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Etimologicamente derivado da palavra italiana pasticcio (massa ou amálgama de elementos compostos), pastiche era aplicado pejorativamente, no campo da pintura, a quadros forjados com tal perícia imitativa que procuravam ser confundidos com os originais. Durante a Renascença, devido à crescente procura de obras de arte em Florença e Roma, muitos pintores medíocres foram levados a imitar quadros de grandes mestres italianos, com intenções fraudulentas. O conceito viajou para França e pasticcio converteu-se no galicismo pastiche, no século XVIII.

Permitindo nomear uma práctica que é bastante anterior à criação do termo (note-se que a imitação dos clássicos era já recomendada por Quintiliano e por toda a tradição retórica), o pastiche literário, em termos genéricos, refere-se a obras artísticas criadas pela reunião e colagem de trabalhos pré-existentes. Imitação afectada do estilo de um ou mais autores, o pastiche, forma claramente derivativa, põe a tónica na manipulação de linguagens, contrapondo diversos registos e níveis de língua com finalidade paródica ou simplesmente estética e lúdica. Deliberadamente cultivado por inúmeros autores, o pastiche afirma-se como a escrita “à maneira de”. Faz uso de processos como a adaptação (modificação de material artístico de género para género e de uma forma para outra distinta), a apropriação (o empréstimo deliberado), o bricolage (a criação a partir de fontes e modelos heterogéneos) e a montagem.

Quanto à sua relação com o texto-fonte, o pastiche reveste-se de um carácter ambivalente, ao aproximar-se da paródia e da sátira, realizando-se num misto de homenagem, sublimando textos antecedentes por forma a mostrar a força e o prestígio da tradição canónica, e de provocação, subvertendo textos antecessores , uma forma de desqualificar o sistema e código vigentes. Consubstancia-se frequentemente num exercício capaz de estimular a actividade imaginativa, numa prática lúdica e formadora.

Quanto às condições que concorrem para o sucesso do pastiche como recurso textual, é fundamental que no texto-fonte seja visível um conjunto de traços peculiares, de temas recorrentes, um estilo autoral passível de ser apreendido, compreendido e convertido. Acrescente-se que outra das condições de pastiche deve ser a familiaridade com o hipotexto sobre o qual se realiza o pastiche, preferencialmente um texto que seja sobejamente conhecido por uma comunidade e exemplar a ponto de o pastiche poder ser compreendido como tal pelo leitor, caso contrário perde-se a eficácia deste recurso.

Subjacente à concepção do pastiche como forma derivativa, estão os conceitos de inter e transtextualidade, noções abordadas por Gérard Genette e Julia Kristeva. Segundo a teorização de Gérard Genette, em Palimpsestes, o pastiche é apontado como um recurso transtextual, classificando-se como uma forma de hipertexto uma vez que se trata de um texto que obedece a uma lógica derivacional face a outro que lhe é anterior (o hipotexto), estabelecendo com o texto matriz relações de imitação. Ao passo que a paródia estabelece uma base de relação de transformação com o texto-fonte, o pastiche adopta uma relação de imitação de cariz lúdico, contrapondo-se à forgerie, que se pauta por uma imitação de cariz sério. “Le pastiche est l’imitation en régime ludique dont la fonction dominante est le pur divertissement” (Seuil, Paris, 1982, cap XVI), indica Genette. Distingue igualmente esta forma do plágio dado que este último se trata da apropriação indevida de um texto que é apresentado com autoria da pessoa que dele se serve, resumindo-se a um diálogo iilícito com o texto-fonte.

A noção de produtividade surge intimamente ligada ao pastiche dado que é condição de todo o texto a possibilidade de originar múltiplos. Inerente à possibilidade de multiplicação de textos partindo de um texto-fonte, está a noção de incompletude do discurso, a ideia de escrita capaz de recriar outras escritas, como o provou Proust com Pastiches et Mélanges (1919)- série de escritos, realizados a partir de 1904, em que imita o estilo de Honoré de Balzac e Gustave Flaubert (um caso de intertextualidade hetero-autoral dado que textos de outrem actuam na produção de um autor). Não se vê assim este processo de escrita como degradação ou diminuição de criatividade, como quer crer certa crítica fundada sobre premissas neo românticas que valoriza o primado da originalidade e despreza formas derivativas, rotulando-as de valor estético nulo.

Acerca da discussão sobre a valorização ou depreciação estética do conceito, Margaret A. Rose aponta, na inúmera produção textual e crítica sobre o conceito, uma insistente desvalorização do termo erradamente remetido sem apelo nem agravo para o campo do plágio e da cópia: “ an imitation or forgery which consists of a number of motives taken from several genuine works by any one artist recombined in such a way as to give the impression of being an independent original creation by that artist” ( Parody: ancient, modern and post-modern, C.U.P., Cambridge, 1995, p.72). Denuncia-se a carga negativa atribuída à “more neutral technique of compilation that the word [pastiche] describes”, a par de outros processos derivativos (as técnicas de montagem e colagem, os centãos e formas afins) também marginalizados quanto ao seu valor estético.

O pastiche insere-se assim no espírito modernista da colagem e reaproveitamento de moldes e estilemas, reabilitando-se e libertando-se do estigma de processo menorizado. O revivalismo do pastiche na época pós moderna prende-se com a Literatura da Exaustão e o fim da originalidade e do estilo autoral, a procura de significado e identidade pela apropriação deliberada, e com a percepção esquizofrénica do mundo e da cultura como um manancial de fragmentos permanentemente reutilizáveis.

{bibliografia}

Carlos Ceia, O Que é Afinal o Pós-Modernismo? (1998); Gérard Genette, Palimpsestes La Littérature au Second Degré (1982); Ingeborg Hoesterey, Pastiche- Cultural Memory in Art, Film, Literature (2001); Léon Deffoux, Le Pastiche Littéraire: des origines à nos jours (1932); Margaret A. Rose, Parody: ancient, modern and post-modern (1995).