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Falar da poética como uma das disciplinas clássicas dos discursos implicará constante referência à retórica, na qual muitas vezes a poética se achará subsumida, sem embargo de se poder apontar também certo empenho de distinção relativa desta em face daquela.

Assim, as artes retóricas sempre reconheceram os poetas como pioneiros e modelares, deles extraindo exemplos ilustrativos, que apresentam as vantagens de serem ao mesmo tempo concisos, memoráveis e talvez já familiares (cf. Dixon,1971, p. 51); depois, contudo, com a generalização da retórica, ocorre uma inversão: “Tendo aprendido da poesia, especialmente em assuntos de estilo, a retórica aceitou os poetas como seus discípulos aptos e predispostos” (ibid., p. 52).

Convém iniciar portanto por um levantamento analítico do influxo da retórica sobre produções discursivas hoje incluídas no campo literário: por via da educação recebida — de base retórica, da antigüidade ao século XVIII —, os escritores conduziram muitos elementos retóricos para a sua produção, entre eles os tópicos ou lugares-comuns; no sistema de ensino medieval, que não incluiu a poética entre suas disciplinas, a posição da poesia no trivium oscilava entre retórica e gramática; para a fusão entre retórica e poética concorreu a circunstância de, já na antigüidade, ter-se alargado o âmbito da primeira, que deixa de ater-se à persuasão para ocupar-se com o bem dizer em geral; entre as modalidades literárias, diversos gêneros se caracterizam pela cooperação entre as duas disciplinas clássicas do discurso, desde aqueles em que a importância da persuasão e da argumentação é evidente — sátira, obras éticas, poemas didáticos, epistolografia —, até os que implicam certas adaptações e/ou absorção de atributos de extração retórica — o panegírico poético, procedente das orações demonstrativas; o interlúdio dramático e a peça de moralidade, que absorvem o “debate” retórico; o aforismo moral, decorrente da discussão aristotélica dos lugares-comuns e máximas; os poemas líricos, freqüentemente, por exemplo, verdadeiras miniaturas de orações demonstrativas que têm por causa a beleza feminina; o romance epistolar, de certo modo expansão do gênero retórico das cartas familiares (cf. Dixon, p. 45-58, passim).

Ainda quanto às origens das relações entre retórica e poética, é comum se invocar o caso de Górgias, que, ao estender à prosa a linguagem elaborada e ornamental em princípio apanágio da poesia, determina uma confluência entre as duas esferas, podendo-se considerar portanto o seu Defesa de Helena tanto uma arte retórica quanto uma arte poética pré-aristotélica (cf. Barthes, em Cohen et alii, 1971, p. 152-3; Aristóteles, 1966, p. 165; Plebe, 1968, p. 12-3; Dixon, 1971, p. 35).

Em Aristóteles, porém, a separação relativa entre as duas disciplinas se configura no fato de ele ter escrito dois tratados distintos dedicados a cada uma delas, ainda que as remissões recíprocas presentes na Retórica e na Poética apontem também para a sua proximidade. Considerando o modelo aristotélico, pode-se dizer que, enquanto a retórica se ocupa sobretudo com oratória, raciocício e persuasão, a poética lida principalmente com poesia, mimesis, verossimilhança e catarse.

Cícero, por sua vez, reconhecendo embora os pontos de contato, se esforça em demonstrar as diferenças entre eloqüência e poesia, a ele se atribuindo a autoria da sentença que se tornou proverbial: “Nascimur poetae, fimus oratores” (cf. Ronai, 1980, p. 115 e 140). Seu quase contemporâneo Ovídio, no entanto, é explícito quanto ao reconhecimento da interpenetração entre as artes retórica e poética, tendo declarado numa epístola em versos dirigida a um professor de retórica: “… assim como minhas cadências recebem vigor de sua eloqüência, eu proporciono brilho às suas palavras” (apud Dixon, 1971, p. 52).

Outros testemunhos antigos importantes da interpenetração entre as duas disciplinas se encontram em dois pequenos e influentes tratados escritos sob a forma de epístolas, a Arte poética, de Horácio (não obstante o título), e o Sobre o sublime, cuja autoria é hoje geralmente atribuída a um certo Hermágoras, do século I d. C. (cf. Plebe, 1968, p. 76-7). Por fim, ainda no que concerne à antigüidade, cabe referência às posições de Tácito e de Quintiliano, que assinalam a estreiteza dos laços entre eloqüência e poesia, reconhecendo no entanto as diferenças que separam as duas artes (cf. Plebe, 1968, p. 71-2; Barthes, em Cohen et alii, 1975, p. 161-2).

Durante a idade média, domina a identidade entre retórica e poética, ou, em termos talvez mais precisos, o “… campo [retórico] engloba três cânones de regras, três artes”(Barthes, em Cohen et alii 1975, p. 168): 1º- artes sermocinandi (área da retórica stricto sensu, isto é, arte oratória, então representada pela sermonística cristã); 2º – artes dictandi (área da correspondência administrativa, impulsionada pela organização da administração pública sob Carlos Magno); 3º – artes poeticae (área da criação poética em sentido estrito, constituída por retóricas com matéria adicional sobre versificação [cf. Dixon,1971, p. 52]).

Mas no limiar da idade moderna começaria a se reforçar a distinção entre retórica e poética. Em fins do século XV já se observa oposição entre a Primeira Retórica (ou retórica geral) e a Segunda Retórica (ou retórica poética), da qual teriam derivado as artes poéticas do classicismo moderno (cf. Barthes, em Cohen et alii, 1975, p. 168). Tendo em vista, no entanto, o caráter acentuadamente retórico de tais poéticas (veja-se, por exemplo, a de Boileau — L’art poétique, 1674 — e a de Pope — Essay on criticism, 1711), pode-se pôr em dúvida a diversificação de esferas apontada. Nesse sentido, parece mais aceitável outra sugestão do mesmo Barthes (ibid., p. 174-5): com a entusiástica redescoberta da Poética de Aristóteles ocorrida em fins do século XV, a arte poética torna-se o código da “criação” literária, sendo cultivada por autores e críticos, ao passo que a arte retórica, tendo por objetivo o “bem escrever”, se restringe ao âmbito do ensino, sendo um domínio de professores, especialmente jesuítas.

Na mesma linha da hipótese de Barthes quanto ao caráter moderno da separação entre retórica e poética pronuncia-se João Adolfo Hansen. Inicialmente, ele mostra que, sem embargo da diferenciação antiga entre a mimesis utilitária da oratória e a mimesis concentrada da poesia, também o poeta visava à persuasão do público, razão por que tanto o discurso oratório quanto o poético se retoricizam; depois, sobre o fortalecimento daquela distinção, tão esbatida no mundo antigo, conclui: “A nossa distinção de retórica/poética talvez seja (…) também um produto terminado no século XVIII: desaparece a retórica, a poética se torna a disciplina da autonomização da arte como estilística de efeitos desinteressados”(Hansen, 1994, p. 59).

Para concluir, será conveniente situar tanto a superação histórica da poética quanto os modos renovados de sua presença.

Havendo verificado a persistência dos vínculos entre retórica e poética, que afinal implicou verdadeiro sincretismo destas duas artes, deve-se inferir que o processo de descrédito da poética como uma das disciplinas clássicas dos discursos coincide com aquele que conduziu à ruína da retórica. A propósito disso, portanto, remetemos o leitor às considerações feitas no verbete retórica, em que tratamos da obliteração das práticas retóricas (ou, talvez mais precisamente, retórico-poéticas).

Quanto aos modos de permanência da poética, podem eles ser observados mediante o exame dos sentidos que se atribuem ao termo poética depois da superação histórica da disciplina que inicialmente nomeava, isto é, sentidos correntes do século XIX em diante.

Observe-se de saída que, se a palavra retórica assumiu um significado pejorativo, o mesmo não se passou com o vocábulo poética. Acreditamos poder associar esse fato à observação de João Adolfo Hansen há pouco referida, segundo a qual, extinta a retórica no século XVIII — ou, mais precisamente, vendo-se rebaixada à condição de responsável por um palavreado rotineiro e oco — , a poética se apresenta como sua sucessora, consumando-se desse modo a distinção entre as duas disciplinas, até então impossível praticamente de ser estabelecida. Assim, conservando dignidade de sentido, a poética se credencia a herdar o que sobrou da retórica: a elocução, concebida, em chave romântica, como estudo de dispositivos lingüísticos aptos à manifestação da subjetividade mediante ruptura de normas. Tendo por objeto uma elocução psicologizada, e vista como o âmago da literatura, a poética torna-se então “…a disciplina de autonomização da arte como estilística de efeitos desinteressados” (Hansen, 1994, p. 59). O termo assim se desvencilha da idéia de preceptística, receituário retórico de poesia, passando a designar a investigação sistemática da natureza e funções da literatura, nomeando a disciplina nuclear dos estudos literários contemporâneos. Os demais significados que marcam o curso da palavra a partir do século XIX encontram unidade nessa acepção mais ampla, de que constituem derivações redutoras da generalidade. Desse modo, poética significará também determinado entendimento de poesia — ou de literatura em geral — característico de certo autor, época ou gênero literário, depreensível das obras por meio de análise, donde expressões como “poética de Gonçalves Dias”, “poética do modernismo”, “poética do romance”. Finalmente, em âmbito ainda mais particularizante, a palavra designa poemas em que um poeta expõe, em tom de manifesto, seu modo específico de conceber e praticar a poesia, podendo tais poemas receber títulos variados ou a denominação explícita de “poética” ou “arte poética” (entre inúmeros exemplos, citemos: “Antífona”, de Cruz e Sousa; “Poética”, de Manuel Bandeira; “L’art poétique”, de Verlaine).

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