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A B C D É F G H Í J K L M N O P Q R S T Ü V W Z

Ter Doktor Faustus existido ou não não é a questão, dado que, como enuncia, no poema, significativamente intitulado “Ulysses”, em Mensagem (1934), Fernando Pessoa (1888-1935): “O Mytho é o nada que é tudo” (1983, p. 6). Com efeito, mais que mito e personagem, Fausto é texto, um texto lido e relido por gerações de escritores e artistas de outros códigos (ou “gamas”, como diria o mesmo Pessoa). Terá tido uma origem nitidamente mítica o sintagma “pacto fáustico (ou faustiano)”. Narram certos documentos, apócrifos ou não, que teria existido, na Alemanha do século XVI,  um certo Faustus – Dr. Johannes  Georg Faust (1480-1540), nascido em Knittlingen e morto em Breisgau -, pessoa bastante perversa, médico, mago, mágico pervertido, astrólogo, vagabundo, ocultista, sodomita, auto-denominado “cunhado do Diabo”, necromante, alquimista, feiticeiro, charlatão, que teria conquistado, em 1509, na Universidade de Heildelberg, o grau de mágico; ateu, acreditava, porém, no Diabo, rival de Deus. Diferentemente dos versos de Fernando Pessoa – “Assim a lenda se escorre/ A entrar na realidade” (1983, p. 6) -, o lendário aventureiro virou, por um passe de mágica literária, mito, através da edição, por anônimo, de livro, lançado na feira de Frankfurt, intitulado Historia von D. Johann Fausten, dem weitbeschreyten Zauberer und Schwartzkünstler ou, abrevidamente, Volksbuch, recolha de lendas populares, que veio a lume em 1580 ou 1587, narrando os vinte e quatro anos de magia e de prazeres do protagonista, que não envelhecera. A esse processo de inversão, quando uma existência real inspira um mito, Jean-Claude Carrière denomina “mito derivado” (2003, p. 29); na realidade, porém, Fausto nasce antes do Doktor Faustus, se relembrarmos, por exemplo, a cena do paraíso perdido, quando Eva dá a Adão o fruto proibido: a sede do conhecimento, ou melhor, a fome do conhecimento, data, então, do Gênesis. O pacto com a serpente, forma de hybris, provocará a nemesis, pela qual a Humanidade inteira paga per omnia saecula saeculorum. Ainda na Bíblia, desta feita no Novo Testamento, encontramos uma outra gênese do pacto fáustico, às avessas, porém, na medida em que Cristo resiste à tentação do Demônio, que lhe oferece todos os bens e riquezas deste mundo; será Cristo, portanto, um anti-Fausto, porque não firma nenhum pacto com seu rival, o Diabo; no entanto, não se livrará, como Fausto, de uma crucial pena, porque será, ao fim de sua saga, crucificado. Mítico, Cristo ressuscita, ao passo que Fausto, o feiticeiro alemão renascentista, será enforcado por Mefistófeles (o significante “Mefistófeles” traduz-se, etimologicamente, por “Inimigo da Luz”), pagando, com a própria vida, o pacto firmado; mas Fausto reviverá no mito, que até reforça, a contrario, ou como antífrase, o significado, em nossa língua-pátria (ou “língua-mátria, como postula Caetano Veloso), do adjetivo “fausto”, derivado do latim faustus: “venturoso”, “ditoso”, “próspero”, “agradável”; já o substantivo “fausto” é equivalente, em português, a “luxo” e “ostentação”, talvez remetendo à gaia ciência, à festa do saber total e ao gozo das delícias terrestres.

Em Fausto, lenda e mito entrelaçam-se, demonstrando, paradigmaticamente, estas pontuais considerações em torno da lenda, formuladas por Lúcia Pimentel Góes, neste Dicionário eletrônico: “[Do lat. legenda, ‘coisas que devem ser lidas’.] Originalmente, a palavra designava histórias de santos, mas o sentido estendeu-se para significar uma história ou tradição oriunda de tempos imemoriais e popularmente aceite como verdade. É aplicada hodiernamente a histórias fantasiosas ligadas a pessoas verdadeiras, acontecimentos ou lugares. Lenda e mito são relacionados, mas a lenda tem menos a ver com o sobrenatural. A lenda frequentemente diz respeito a personagens famosas, populares, revolucionárias, santas, que vivem na imaginação popular. A lenda é sustentada oralmente, cantada em versos tradicionais ou em baladas, e posteriormente escrita. A literatura de cordel inclui muitas histórias lendárias em torno de figuras populares ou da vida política. Na lenda, facto e fantasia são interligados”.

A natureza apócrifa da narração de inúmeros episódios bíblicos e medievais, farsas, golpes de magia negra e fábulas – um erudito educador que abusava dos alunos, blasfemador contumaz, teólogo, que teria preferido ser doutor em medicina a ser doutor em teologia, e, até, profeta – começaram a configurar uma tão fantástica tradição oral acerca desse Fausto que ele acabou por tornar-se personagem literária. A partir da cristalização em livro dos fatos da vida do Doctor Faustus, disseminou-se o mito, que encontrou avatares nas mais diversas literaturas e outras linguagens da arte. Consta que o primeiro escritor da lenda faustiana foi Johann Spiess (ou Spies), de Frankfurt, morto, cerca de 1607, que publicou, em 1587, o Spieß’sches Faustbuch ou Das Volksbuch von Dr. Faust, um volume de 227 páginas, obra lida alegoricamente como severa advertência luterana contra a paixão excessiva pelo saber e pelo poder.

De um livro inicial, a lenda de Fausto passa aos palcos, pelas mãos mágicas do dramaturgo inglês Christopher Marlowe (1564-1593), que, a partir da tradução inglesa, em 1592, do Volksbuch, The Histories of the Damnable Life, and Deserved Death of Doctor Iohann Faustus, atribuída a certo P. F., publicou, em 1589, dois anos, portanto, depois da obra de Spiess, The Tragical History of Doctor Faustus, que encena o dilema do homem ocidental, cindido entre a religiosidade da Idade Média e o humanismo fervoroso do Renascimento. Resulta em tragédia a cisão. Jovem, epicurista, utopista apaixonado, o Fausto do dramaturgo elisabetano passa do culto da Beleza, encarnado por Helena de Tróia, ao desespero cristão: drama prometéico ou tragédia do ateísmo, orna-se com um contraponto cômico. De acordo com Logan, Terence P. e Denzell S. Smith, “No Elizabethan play outside the Shakespeare canon has raised more controversy than Doctor Faustus. There is no agreement concerning the nature of the text and the date of composition (…) and the centrality of the Faust legend in the history of the Western world precludes any definitive agreement on the interpretation of the play…” (1973, p. 14). Como o personagem misterioso e maldito, a versão inglesa do Fausto carrega-se de enigmas. Como o Fausto das lendas germânicas, Marlowe condena, também, seu personagem ao inferno.

Em seguida, surge, quase dois séculos mais tarde, um avatar fragmentário do mago alemão, no drama D. Faust, do também alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), filósofo e enciclopedista, que traça, entre 1760 e 1780, esboços, que desabrocharão, por exemplo, no romantismo, do século XVIII ao século XIX, em que Fausto se tornará um emblema privilegiado, como no Sturm und Drang. Será, no entanto, no romance Faustus (1806), de Johann Wolfgang Von Goethe (1749-1832), escrito e reescrito ao longo de quase sessenta anos (1806-1832) e publicadas, em 1806, sua primeira parte – Urfaust (Proto-Fausto, ou Fausto zero) – e, em 1832, a segunda, às vésperas da morte do Autor, que o mito renascentista, nascido em solo alemão, tornar-se-á um paradigma literário. A versão definitiva, só seria escrita e publicada por Goethe no ano de 1808, sob o título de Faust, eine Tragödie (Fausto, uma tragédia), e assim trazia à lume sua maior obra-prima. Mas a problemática humana do Fausto continuou a intrigar o poeta, e em 1826 ele começou a escrever a segunda parte do poema, publicado postumamente sob o título de Faust. Der Tragödie zweiter Teil in fünf Akten (Fausto. Segunda parte da tragédia, em cinco atos) (Fausto, 1974). Como pondera Sílvio Augusto de Bastos Meira, o tradutor brasileiro de Fausto : “Poucas obras de cunho universal são mais humanas que o Fausto de Goethe, onde se encontra um pouco de tudo, desde o raciocínio filosófico mais profundo, até o sentimento mais delicado que possa fazer vibrar a alma. Foi produto de longa meditação, durante quase toda uma existência, em que idéias novas surgiam a cada passo, retratando psicologias, trazendo para a forma fria e espessa do verso impressões colhidas no contato permanente com os homens e a natureza” (p. 17). Poema épico, que tematiza a paixão pela técnica e pelo progresso, erigindo-se, pois, como alegoria da própria modernidade e do ser moderno, o fausto goethiano consagra o mito.

Outro alemão reconsagrará o mito de Fausto, tomando, no entanto, outra direção: Thomas Mann (1875-1955) publicou, em 1947, um grande romance, Doktor Faustus: Das Leben des deutschen Tonsetzers Adrian Leverkühn, erzählt von einem Freunde, acolhendo como referentes a antiga lenda alemã de Fausto, assim como suas distintas versões (Christopher Marlowe, Goethe), além de vários elementos da vidas e obra dos alemães Nietzsche (1844-1900), Beethoven (1770-1827) e do compositor austríaco Arnold Schönberg (1874-1951). O romance narra a história do fictício compositor Adrian Leverkühn, que, para alcançar a glória artística durante vinte e quatro anos, faz um pacto com o Diabo. Através da figura trágica do protagonista, que contraíra, em uma estada num bordel, uma doença venérea, Mann traça um contundente retrato da corrupta cultura alemã de sua época, que desembocaria nos horrores mefistofélicos da segunda guerra mundial: a tragédia do compositor que compactua com o Diabo alegoriza o período nazista e prefigura o destino de danação de sua Alemanha, que se vendeu, culturalmente, ao nacional-socialismo. A partir desses geniais avatares, continua a saga trágica de Fausto: o poeta Aleksandr Sierguêievitch Púchkin (1799-1837), fundador da grande literatura russa, escreveu, em 1826, um Faust, famoso pelo diálogo com Mefistófeles. O dramaturgo alemão Christian Dietrich Grabbe (1801-1836), chamado por Christian Johann Heinrich Heine (1797-1856) “um Shakespeare bêbado”, também compôs, em 1829, uma tragédia, Don Juan und Faust, onde confronta os dois mitos nucleares da civilização ocidental. Em 1851, o poeta romântico alemão Heinrich Heine publicou um poema intitulado Der Doktor Faust. Único romance do protéico irlandês Oscar Wilde (1854-1900), The portrait of Dorian Gray (1890) pode ser lido sob a clave do pacto fáustico, firmado com a l’art pour l’art.

No século XX, o poeta francês Paul Valéry (1871-1945), pedra-de-toque da modernidade da poesia universal, escreveu, sem concluí-la, a peça Mon Faust (Meu Fausto), postumamente publicada em 1946. Poder-se-ia falar de um enigma de Fausto, que leva os escritores a dedicar-lhe a vida a escrever, sem poder concluir… Também os fundadores da literatura gostam de ocupar-se de Fausto: outro mistério e sedutora magia!

Embora pouco citado, infelizmente, talvez por causa do idioma em que vaza sua sublime arte (dizem que, na última guerra mundial, o português foi usado como código secreto…), Fernando Pessoa, um dos máximos leitores de Fausto, constrói um Fausto totalmente especial, na medida em que Primeiro Fausto, longo poema dramático, “tragédia subjetiva”, inscreve um “eu” lírico, significando a importância fulcral do mito alemão para a fundação da subjetividade ocidental (1983, p. 621-658):

Eu, Fausto – aqueles que não sentem bem

Toda a extensão da felicidade,

Gozá-la? (p. 642).

Note-se que, à maneira de Goethe, o poeta português compõe um “Primeiro Fausto”. Com esse título, que remete à gênese goethiana, Pessoa estrutura seu poema em temas “Primeiro Tema: O Mistério do Mundo”; “Segundo Tema: O horror de Conhecer”; “Terceiro Tema: A Falência do Prazer e do Amor”; “Quarto Tema: O Temor da Morte; Dois Diálogos”. Tal qual o Fausto de Lessing, o Fausto pessoano é fragmentário e inconcluso, fazendo pensar em O Livro do Desassossego, uma espécie de anti-livro, postumamente publicado em versões várias (compulso, por ser mais completa, até agora, a edição brasileira de 2003, publicada pela Companhia das Letras). Na disseminação alucinada de sua identidade em personae, terá sido o poeta do especialmente esotérico Mensagem (1934) um Fausto moderno, porque vendeu seu corpo e sua alma à Poesia, divindade diabólica (valha o oxímoro à la Pessoa!). Eis o que se lê, verbi gratia, em O livro do desassossego (2003), do estranhíssimo “semi-heterônimo” Bernardo Soares:

“Se um homem escreve bem só quando está bêbado dir-lhe-ei: embebede-se. E se ele me disser que o seu figado sofre com isso respondo: o que é o seu figado? é uma coisa morta que vive enquanto você vive, e os poemas que escrever vivem sem enquanto.”

Tripartite como Mensagem, primeiro livro da arca pessoana, o Primeiro Fausto (último livro dessa inesgotável arca?) português assim se inaugura:

Quero fugir ao mistério

Para onde fugirei?

Ele é a vida e a morte

O Dor, aonde me irei? (p. 621).

Em Mensagem, vários poemas podem ser lidos e relidos à luz do pacto fáustico, como, por exemplo, o esplêndido poema infra:

SEGUNDO/ O DAS QUINAS

8-12-1928

Os deuses vendem quando dão.

Compra-se a glória com desgraça.

Ai dos felizes, porque são

Só o que passa!

 

Baste a quem baste o que lhe basta

O bastante de lhe bastar!

A vida é breve, a alma é vasta:

Ter é tardar.

 

Foi com desgraça e com vileza

Que Deus ao Christo definiu:

Assim o oppoz à Natureza

E Filho o ungiu

(p. 5).

 

E este outro contundente poema:

QUINTA/ D. SEBASTIÃO, REI DE PORTUGAL

20-2-1933

Louco, sim, louco porque quis grandeza

Qual a Sorte a não dá.

Não coube em mim minha certeza;

Porisso onde o areal está

Ficou meu ser que houve, não o que há.

 

Minha loucura, outros que me a tomem

Com o que nella ia.

Sem a loucura que é o homem

Mais que a besta sadia,

Cadaver addiado que procria?

(p. 10).

 

Ao mesmo tempo que escrevia o incompleto Primeiro Fausto, Fernando Pessoa elaborou um fantástico conto “A hora do diabo”, em que Mefistófeles seduz Maria, que fora a um baile de carnaval. A epígrafe, em inglês, é livremente traduzida pelo Autor, que imprime um tom totalmente fantasioso à sua narrativa:

No light, but rather darkness visible.

Mas essas chamas lançam, não luz, mas sim treva visível.

Esse conto faz pendant com “A igreja do Diabo”, de Machado de Assis, a que aludiremos em seguida.

No âmbito da literatura brasileira, temos o genial conto “A igreja do Diabo”, de nosso imenso Joaquim Maria Machado de Assis  (1839-1908), onde se trava um embate entre o Diabo e Deus no conquista das almas. Logo no início da narrativa, Deus dirige-se ao recém-chegado ao “infinito azul”, onde se intertextualiza o mito que ora nos ocupa:

– Que queres tu? Perguntou este (Deus)

– Não venho pelo vosso servo Fausto, respondeu o Diabo rindo,
mas por todos os Faustos do século e dos séculos” (p. 82).

Se  não chegam a firmar um pacto fáustico, os fiéis, atormentados pelo Diabo, não deixam, todavia, de encantar-se com o fundador da nova igreja. Mas a corrosiva ironia machadiana, enformando um texto totalmente apolíneo, bota tudo a perder, na medida em que o próprio Diabo é ludibriado por seus novos fiéis que, às escondidas, voltam a praticar as antigas virtudes. O epílogo, ou última palavra, fica a cargo de Deus que, sardônico por sua vez, enuncia: “Que queres tu, meu pobre Diabo? (…) Que queres tu? É a eterna contradição humana” (p. 91).

Também da contraditória condição humana falará outro escritor fundamental brasileiro, João Guimarães Rosa (1908-1967), mago da palavra soberana, cujo romance Grande sertão: veredas é o labiríntico palco da alma, em que digladiam o Bem e o Mal; aliás esse romance singularíssimo tem, coisa inusitada, um subtítulo aspeado, entre parêntesis e grifado como um haicai:

(“O diabo na rua

no meio

do redemoinho…”)

Riobaldo, o  narrador tece, sempre, considerações muito estranhas, como estas: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou homem dos avessos, per si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum ! – é o que digo. O senhor aprova?”(…) “Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba”.

Arquétipo da alma humana, o mito de Fausto inspira, abundantemente, não apenas a literatura, que o cristalizou e o revisita em todas as eras, como tem sido fonte de inspiração para outras artes, como a pintura, o cinema, a música, o teatro, o balé, formas de arte que exibem um espectro espetacular com variações ou avatares.

Na pintura, contemplam-se, por exemplo, “Fausto” (1650-1652), água-forte de Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669); Eugène Delacroix (1798-1863), Faust et Méphistophélès (1827); Peter Cornelius (1824-1874), The Vision of the Rabenstein (1811); Faustsegundo Johann Wolfgang von Goethe (2006), de David Vandermeulen e Ambre.

No cinema,  constam, por ora, os filmes: Faust et Méphistophélès (1903), de Georges Méliès; Henri Andréani e David Barnett, Faust (1910); Fausto, uma lenda alemã (1926), de Friedrich Wilhelm Murnau; o ator e diretor de cinema francês René Clair (1898-1991) revisita, em La Beauté du diable (1949), o mito de Fausto, dirigindo  pela primeira vez, Gérard Philipe (1922-1959); Faustus (1960), filme de Gustaf Gründgens; Richard Burton e Nevill Coghill, Doctor Faustus (1967); de Peter Cook e Dudley Moore, O meu amigo, o Diabo (1967); Phantom of the Paradise (1974), de Brian de Palma; Les Possédées du Diable (1974), de Jesus Franco; István Szabó, Mephisto 1981); Angel Heart (1986), filme de Alan Parker; L’associé du diable (1997), filme de Taylor Hackford; Faust : love of the damned (2001), de Brian Yuzna.

O mito de Fausto também tem sido tema de obras musicais de vários compositores clássicos como Wagner (Faust, 1840), Berlioz (La Damnation de Faust, 1845-1846), Schumann (Szenen aus Goethes Faus, 1853), Liszt (Faust-Symphonie, 1854-1857), Gounod (Faust, 1859), a segunda parte da Sinfonia no. 8, de Mahler (1906-1907).

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/67/Rembrandt%2C_Faust.jpg

Fonte: https://en.m.wikipedia.org/wiki/File:Rembrandt,_Faust.jpg

 

Primeiro poeta a anunciar e enunciar a modernidade em Portugal, também pela tensão, bastante fáustica, de seu discurso, Bocage, aliás, Manuel Maria de Barbosa l’Hedois du Bocage (1765 -1805), compôs este soneto, conhecido pelo seu incipit, que prenuncia o longo poema Brise marine, de Stéphane Mallarmé, aliás Étienne Mallarmé (1842-1898):

Sobre estas duras, cavernosas fragas,
Que o marinho furor vai carcomendo,
Me estão negras paixões n’alma fervendo

Como fervem no pego as crespas vagas.

Razão feroz, o coração me indagas,
De meus erros e sombra esclarecendo,
E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo
De agudas ânsias venenosas chagas.

Cego a meus males, surdo a teu reclamo,
Mil objetos de horror co’a idéia eu corro,
Solto gemidos, lágrimas derramo.

Razão, de que me serve o teu socorro?
Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue: eu peno, eu morro.

BRISE MARINE

La chair est triste, hélas ! et j’ai lu tous les livres.
Fuir ! là-bas fuir ! Je sens que des oiseaux sont ivres
D’être parmi l’écume inconnue et les cieux !

Rien, ni les vieux jardins reflétés par les yeux
Ne retiendra ce cœur qui dans la mer se trempe
Ô nuits ! ni la clarté déserte de ma lampe
Sur le vide papier que la blancheur défend,
Et ni la jeune femme allaitant son enfant.
Je partirai ! Steamer balançant ta mâture

Lève l’ancre pour une exotique nature !
Un Ennui, désolé par les cruels espoirs,
Croit encore à l’adieu suprême des mouchoirs !
Et, peut-être, les mâts, invitant les orages
Sont-ils de ceux qu’un vent penche sur les naufrages

Perdus, sans mâts, sans mâts, ni fertiles îlots…
Mais, ô mon cœur, entends le chant des matelots !

Esse poema, vazado, também ele, no pacto fáustico, traz, como o poema de Bocage, ressonâncias da gravura Melencholia (1514), do alemão Albercht Dürer (1471-1528), figura central da pintura renascentista alemã, onde ficam patentes o desespero e o cansaço intelectual de um Fausto de todas as eras.

Poder-se-ia concluir com o enunciado de André Dabezies que, no verbete “Faust”, do Dictionnaire des mythes littéraires, organizado por P. Brunel, considera o mito de Fausto um paradigma “quase completo” dos mitos literários, porque não só faz o cruzamento entre a lenda e a produção literária, como, em sua evolução, exemplifica o diálogo entre a literatura e os acontecimentos históricos e as “mentalidades coletivas”, exibindo clichês, que tornam vivo o mito (1988, p. 581).

Com efeito, Fausto tem sido figura recorrente ao longo de cinco séculos de literatura ocidental e,
como Don Juan, outro mito ocidental fundamental, cada artista modela-o à sua maneira. Fausto é seu pacto e o pacto fáustico é sangue literário de muitos mitos; para C. G. Jung (1875-1961), “el más egregio de todos los símbolos de la libido es la figura humana como demonio o héroe” (1952, p. 184). Será Fausto, com seu pacto, a lenda, o mito, a alegoria do desejo, que, apesar dos castigos iminentes, não cessa de desejar. Coisas do Demo, como diria Guimarães Rosa, o endemoniado escritor dos sertões mineiros.

Bibliografia:

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