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Habitualmente, “papel” é utilizado em literatura com um significado próximo de personagem, ou seja, o papel de um actor numa representação dramática. Contudo, em termos ficcionais, também as personagens desempenham um papel específico. Para Anatol Rosenfeld, em “Literatura e Personagem” (in A Personagem de Ficção), nas grandes obras literárias o leitor é confrontado com seres humanos de contornos bem definidos (as personagens), que vivem situações exemplares, de modo exemplar, quase perfeito, que na vida real não se apresentam tão nitidamente. Ao contemplar essas personagens, o leitor vive uma outra vida que, de outro modo, dificilmente viveria. Para este autor, a “ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, através de personagens variadas, a plenitude da sua condição, e em que se torna transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objectivar a sua própria situação. A plenitude de enriquecimento e libertação, que desta forma a grande ficção nos pode proporcionar, torna-se acessível somente a quem sabe ater-se, antes de tudo, à apreciação estética (…), Somente quando o apreciador se entrega com certa inocência a todas as virtualidades da grande obra de arte, esta por sua vez lhe entregará toda a riqueza encerrada no seu contexto” (pp. 48-49).

Esta perspectiva aproxima-se, em certa medida, da teoria de Aristóteles expressa na Poética relativamente à catarse. Para este autor, a tragédia é “a imitação de uma acção de carácter elevado (…) não por narrativa, mas mediante actores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções” (p. 110). A função da catarse não é só a de remoção da pena e do medo, mas também a de providenciar uma satisfação distintamente estética, purificá-los e clarificá-los, por intermédio da arte. Obviamente, para Rosenfeld não se trata da purificação destas ou de outras emoções. Contudo, o facto de o leitor se identificar, observar e poder ser objectivo perante situações “vividas” pelas personagens é, de certa forma, uma extensão daquilo que Aristóteles já apontava.

Assim, adicionalmente à função interna de cada personagem na obra de ficção, as personagens nas verdadeiras obras literárias desempenham um papel mais abrangente – o de funcionarem como espelho catártico do leitor. Este espelho, ao reflectir um mundo semelhante mas diferente do real, permite ao leitor “viver” os acontecimentos narrados no texto com uma objectividade que a vivência do seu próprio real não lhe permite. E, como afirmou Goethe, citado por Rosenfeld, “através da arte (…) distanciamo-nos e ao mesmo tempo aproximamo-nos da realidade” (p. 49).

{bibliografia}

ARISTÓTELES, Poética, trad. Eudoro de Sousa, 2ª ed., s.l., INCM, 1990; CANDIDO, Antonio et allii, A Personagem de Ficção, col. Debates, 9ª ed., São Paulo, Perspectiva, 1995