Select Page
A B C D É F G H Í J K L M N O P Q R S T Ü V W Z

Influência de Francesco Petrarca (Arezzo, 1304 – Padova, Arquà, 1374) no âmbito da literatura vulgar e neolatina, bem como no domínio do pensamento, da civilização e das belas-artes. A vastidão do seu alcance faz do petrarquismo um fenómeno cultural único. Serve-lhe de fulcro o carácter absolutamente inovador da metodologia instaurada a partir de uma nova relação com a Antiguidade Clássica por aquele que a justo título foi denominado como “o primeiro moderno”. As pesquisas históricas e filológicas que leva a cabo, o ataque à escolástica e ao aristotelismo, ou a descrição de vícios e paixões, têm por pedra-angular o objectivo de alcançar uma mais íntima compreensão da essência do humano, à luz de uma profunda confiança nas possibilidades da razão e de um inabalável dogmatismo cristão, mas com plena consciência das contradições que sulcam o universo da interioridade. Aliás, Petrarca foi o primeiro homem de letras a compreender que a palavra poética é a melhor forma de traduzir a subjectividade e a fluidez do processo de interiorização do mundo que rodeia o sujeito lírico. Hoje em dia, a crítica tende a distinguir o petrarquianismo (com referência à obra de Petrarca) do petrarquismo (com referência à obra dos seus seguidores).

Sendo o método humanista cerne de uma actividade que se alarga por áreas muito diversificadas, não é possível estabelecer fronteiras estanques entre o labor do poeta e do prosador, do versejador em vulgar e do cultor da língua latina, do moralista, do historiador ou do filólogo. Como tal, o uso da designação de petrarquismo para referir, exclusivamente, a influência exercida por Petrarca num destes campos (em geral, o da poesia amorosa) mostra-se absolutamente acientífico. Há também que refutar qualquer espécie de assimilação do fenómeno do petrarquismo, por um lado, ao stilnovismo e, por outro, ao neoplatonismo. Os poetas stilnovistas encontram-se activos entre o último quartel do século XIII e o primeiro do século XIV. O seu magistério poético foi superado pelo de Petrarca. O neoplatonismo, por sua vez, enquanto corrente filosófica, assume grande importância no pensamento petrarquiano, em particular através do agostinianismo, embora seja nos séculos XV e XVI, na sequência das traduções de Platão levadas a cabo por Marsilio Ficino, que o filão literário do petrarquismo é mais directamente associado às concepções acerca de amor partilhadas pelo filósofo grego. Mas a produção literária dos sequazes de Petrarca não se encontra necessariamente ligada a essa corrente filosófica.

No século XIV, a sua fama anda proeminentemente associada à auctoritas do mestre de latinidade. Ainda o poeta era vivo e já Benvenuto da Imola comentava os hexâmetros do Bucolicum carmen. Os seus escritos latinos são lidos na praça pública. Os tesouros guardados nas estantes da sua biblioteca são copiados por eruditos da mais diversa proveniência, e muitos dos estudantes do norte da Europa e da Alemanha que frequentam as universidades italianas, ao regressarem aos respectivos países de origem, levam na sua bagagem antologias petrarquescas. No entanto, face às novas exigências decorrentes de uma mais estrita observância do estilo de Cícero e de Virgílio, a admiração pelos escritos em latim de Petrarca vai decrescendo, ao mesmo tempo que a obra do poeta em vulgar suscita um interesse cada vez maior.

Na verdade, o capítulo mais famoso da história do petrarquismo é o do petrarquismo lírico. Ao exprimir todas as modulações de uma alma sensível e dolente em versos que têm por pressuposto o conhecimento de toda a tradição poética ocidental, entre a antiguidade, os provençais, os sicilianos, os sículo-toscanos e os stilnovistas, Petrarca instaura uma tradição secular. O petrarquismo funcionará, nos séculos seguintes e até aos alvores do Romantismo, como código dominante da expressão amorosa em todas as literaturas europeias.

A sua penetração é tão vasta, que passa também a ditar normas de civilização e tratados de costume. O alcance deste fenómeno é sobejamente representado pelo excepcional número de edições dos Rerum uulgarium fragmenta (habitualmente designados como Canzoniere, ou melhor, “o” cancioneiro) batidas ao longo de todo o século XVI — um verdadeiro best seller. Numa época em que todas as emoções eram afinadas pelo diapasão de Petrarca, o petrarchino (como eram afectuosamente designadas as tiragens do cancioneiro em formato reduzido) assumia o papel de uma espécie de vade mecum, capaz de acompanhar em uníssono as mais íntimas sensações, a ponto de ser lido nas Igrejas, onde se confundia com um livro de horas em virtude das suas dimensões.

No plano literário, a eleição do modelo petrarquiano como código decorre das próprias possibilidades de “recursibilidade” e de “repetibilidade” inerentes à escrita de Petrarca. Pela disciplina de arte clássica que enforma os seus versos escritos em língua vulgar, construídos a partir de padrões expressivos que se repetem recorrentemente (o que já tem levado alguns críticos a notar que o primeiro poeta petrarquista foi Petrarca), os Rerum uulgarium fragmenta ofereciam-se como um texto límpido e harmonioso que se prestava a ser imitado. Em períodos ao longo dos quais todo o trabalho literário tem por lema a imitação, a arte de Petrarca é consignada em dicionários, rimários, livros de emblemas e gramáticas que têm por objectivo sistematizar um conjunto de normas e de exemplos disponíveis para re-utilização. Do âmbito restrito do lirismo, as convenções petrarquistas estendem-se, pois, a outros domínios, como o do encómio, da epopeia, da tragédia, ou da comédia.

Na literatura italiana, o petrarquismo desempenhou um importante papel, que está hoje a ser revalorizado, no processo de homologação linguístico-literária, sobretudo através da hipercodificação mediadora de Pietro Bembo. No âmbito de outras literaturas europeias, este fenómeno implicou uma profunda renovação poética, desencadeando processos de contaminação dinâmica extremamente criativos, como bem o ilustra o caso português. Todavia, os excessos a que conduziu inspiraram a corrente do antipetrarquismo, que tem por alvo não tanto o magistério do seu mentor, quanto o dos seus seguidores.

Petrarca continua a ser, indubitavelmente, uma referência para a poesia e para a arte contemporâneas — Alexandre O’Neill, Mario Luzi, René Char, Vieira da Silva —, diluída num universo etéreo que faz dela um absoluto. Mas um dos campos em que a lição de Petrarca se mantém, ainda hoje, particularmente viva, é o da filologia histórica. A interpretação textual de Cícero e de Tito Lívio levada a cabo pelo vate de Arezzo continua a revelar, mais de seis séculos volvidos, toda a sua pertinência crítica.

{bibliografia}

Ettore Bonora, “Francesco Petrarca”: I classici italiani nella storia della critica, 1 (1956); G. Hoffmeister, Petrarkistische Lyrik (1973); Michele Feo, “Petrarca ovvero l’avanguardia del Trecento”: Quaderni petrarcheschi, 1 (1983); Amedeo Quondam, Il naso do Laura. Lingua e poesia lirica nella tradizione del Classicismo (1991); Rita Marnoto, O petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo (1994).