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De acordo com Charles Morris, todo signo estrutura-se em três dimensões: a dimensão sintática, a dimensão semântica e a dimensão pragmática; o signo português “pacto”, originário do latino pactum-i, articula-se, em sua dimensão sintática, com outros signos, como, por exemplo, “pactuar”, “pactuante”, “pactário”, e, no verbete em pauta, conjuga-se com o epíteto “narrativo”; semanticamente, esse signo significa “ajuste”, “convenção”, “contrato”; já, em sua dimensão pragmática, “pacto” conduz o sujeito a uma situação de cumplicidade, levando-o a uma atitude de firmar, às vezes com o próprio sangue, um documento que ata as partes envolvidas.

Em narratologia, a expressão “pacto narrativo”, ou pacto de leitura, designa o contrato que todo enunciado literário supõe acontecer entre o emissor e o receptor, vale dizer, entre o sujeito da enunciação, ou narrador, e o narratário, ou entre o autor, o texto e o leitor; tal acordo implica as regras que presidem a realização do enunciado, tais como, questões do gênero, tipo, forma, de modo que o leitor tenha, com a representação literária, uma outra relação de cumplicidade diferente da que mantém com a realidade. Por essa convenção, está-se no reino do “faz de conta”, onde o discurso cria um mundo fictício, em que o leitor se envolve, vivendo uma outra realidade. No jogo da sedução, a cumplicidade se cumpre. Lendo-se, por exemplo, o belíssimo conto Comment Wang-Fô fut sauvé, que inaugura o livro Nouvelles orientales (1963), de Marguerite Yourcenar (1903-1987), o leitor, maravilhado diante de uma escritura essencial, sofisticada e eminentemente visual, compactua-se com o discurso e crê ou finge crer na história narrada e confunde tudo e todos os personagens – o velho pintor Wang-Fô, seu jovem discípulo Ling e o rei do reino de Han -, mas, ao fim e ao cabo da narrativa, funde-se a si mesmo na trama, emblema da magia da Arte, que a Literatura representa com magnificência. Pelo pacto da leitura, firmado em êxtase, o privilegiado leitor não mais sabe se especula, se sonha ou se medita.

No já clássico Le pacte autobiographique (1975), Philippe Lejeune define essa espécie de pacto como uma relação de identificação entre o autor real e o protagonista, identificação essa que engendra, por parte do leitor, uma atitude de confidente. Paul Aron, Denis Saint-Jacques e Alain Viala consideram que o pacto romanesco contrapõe-se a esse pacto autobiográfico, na medida em que aquele, inscrevendo-se na ficção, recusa a identidade entre o autor e o personagem principal. Precisamente na entrada “Pacte de lecture”, de Le dictionnaire du littéraire, Aron, Saint-Jacques et Viala lembram que o “incipit ‘era uma vez’ indica que o texto que se segue releva do gênero do conto e pode, pois, apresentar eventos feéricos ou fantásticos, pouco verossímeis ou totalmente inverossímeis, mas que o leitor está convidado a aceitá-los para que o texto possa desenvolver-se” (p. 417; tradução nossa). Se esse exemplo resume, segundo os dicionaristas, o princípio do pacto de leitura, as convenções que regem o pacto implícito implicam complicações e distorções, como no caso de Le Clézio, que “começa Le procès-verbal por ‘Il était une petite fois’, ou quando Laclos inscreve, em Les liaisons dangereuses, prefácios que se contradizem entre si” (ib.). Distinguem eles três planos no pacto de leitura: o plano econômico diz respeito à compra do texto, sob forma de livro, revista, bilhete de entrada para um espetáculo etc., que constitui o peritexto, correspondente à expectativa do leitor. No plano textual, “o contrato postula a adoção de convenções de ordem lingüística e simbólica” (ib.). Finalmente, no plano da leitura propriamente dito, “todas as teorias confrontam o modo como o leitor cumpre as funções previstas pelo texto e sua liberdade de ação, seu trabalho inferencial, seus conhecimentos e experiências pessoais”. Aqui, cabe a noção de horizonte de leitura, proposta pela estética da recepção, segundo Hans Robert Jauss (1921-1997), à qual podemos acrescentar a noção de repertório, proposta por Michel Butor. O verbete “Pacto de leitura” fecha-se com a remissão à questão do contexto epocal do texto, que produzirá pactos, contratos, convênios diferenciados. O intertexto de René Descartes (1596-1650) faz pensar: em seu Discours de la méthode (1637), o filósofo francês propõe “este escrito ou como uma história ou, se você preferir, como uma fábula” (p. 418). Então, ouvimos a pergunta, sábia e saborosa, de Machado de Assis (1839-1908): “Mudou o Natal ou mudei eu?”

{bibliografia}

ARON, Paul, SAINT-JACQUES Denis et VIALA, Alain. Le dictionnaire du littéraire (2002). BUTOR, Michel. Répertoire (I à V) (1960-1982). MORRIS, Charles. Signification and significance (1964). MUCCI, Latuf Isaias. www. professorlatuf.blogspot.com YOURCENAR, Marguerite. Nouvelles orientales (1963).