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Figura de retórica que consiste em atribuir qualidades, comportamentos, atitudes e impulsos humanos a coisas ou seres inanimados e a animais irracionais.

Tendo em conta a “teoria das figuras”, nomeadamente na forma que lhe foi dada por Quintiliano, podemos agrupar as figuras de retórica em dois grandes grupos: um deles formado pelas figuras de palavras (“figurae verborum”); o outro, pelas figuras de pensamento (“figurae sententiarum”). Uma vez que quando falamos de personificação fazemos referência fundamentalmente a um desvio que incide sobretudo no significado e não na forma ou no significante, podemos integrar este recurso estilístico no segundo grupo referido. A personificação é uma figura de pensamento frequente na literatura. Existe também um grande número de expressões da linguagem corrente que tiveram na sua origem uma perspectiva animista da realidade não humana sem vida. É o caso de expressões como “garras da morte” ou “boca do inferno”. Como Stephen Ullmann faz notar, no texto literário, as próprias palavras chegam a ser personificadas: “A fascinação que as palavras exercem no artista criador explica o hábito de as personificar e visualizar como […] seres humanos.” (Semântica, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987, p.80). Em diferentes textos poéticos, encontramos os seguintes exemplos de personificação: “A água não pára de chorar.” (“Dentro da Noite” in Manuel Bandeira, Obras Poéticas, Livraria Bertrand, Lisboa, 1956, p.64); “Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara./ Sem uso,/ Ela nos espia do aparador.” (“Cerâmica” in Carlos Drummond de Andrade, Antologia Poética, Editôra do Autor, Rio de Janeiro, 1963, p.217); “Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta/ Continuará o jardim, o céu e o mar, / E como hoje igualmente hão-de bailar/ As quatro estações à minha porta.” (“Quando” in Sophia de Mello Breyner Andresen, Antologia, Moraes Editores, Lisboa, 1975, p.66).

A personificação encontra-se ainda intimamente relacionada com uma outra figura de estilo – a alegoria – que consiste na representação de uma ideia, de um conceito ou de uma abstracção através de uma figura concreta. Heinrich Lausberg considera a personificação como uma “variante de realização da alegoria”, que “consiste na introdução de coisas concretas […], assim como de noções abstractas e colectivas […], como pessoas que aparecem a falar e a agir.” (Elementos de Retórica Literária, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1982, p. 251). Contudo, embora em parte correcta, esta definição não é totalmente aceitável, uma vez que faz entrar no domínio da personificação a área de realização da prosopopeia. Mário Ferreira dos Santos define prosopopeia como uma figura de ornamento que consiste em “dar vida e palavra às coisas inanimadas, aos seres abstractos, aos ausentes, aos mortos.” (Curso de Oratória e Retórica, Logos, São Paulo, 1958, p. 49). No entanto, também esta definição parece não demarcar a diferença fundamental entre personificação e prosopopeia. Esta figura de retórica consiste em o orador dar voz às coisas inanimadas e fazer falar as pessoas ausentes e até os mortos. O episódio do Adamastor n’ Os Lusíadas é, portanto, uma prosopopeia.

Podemos considerar a personificação como uma forma possível de animismo, na medida em que este resulta da atribuição de características próprias dos seres animados a seres inanimados. Porém, note-se que nem todos os animismos são simultaneamente personificações (por exemplo, se a característica atribuída a um ser inanimado for própria de um animal e não de um ser humano), nem a personificação é sempre um animismo (por exemplo, se for atribuída a um animal irracional uma característica própria do Homem).

{bibliografia}

Afrânio Coutinho: Notas de Teoria Literária (Rio de Janeiro, 1976); Heinrich Lausberg: Elementos de Retórica Literária (Lisboa, 1982); Henri Suhamy: As Figuras de Estilo (Porto, s.d.); Mário Ferreira dos Santos: Curso de Oratória e Retórica (São Paulo, 1958); Michel Meyer: Questões de Retórica: Linguagem, Razão e Sedução (Lisboa, 1998); Nelly Novaes Coelho: Literatura e Linguagem (Rio de Janeiro, 1974); Renato Barilli: Retórica (Lisboa, 1985); Stephen Ullmann: Semântica (Lisboa, 1987).