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1) Termo que designa um tipo de composição musical em que várias vozes, ou melodias, se sobrepõem em simultâneo de acordo com as regras do contraponto. Opõe‑se‑lhe a monodia ou homofonia, na qual as vozes executam exactamente o mesmo movimento melódico, em uníssono e seguindo um mesmo padrão rítmico, ou então se sobrevaloriza uma única melodia e a se subalternizam as restantes vozes, adquirindo estas então um mero papel de acompanhamento. À semelhança da monodia, também a polifonia joga com a horizontalidade, isto é, com um discurso construído ao longo de um plano sintagmático. Todavia, nele se distribuem várias linhas melódicas distintas de igual peso, efectuando percursos rítmicos relativamente autónomos. A harmonia emerge justamente de uma tentativa de disciplinar tal independência em função de uma lógica de convergência sonora: as diferentes vozes fundem‑se verticalmente em intervalos precisos, numa sucessão de momentos estáticos, definindo‑se o valor de cada uma delas no equilíbrio sonoro do acorde e na organização funcional do sistema tonal.

2) Crê‑se, a julgar por vários vestígios arqueológicos, que a Antiguidade já teria conhecido manifestações de música polifónica. As flautas duplas encontradas no cemitério de Ur, com cerca de cinco mil anos, atestam da necessidade sentida pelos povos do Calcolítico de explorarem sonoridades de textura complexa. Todavia, na história da música ocidental a primeira tentativa conhecida de teorização do princípio polifónico só teria lugar no início do século X, no tratado Musica Enchiriadis, atribuído a Hucbaldo, e onde se lançam as bases do organum, sistema musical que antecedeu o discantus, fundador do contraponto. No século XIV, a chamada Ars Nova seria responsável por importantes contribuições para o desenvolvimento da arte polifónica, em termos quer do estabelecimento de alguns importantes princípios da harmonia, quer da busca de uma maior autonomia rítmica e melódica para cada voz. O próprio termo serviria para designar o período musical situado nos dois séculos imediatamente seguintes, em que tal arte atingiria a sua máxima expressão em géneros vocais tão diversos como o motete, a missa, o madrigal ou a chamada «chanson», dos quais Orlando di Lassus, Clement Jannequin, Giovanni da Palestrina e William Byrd (de quem Shakespeare terá certamente ouvido algumas composições) se revelariam os seus mais brilhantes cultores. Também Portugal contribuiu para esse legado com nomes como os de Manuel Cardoso, Duarte Lobo, Felipe de Magalhães e João Lourenço Rebelo, que figuram meritoriamente entre os grandes vultos da música seiscentista e setecentista. A maior complexificação da escrita contrapontística entretanto registada convidaria inevitavelmente ao desenvolvimento da música instrumental, o que abriria finalmente as portas desta arte a universos sonoros independentes da poesia.

3) Mas não é só a música que pode reivindicar o termo como seu. Também a teoria da literatura, pela mão de Mikhail Bakhtine, se apoderou dele. O crítico russo empregou‑o na sua análise da ficção dostoievskiana, sugerindo que esta punha em jogo uma multiplicidade de vozes, ideologicamente distintas, que resistiam ao discurso autoral. Este juízo formulado sobre a obra de Dostoievsky acabaria Bakhtine por estender a todo o género romanesco. De facto, no romance ora se orquestram, ora se degladiam linguagens sociais várias que se impõem ao romancista como expressão da diversidade social que este procura fazer representar na sua escrita. Daí que o autor de Estética e Teoria do Romance conteste abertamente a noção de que uma qualquer obra desse género seja gerida por uma só linguagem, unívoca, monolítica, cristalizada em convenções literárias e enclausurada num só mundo vivencial. Porque mesmo que assim fosse, mesmo que a linguagem do romance emergisse da peremptoriedade de uma voz solitária, esta jamais poderia excluir, ainda que voluntariamente, todas as outras vozes, todas as outras linguagens sociais que a percorrem, a sustentam e a informam. É na sequência desta linha argumentativa que se coloca a questão locutória, a qual deverá constituir, segundo Bakhtine, o objecto principal de estudo do género em causa. Afinal, o que o especifica e o que lhe confere a originalidade estilística é, para utilizarmos os termos do teórico, “o homem que fala e a sua palavra” (1972: 153). Não é a instância narratorial aquela se encontra aqui no cerne das suas preocupações. Poderíamos, aliás, ir mais longe e, sem desvirtuar o seu pensamento, sugerir que o mesmo excerto se deva antes ler: “os homens e as mulheres que falam e as suas palavras”—seres que, encarnando ao mesmo tempo uma certa apreensão da individualidade e da sua radicação no social, cruzam as linhas do romance como portadores de ideologias, de modos de ver, de entender, de interpretar e de interpelar o mundo, plasmando‑se no texto através de discursos que se confrontam num jogo dialógico interno à própria obra. Bakhtine, porém, adverte‑nos: esses discursos, tal como ganham corpo no romance, não são genuínos. Aquilo que se dá a conhecer ao leitor mais não são do que imagens dessas muitas linguagens. Isto é, as vozes que se fazem ouvir no romance são representações erigidas por um outro discurso. Significa, portanto, que o verdadeiro objecto de representação no texto romanesco não é tanto o mundo, como o próprio falar do mundo. Ouvimos aqui o eco do espólio teórico sobre esse conceito tão caro à crítica marxista que é a ideologia: o que Bakhtine sugere, afinal, é que a relação entre o leitor e as linguagens do romance é indirecta. Consequentemente, todo o enunciado de certa personagem que nos surja revestido de uma certa autoridade (seja sob a forma de autoritarismo, de tradicionalismo, ou de oficialismo) é passível de ser não só contestado, como ainda “travestido” e “parodiado” (o próprio Bakhtine reconhece na paródia grega as raízes do romance (1988)). É no seio dessa contestação que a voz da consciência interior do indivíduo pugna por se impor. Como afirmará relativamente ao autor de Crime e Castigo e de Os Irmãos Karamazov, “les énoncés des personnages de Dostoïevski sont l’arène d’une lutte désespérée avec la parole d’autrui, dans toutes les sphères de la vie e de l’œuvre idéologique” (1972: 167). Um pensar a literatura que custaria ao crítico a perseguição política num país amordaçado pela repressão estalinista e pela monodia do partido.

{bibliografia}

Merritt, Arthur Tillman: Sixteenth‑Century Polyphony: a Basis for the Study of Counterpoint (1939); M. Bakhtine: Probliémy tvortchestva Dostoïevskogo (1929); idem: Esthétique et théorie du roman (1972); idem: “From the prehistory of novelistic discourse”, in Modern Theory and Criticism, D. Lodge (ed.) (1988).