Inerente à própria natureza das relações humanas, o poder, seja ele controle das acções e dos comportamentos dos outros indivíduos, seja mera potencialidade de acção, concretiza‑se em sociedade sob múltiplas formas e tem sido legitimado ao longo da História de acordo com fundamentos vários. Se para Maquiavel, por exemplo, caberia exclusivamente ao príncipe o governo da urbe, a condução da guerra e a administração da justiça, já Hegel reconhecerá apenas no Estado, instância universal e subtraída de vontades e paixões particulares, a única entidade que pode chamar a si o poder último sobre todos os indivíduos, traduzindo‑se isso, inter alia, na realização efectiva do direito.
John B. Thompson concebe o poder enquanto capacidade conferida institucionalmente ao indivíduo ou ao grupo para levar a cabo a defesa de certos interesses ou a concretização de propósitos previamente definidos (J. B. Thompson, 1990: 59). Essa capacidade manifesta‑se principalmente nas esferas política, militar e económica, as quais, constituindo embora cada uma um universo referencial próprio, estão estreitamente interligadas e condicionam‑se reciprocamente, como o demonstrara Bertrand Russell. Este filósofo britânico procuraria contornar a prevalecente ideia marxista de que a economia é o motor da História, apresentando como alternativa a sede de poder, condição sine qua non de toda a evolução política (B. Russell, 1938: 9). Na análise que faz em finais da década de trinta das várias formas de poder que marcaram até então o presente século, denunciaria não só as articulções existentes entre os interesses económicos, a expansão territorial e a intervenção militar, mas também — à semelhança de Foucault, mais tarde — o facto de a verdade funcionar como o mais eficaz instrumento do poder político.
Ao contrário de Russell, porém, Foucault, na sua “arqueologia” da verdade, não se limitaria à abordagem dos efeitos da propaganda sobre a opinião pública. O autor de Surveiller et Punir e de la Volonté de savoir encontrará igualmente no próprio discurso científico um dos traços constitutivos da “economia política da verdade”. Enquanto sistema de procedimentos orientados para a produção e circulação de proposições, a verdade é, de acordo com Foucault, indissociável dos sistemas de poder que a regulam. Daí ser legítimo falar de um regime de verdade (M. Foucault, 1988: 131‑133).
O poder revela‑se, portanto, como um elemento estruturador e consolidativo da ordem social, determinando o estatuto hegemónico deste ou daquele grupo, que o mesmo é dizer, definindo o grau de dominação, de repressão e de influência exercidas, ainda que inconscientemente, sobre os restantes grupos. No seio desse grupo circula uma linguagem própria — a que Roland Barthes deu o nome de encrática — emanada do poder, incrustrada de dogmas e, por vezes, doxomaníaca, que não admite contradição nem coexistência com outras linguagens, suas contestatárias. Assim, as relações assimétricas que, no interior do tecido social, se constróem de acordo com os ditâmes do poder, são justificadas e naturalizadas dentro de um vocabulário que vai buscar os seus significantes à ideologia dominante. É nesse sentido que Terry Eagleton irá argumentar que toda a ideologia marca o ponto em que o poder penetra e se instala no cerne dos discursos, intervindo activamente nos processos de construção de sentidos. Note‑se, todavia, que nem todos os discursos partilham do poder. Roland Barthes, embora admitindo não haver texto sem ideologia (R. Barthes, 1973: 53), reconhece que no interior da logosfera (‘le monde du langage’) é impossível aspirar a uma harmonização ideológica dos diferentes sociolectos — linguagens alimentadas por certas ficções, ou, como ousará ainda qualificar, por certas ‘paranóias’ (R. Barthes, 1973: 47) — que entre si competem pela hegemonia.
Em termos da produção literária e dos seus mecanismos de circulação, distribuição e regulação, o poder também desempenha um papel fulcral, nomeadamente no que diz respeito aos modos como se categorizam certos textos, que ora nos surgem censurados e banidos por um qualquer organismo governamental, ora segregados pelo crivo editorial ou pela crítica jornalística, ora integrados na “grande tradição literária” e cuidadosamente preservados (seja através dos programas das disciplinas de literatura, seja por via dos inúmeros estudos emitidos pela comunidade académica (cf. Catherine Belsey, 1988: 400‑410)). O efeito subversivo de qualquer discurso marginal pode ser por este meio não só atenuado, como até neutralizado, sendo a sua mensagem domada, digamos, através de um contra‑discurso exegético que procura não só pôr a nú eventuais inconsistências presentes no texto (veja‑se o caso da desconstrução), como ainda distanciar‑se de uma forma politicamente asséptica das motivações e dos alinhamentos ideológicos, estéticos ou filosóficos do autor e das teias de cumplicidade que o ligam a um certo público‑alvo.
Dado que se crê capaz de desafiar a autoridade instituída, a literatura, mais do que qualquer outra forma de expressão artística, sujeita‑se à apertada vigilância dos Aparelhos de Estado, que por vezes dela se apropriam para consubstanciar um imaginário consentâneo com os interesses do grupo hegemónico. Como consequência, certas narrativas espelham as estruturas de poder vigentes na sociedade que assistiu ao seu nascimento: atente‑se, por exemplo, nas obras produzidas à luz do realismo socialista na antiga União Soviética ou ainda na escrita de autores como F. Marryat, G. A. Henty, H. Rider Haggard e Rudyard Kipling que inspiraram o imperialismo popular na Inglaterra vitoriana. Mas mais importante do que tais reflexos é a crítica, mais ou menos explícita, mais ou menos velada, revestida ou não de tonalidades satíricas, que aos poderes instituídos é dirigida pelo escritor inconformado ou maldito. Um dos casos mais mais notórios desse inconformismo é o do dramaturgo irlandês Sean O’Casey, que, à semelhança do seu conterrâneo George Bernard Shaw, perfilhou incondicionalmente a causa soviética. Tendo sempre permanecido fiel aos ideiais que o levaram inicialmente em 1911 a juntar a sua voz à do sindicalista Jim Larkin, O’Casey, que se votou ao exílio em Inglaterra em 1926 após a conturbada estreia de The Plough and the Stars, acabaria por se tornar num dos mais contundentes críticos de uma Irlanda sufocada pelo poder eclesiástico. Isso é particularmente visível em The Cock‑a‑Doodle‑Dandy (1949), The Bishop’s Bonfire (1955) e The Drums of Father Ned (1958), peças da sua última fase e cuja recepção na Irlanda não pôde, à semelhança de algumas obras anteriores, deixar de ser extremamente controversa (Cyril Cusack teve mesmo que suspender as representações da sua produção de The Bishop’s Bonfire sob os protestos do público e três anos volvidos The Drums seria retirado do festival de teatro de Dublin dada a oposição do Arcebispo da cidade).
Um outro exemplo dessa resistência aos poderes instituídos é‑nos dado por um outro escritor que soube denunciar sem hesitação os males sociais da França oitocentista. Em 1898, intervindo a favor do capitão Albert Dreyfus (caso de espionagem que inflamou a opinião pública não só em França, como em toda a Europa) Émile Zola publicaria um artigo, o famoso «J’Accuse!», que lhe custaria, para além de um determinado período de detenção, um ano de exílio em Inglaterra.
Seja enquanto forma de contra‑poder, seja enquanto manifestação de uma consciência moral atenta que não é conivente nem cede à coerção do grupo hegemónico, a literatura desempenhará sempre um papel relevante na interpelação crítica da realidade social e política, obrigando mesmo a questionar de quando em vez o tal regime de verdade referido por Foucault.
R. Barthes: Le Plaisir du Texte (1973); C. Belsey: «Literature, History, Politics», in Modern Criticism and Theory, ed. por D. Lodge (1988); P. A. Bové: «Discourse», in Critical Terms for Literary Study, ed. por F. Lentricchia e T. McLaughlin (1990); T. Eagleton: Ideology: An Introduction (1991); M. Foucault: Power/Knowledge (1980); J. B. Thompson: Ideology and Modern Culture (1990); B. Russell: Power (1938).
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