noção de hierarquia,
pois remete para os níveis de estilo (sublime, médio e simples).
A sociolinguística rejeita, em parte, o termo nível,
substituindo-o por registo, uma vez que este último não
contribui para a ideia de medição qualitativa das escolhas
linguísticas de cada falante, o que equivaleria à desvalorização
da fala por oposição à língua.

            Sendo a língua um organismo vivo e em constante
mutação, é natural que   apresente inúmeras variantes
características ao seu sistema. Apesar de unas, todas as línguas
são diversas. Falamos de variações inerentes ao espaço
geográfico (diatópicas), à situação comunicativa (diafásicas),
ao grupo sociocultural (diastráticas) e ao grupo profissional.
As alterações podem verificar-se em termos fonéticos,
morfológicos, sintácticos, semânticos e lexicais.

             Partindo desta análise inicial, podemos
referir-nos, em primeiro lugar, a variedades regionais
(regionalismos), fruto de um maior ou menor isolamento de um
determinado grupo no interior de uma dada comunidade linguística.
Por outro lado, falamos de variedades sócio-profissionais ao
assumirmos que, em função dos grupos sociais, culturais e/ou
profissionais em que se integram, os falantes recorrem a
linguagens especiais (especializadas). Nestes casos, é-nos
possível distinguir entre linguagens científicas (medicina),
linguagens técnicas (electricidade), linguagens tecnológicas
(mecânica), linguagens técnico-científicas (informática) e
linguagens profissionais (olaria). No entanto, e como se
verifica através dos exemplos indicados, as fronteiras entre
elas são ténues e as interpenetrações inevitáveis.

            De acordo com Herculano de Carvalho, categorias
distintas são também a gíria e o calão, linguagens consideradas
marginais, normalmente utilizadas por indivíduos que pertencem a
um determinado grupo sócio-profissional e que pretendem manter
sigilo, defendem um espírito de grupo e deixam transparecer uma
intenção significativa e lúdica. Quebram a rigidez formal e
caracterizam-se pela grande liberdade de escolhas relativamente
à norma. Podemos falar da gíria dos médicos, dos linguistas, dos
pescadores, entre muitas outras. O calão pode ser uma gíria
particular, normalmente associada a situações e contextos
peculiares e ditos marginais, o que não equivale a dizer que se
trata da linguagem das camadas sociais mais desfavorecidas.

            Ao utilizar vocabulário antigo atribuindo-lhe outros
significados, o calão cria novas palavras e contribui para o
enriquecimento lexical e frásico de qualquer língua. Varia de
geração para geração e está muito associado à intimidade entre
os falantes e ao tom coloquial. Veja-se a este propósito o
seguinte exemplo: «Rádio? Que rádio? Vomita já essa história
toda antes que te rache a mona!» ( Mário Zambujal, Crónica
dos Bons Malandros
, p. 15).

A gíria é normalmente entendida por um restrito grupo de
indivíduos que se move numa determinada área do saber ou tem uma
profissão em comum, podendo, gradualmente, passar a ser
entendida por um maior número de falantes. Palavras como
bombordo
, estibordo, proa, popa fazem
parte da gíria dos marinheiros. As fronteiras entre a gíria e a
linguagem técnica, científica ou qualquer uma das linguagens
especializadas não estão bem definidas, pelo que podemos hesitar
quanto à sua mais correcta classificação.

            Se se estabelece comunicação entre os falantes de
uma determinada comunidade linguística que apresenta a
diversidade referida, é graças ao conhecimento e domínio por
parte destes de um corpus que se sobrepõe às variedades
regionais e sócio-profissionais. Herculano de Carvalho refere-se
à linguagem comum que define como sendo «o inventário léxico e
fraseológico referente aos conceitos conhecidos, em princípio,
por todos e cada um dos membros de uma comunidade extensa (mas
linguisticamente homogénea) independentemente da sua profissão,
do seu sexo, e até certo ponto, da sua idade (admitindo que
esses indivíduos atingiram já um grau adiantado de
desenvolvimento mental e cultural).» (Herculano de Carvalho,
Teoria da Linguagem
, p. 335).

No entanto, a linguagem comum não é um conjunto lexical nem de
construções frásicas estanque. Apesar de se caracterizar por uma
certa homogeneidade, não corresponde a conhecimentos
linguísticos universais válidos para toda uma comunidade. A
idade, o sexo, a profissão, o grau de escolaridade, os
interesses, a região de origem, a mudança geográfica no interior
ou fora de uma determinada comunidade linguística, o tipo de
interlocutor, o grau de formalidade, as intenções comunicativas,
o assunto, a situação e o contexto são parâmetros a ter em conta
quando falamos da utilização efectiva da língua por parte dos
indivíduos. Deste modo, há que entender a noção de nível sempre
de acordo com a função básica de qualquer sistema linguístico: a
comunicação. Cada falante faz as escolhas, de entre as
permitidas pelo corpus por si adquirido, que considera
adequadas às diferentes situações comunicativas e ao contexto.
Assim, verificamos que é a utilização social do sistema
linguístico que permite a diversificação da linguagem comum em
várias outras separadas entre si por dúbias fronteiras.

Consideraremos, então, os seguintes níveis: corrente, familiar,
popular, cuidado e culto. Não são tomadas como níveis de língua
as variações regional nem literária. A primeira pelo que ficou
dito, a segunda por se tratar de uma utilização da linguagem com
uma finalidade artística e não com uma finalidade prática.

São tidas como pertencentes ao nível corrente as realizações
linguísticas que permitem o entendimento geral entre os vários
falantes de uma comunidade, independentemente das diferenças
socioculturais que os caracterizem. Referimo-nos a  estruturas
sintácticas e lexicais que abrangem as várias áreas da
experiência quotidiana e são facilmente compreendidas e
reproduzidas pelos falantes. É o nível de linguagem utilizado
pelos meios de comunicação social, uma vez que o seu objectivo é
alcançar toda a comunidade, como se verifica através do seguinte
exemplo: «Foi o mais grave acidente ocorrido no ramal da Lousã,
ao longo de uma existência de cerca de cem anos: cinco pessoas
morreram e onze ficaram feridas, uma das quais em estado muito
grave, na colisão de duas automotoras ocorrida numa zona de via
única, no Casal do Espírito Santo, Lousã, às 13h55 de ontem.» (
Público, 5 de Abril de 2002).

O nível familiar é marcado pela espontaneidade e pelo uso menos
vigiado das estruturas sintácticas e lexicais, sofrendo muitas
interferências dos outros níveis. É utilizado no quotidiano e em
situações comunicativas informais. Não raras vezes, recorre a
estruturas que violam a denominada regra. «- Aquele homem dá
cabo de mim! – lamentou-se Dores da soleira da porta. – Nem
hoje, olha que nem na noite de Natal deixa aquela maldita
taberna. Logo temos cena. Se não ficar aí caído na estrada como
da outra vez. / – Não lhe diga nada que é melhor. Deixe-o lá. /
– Ai eu deixo. Mas descansa que há-de ser ele a armar barulho.
Deve vir num bonito estado. Recebeu há dois dias o dinheiro da
azeitona, está rico. Só o que tenho medo é que ele caia ao rio.»
(Maria Judite de Carvalho, Tanta Gente, Mariana, pp. 112)

O nível cuidado caracteriza-se pela preocupação relativamente à
forma e ao conteúdo. Define-se pelo rigor das construções
frásicas e por uma escolha cuidada do léxico. É utilizado em
conferências, prefácios e em textos de carácter mais formal.
«Meus Senhores: / A decadência dos povos da Península nos três
últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais
evidentes da nossa história: pode até dizer-se que essa
decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de
força gloriosa e de rica originalidade, é o único grande facto
evidente e incontestável que nessa história aparece aos olhos do
historiador filósofo.» (Antero de Quental, "Causas da Decadência
dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos", conferência,
Casino Lisbonense, 1871.)  

Por sua vez, o nível popular está associado à simplicidade da
utilização linguística em termos lexicais, fonéticos,
sintácticos e semânticos. Esta decorrerá da espontaneidade
própria do discurso oral e da natural economia linguística. É
utilizado em contextos informais. Tomem-se a título
exemplificativo os excertos que se seguem: «Minha santa filha do
meu bô coração/ Cá arrecebi a tua pera mim muito estimada carta
e nela fiquei ciante e sastifeita por saber que andavas rija e
fera na cumpanhia do teu marido.» (Aquilino Ribeiro, O Homem
na Nave
); «- Ó Tio Luís, ó Tio Luís!…/ – Que é? / –
Vossemecê não vê? (…)/ – Ouviste por ‘i berrar uma cabra?»
(Camilo Castelo Branco, Maria Moisés, pp. 44-45).

 Finalmente, referimo-nos ao nível culto quando os falantes,
fazendo uso de uma linguagem rigorosa, elaborada e por vezes
hermética, se referem a temas considerados eruditos. Nem sempre
é tarefa fácil demarcá-lo com exactidão. «Perturba-me escrever
sobre a minha poesia como me solicitam os que aqui a dão a
conhecer numa amplitude próxima do seu conjunto (ficam ainda de
fora alguns inéditos) porque, ao fazê-lo, das duas uma: ou, tara
que não me seduz, indulgiria em entregar-me ao onanismo de uma
auto-apreciação irremediavelmente atada ao cordão umbilical que
me liga aos meus poemas; ou, baforando fumaças de objectividade,
só por um factício prodígio poderia transmigrar de autora para
teorizadora desse meu íntimo assunto poético em que além de mim
age um ignotus que ainda estou para saber o que é.» (Natália
Correia, Poesia Completa, "Introdução", p. 29)

            Ao optar por um determinado nível de língua, cada
indivíduo está a adequar o seu discurso à situação comunicativa
em que se encontra. Desta forma, não será correcto falar de uma
hierarquia de níveis, pressupondo uma gradação ascendente ou
descendente em relação à considerada norma. Qualquer falante
alterna a utilização dos vários níveis porque incorrecto seria
não adaptar a forma ao contexto situacional. Aliás, num mesmo
discurso, o falante pode flutuar entre vários níveis, o que
demonstra a plasticidade da linguagem e das suas infinitas
combinações.

            Tal como não é correcto falar de uma hierarquia de
níveis, também não o é indicar a língua escrita e a língua
falada como condicionantes dos mesmos. É possível utilizar um
nível culto recorrendo à expressão escrita ou oral. O mesmo
acontece com todos os outros níveis. A ambiguidade da questão
reside no facto de a expressão oral dispensar certos
esclarecimentos a que a escrita obriga, fruto da comunicação em
ausência.

            Em virtude da complexidade da classificação
apresentada, sublinham-se, mais uma vez, a interpenetração
contínua e a constante simultaneidade dos vários níveis num
mesmo discurso, uma vez que o falante tem à sua disposição uma
infinidade de combinações linguísticas que utilizará do modo que
lhe parecer mais conveniente.   

{bibliografia}

Herculano de Carvalho, Teoria da Linguagem (1967);
Colette Stourdzé, Vers un enseignement de la langue française
à l’école élementaire
, "Les Niveaux de Langue" (1971);
R. Gallisson e D. Coste, Dicionário de Didáctica das
Línguas
(1983); William Labov, Modelos Sociolinguísticos
(1983); David Crystal, The Cambridge Encyclopedia of Language
(1987).