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Do latim perorātio, peroratiōnis, de perorāre: concluir, arrematar, acabar: finis coronat opus (O fim coroa a obra). Em geral breve, trata-se da parte final do discurso oratório, segundo a doutrina retórica antiga, que se segue ao exórdio, à apresentação e confirmação das provas, e à narração. Compõe-se, em geral, pela recapitulação, a amplificação e a comoção do auditório. A recapitulação traz à memória dos ouvintes os principais argumentos defendidos. A amplificação enfatiza, realça e evidencia uma idéia, intensificando-a. Nesse sentido, convém ao orador engrandecer os argumentos favoráveis à causa e diminuir os contrários por meio de ornamentos e figuras. A comoção se faz com o apelo ético e patético, tendo como fim a captatio benevolentiae dos ouvintes, ou seja, torná-los favoráveis à causa defendida. Nesse sentido, o fim da peroração é o comouēre (comover) e o mouēre (mover), isto é, emocionar e mover o ânimo dos ouvintes à ação. Sendo assim, a peroração, muitas vezes, é o lugar por excelência no qual se permite todo brilho e vivacidade da elocução, sendo conveniente o uso das figuras e tropos. Também é o momentos de despedida do orador, logo, convém que o coroe com efeitos eloqüentes, impressionando o auditório.

No terceiro livro da Retórica, Aristóteles apresenta a disposição das partes do discurso e as preceptivas convenientes para cada uma delas, inclusive a peroração (Aristóteles, Rhétorique 1403 b). Segundo esta preceptiva, a peroração divide-se em quatro elementos: o primeiro consiste em colocar o auditório a favor da causa e contrário aos argumentos rebatidos; o segundo em amplificar ou atenuar; o terceiro, em excitar os ânimos dos ouvintes e o quarto, em recapitular os argumentos apresentados (Aristóteles, Rhétorique, 1419 b).

Outra preceptiva antiga imprescindível é o De oratore de Cícero. No segundo livro, Antonio, personagem da invenção ciceroniana, caracteriza o melhor modelo de orador e o modo de articulação do discurso. De modo semelhante à preceptiva aristotélica, menciona o exórdio, a confirmação, a refutação e, por fim, a peroração. Porém, diferentemente de Aristóteles, Cícero, pela voz de Antonio, não enumera quatro elementos da peroração, mas privilegia o permouere, isto é, a persuasão patética do ouvinte para a causa defendida: “Deve-se concluir, em geral, trazendo para fim os principais argumentos de outras partes seja inflamando seja cativando aos juízes. Todas as razões, as principais da oração, sejam trazidas então no fim à memória dos juízes (ad mentis iudicum) o quanto possível devem comover (permouendas) e atrair (uocandas) para nossa utilidade.” (Cicero, De oratore, liv. II, 332). No livro de Cícero evoca-se a enumeração e recapitulação, todavia, os termos permouendas e uocandas predominam e reforçam o caráter patético (entenda-se patético como aquilo que inflama os afetos).

A Rhetorica ad Herennium não cuida especificamente da peroração, mas afirma que é necessário fazer conclusões em cada uma das partes do discurso: “Em quatro lugares podemos usar da conclusão: na introdução, depois da narração, depois do argumento mais forte e no final” (Rhet. ad Her., II, 47). Em todo caso, o livro endossa os princípios encontrados nas preceptivas aristotélicas e ciceronianas para a peroração, tais como: a enumeração, amplificação e comiseração (enumaratione, amplificatione, et commiseratione). Ao fim, prescreve que a comiseração deve ser breve, pois nada seca mais rápido que uma lágrima: Commiserationem breue esse oportet. Nihil enim lacrima citius arescit. (Rhet. Ad Her. II, 50)

Como vemos, quanto à peroração, as preceptivas pouco se diferenciam umas das outras. Apesar de Cícero reforçar mais o caráter afetivo da peroratio, as três preceptivas advogam pela necessidade de trazer de volta à memória dos ouvintes os argumentos defendidos ao longo do discurso, enaltecer aqueles mais favoráveis à causa do orador e provocar os afetos do auditório diante das suas razões. No entanto, é enganoso pensar que os oradores seguem de modo automático as preceptivas que lhes orientam. Seguem-nas, mas colocam-nas a serviço de sua invenção e de seu engenho, resultando em discursos, regulados pela doutrina, mas com efeitos variados segundo sua habilidade e fins. Para ilustrar esta última consideração, veremos alguns exemplos de peroratio de oradores célebres, tais como Cícero e o nosso padre Antônio Vieira.

No caso de Cícero, aludimos à Pro A. Lichino Archia poeta oratio (Defesa de Árquias). Trata-se de um discurso pronunciado em 62 a. C. que pertence aos chamados discursos judiciários ciceronianos. No entanto, a crítica e o próprio Cícero reconhecem que este discurso é anômalo por apresentar um encômio do poeta Árquias e, por conseguinte, das letras, fugindo, portanto, do caráter mais técnico de uma oração judiciária. Archias era grego, havia se tornado cidadão romano, mas alguém lhe desejava impugnar a cidadania, motivo pelo qual recorrera ao julgamento e à defesa de Cícero, seu discípulo e amigo. No texto de Cícero, o leitor encontra no exórdio elogios ao seu cliente e à sua sabedoria nas artes, com destaque para as letras, as optimae artes: gramática, retórica, filosofia e poesia. O orador pede licença à sua audiência e enaltece a dignidade do poeta, seja para a glória da pátria seja para o elogio dos feitos e da vida dos seus homens ilustres. Cícero narra brevemente a vida de Árquias, sua chegada a Roma e os merecimentos, inclusive a cidadania romana, recebidos pelas virtudes e habilidades letradas. Cícero apresenta os testemunhos, provas e argumentos favoráveis ao seu cliente (testemunho de Licurgo e os registros de Metelo), passando em seguida aos elogios do poeta. Lembra as obras de Árquias em favor das glórias romanas e afirma que, se o poeta não fosse romano, dar-lhe-iam certamente a cidadania algum dos generais que imortalizados em suas obras. Com isso introduz o argumento do amor pela fama e glória: seria justo que os esforços dos melhores varões morressem com eles? Se muitos deixaram estátuas com suas imagens, não seria maior preferência deixar a imagem dos atos e feitos?

Assim, os principais argumentos do discurso ciceroniano foram: 1. Fará um discurso menos judiciário e mais laudatório. 2. A dignidade das letras e a notoriedade dos poetas. 3. Árquias é merecedor da condição de cidadão romano. 4. Defende a dignidade de Árquias como poeta e homem de letras. 5. Se não fosse cidadão, seria investido da condição por seus feitos nas letras para a glória da pátria e dos romanos. Com isso, o orador chega ao epílogo ou peroração, trazendo à memória dos ouvintes a prova dita anteriormente por enumeração (o testemunho de Lúculo e os registros de Metelo), o enaltecimento dos merecimentos da causa pela amplificação e o incitamento dos juízes por afetos favoráveis à causa (permouere). Destacamos abaixo as expressões que evidenciam a amplificação e os fins afetivos da peroração ciceroniana:

Sendo assim, juízes, se algum título de recomendação, não apenas humana, senão também divina, deve haver em gênios de tal grandeza, que este homem, que jamais deixou de vos celebrar, a vós, aos vossos generais, aos cometimentos do povo romano, que até declara ter em mente imortalizar, pelo seu testemunho, estes perigos internos em que, ainda há pouco, tanto eu como vós nos vimos envolvidos, e que pertence ao número dos que nunca deixaram de ser considerados e chamados sagrados por toda a gente, peço-vos que o tomeis sob vossa proteção, por forma que ele seja confortado por sua bondade, e não ultrajado pelo vosso rigor. A parte da defesa respeitante ao problema jurídico, que eu, segundo os meus hábitos, proferi com brevidade e simplicidade, estou confiante que obteve a aprovação de todos vós; as palavras que eu pronunciei, estranhas ao foro e às praxes judiciárias, não apenas sobre o talento de meu cliente, senão também sobre os seus estudos em geral, espero que as tenhais acolhido favoravelmente, foram-no, estou certo, por quem preside ao tribunal. (Defesa de Árquias, XII, grifo nosso)

As preceptivas retóricas latinas tiveram longa duração na doutrina oratória ocidental européia, sendo refundidas e apropriadas na oratória jesuítica seiscentista, da qual o Padre Antônio Vieira é dos seus mais notáveis representantes. Os manuais de oratória do século XVII emendam as preceptivas latinas e as colocam a serviço da pregação contra-reformista das matérias católicas. Nesse sentido, torna-se adequado observarmos um exemplo da oratória sacra seiscentista e o uso que faz do preceito da peroração. Referimo-nos ao célebre Sermão da sexagésima, pregado em 1655 na Capela Real, um texto no qual o pregador avalia a própria pregação. Vieira analisa a composição dos sermões, tendo em vista três elementos fundamentais para a pregação: a Graça, o pregador e o ouvinte, buscando investigar em qual deles encontra-se a ineficácia da pregação. Descartados a graça e o ouvinte como causa do fracasso persuasivo, analisa, portanto, a figura do pregador, examinando cinco circunstâncias: pessoa, estilo, ciência, matéria e voz. Em todas as cinco o pregador encontra faltas graves, todavia, não são estes elementos a causa do malogro da pregação. O fracasso se dá pelo “testemunho dos pregadores” que, embora conhecedores da palavra divina, não as toma em seu sentido apropriado, mas as distorce segundo os interesses e propósitos de agradar aos ouvintes, no lugar de desenganá-los e move-los à mudança dos maus costumes. O sermão de Vieira, por seus fins, tem como característica mais evidente da peroração, além da comoção, o mover à ação do cristão em sua emenda de vida:

Semeadores do Evangelho, eis aqui o que devemos pretender nos nossos sermões, não que os homens saiam contentes de nós, senão que saiam muitos descontentes de si, não lhes pareçam bem nossos conceitos, mas que lhes pareçam mal os seus costumes, as suas vidas, os seus passatempos, as suas ambições, e enfim, todos os seus pecados. (…) Se eu contentara aos homens, não seria servo de Deus. Oh contentemos a Deus, e acabemos de não fazer caso dos homens! Advirtamos que nesta mesma igreja há tribunas mais altas que as que vemos. Spectaculum facti sumus Deo, Angelis et hominibus (Somo espetáculo para o mundo, para os anjos e para Deus). Acima das tribunas dos Reis, estão as tribunas dos Anjos, está a tribuna e o tribunal de Deus e de nós. Estamos às portas da Quaresma, que é o tempo em principalmente se semeia a palavra de Deus na Igreja, e em que ela se arma contra os vícios. Preguemos e armemo-nos todos contra os pecados, as soberbas, contra os ódios, contra as ambições, contra as invejas, contra as cobiças, contra as sensualidade. Veja o céu que tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus; e saiba a mesma terra, que ainda está em estado de reverdecer, e dar muito fruto: Et fecit fructum centuplum (E fez-se em cem frutos).

A peroração do Sermão da sexagésima reforça o argumento sobre a ineficácia da pregação na figura do pregador. Mais ainda, ressalta que o pregador deve se eximir das suas vaidade e soberba no ato da pregação para que o fim não seja a satisfação dos ouvintes, mas a tristeza por seus maus costumes. Cumpre, portanto, as funções de recapitulação da matéria principal do discurso e, por meio de figuras e tropos, impele os ânimos dos ouvintes à ação.

{bibliografia}

Antonio Vieira. Sermões. Tomo I. Alcir Pécora (org.) São Paulo: Hedra, 2003; Aristóteles. Retórica. Tradução francesa de Médéric Dufour e André Wartelle. Gallimard, 2003; Cícero, De Oratore. Livro II, Tradução francesa de Edmond Courbaud. Paris, Belles Lettres, 1966; ____, Pro Archias poeta oratio. Introdução, tradução e notas de Carlos Alberto Louro Fonseca. Série clássicos gregos e latinos. Maria Halena da Rocha Pereira (direção). Lisboa, Verbo, 1974; Dias, J. Simões. Theoria da Composição Litteraria, Lisboa, Livraria Clássica, 1910; Rhetorica ad Herennium. Tradução portuguesa de Ana Paula Celestino e Adriana Seabra. São Paulo, Hedra, 2005