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A compreensão do conceito de pós-colonialismo pressupõe um entendimento prévio dos termos colonialismo e imperialismo. De acordo com Jane Hiddleston, em Understanding Postcolonialism (2009), o colonialismo deve ser compreendido como a conquista e o subsequente controlo de um território, implicando a subjugação dos povos nativos e o domínio da administração, do governo, da economia e da produção. Consequentemente, o acto de colonizar revela-se um processo de invasão e uma tomada de controlo. Esse acto é sustentado por aquilo que Hiddlestone descreveu como “a colonial ideology that stresses cultural supremacy”. (2) Portanto, o colonialismo constitui simultaneamente um projecto político-económico e um discurso hegemónico, de afirmação de superioridade, que pretende conduzir e apoiar esse projecto. Assim, o projecto colonial pressupõe a entrada literal num território estrangeiro, o controlo da sociedade e indústria, bem como a difusão de uma ideologia que justifique a presença do colonizador, baseada na alegada superioridade do seu conhecimento e civilização.

O colonialismo possui uma clara relação com o conceito de imperialismo. Contudo, se o colonialismo implica a conquista de um outro país, o imperialismo reporta-se a uma forma mais ampla (e, por vezes, mais subtil) do exercício da autoridade e do domínio sobre o Outro. Assim, enquanto o colonialismo manifesta activamente a ideologia imperialista, o imperialismo pode ser entendido como uma prática mais abrangente de hegemonia económica ou política que não pressupõe necessariamente o domínio directo ou a conquista de outro país. Por conseguinte, o imperialismo até pode manter-se depois do fim do colonialismo. Como Hiddlestone explicou, o imperialismo encontra-se muitas vezes associado ao capitalismo e à tentativa, por parte de estados colonizadores passados (ou presentes) de impor os seus sistemas capitalistas ao resto do mundo.

Tendo em conta o que se entende por colonialismo e imperialismo, pode deduzir-se que o pós-colonialismo se refere ao que sucedeu o domínio colonial. Contudo, muitos críticos, como Hiddleston, na senda de Elleke Boehmer e John McLeod, defendem que se deve estabelecer uma distinção entre os termos post-colonial e postcolonial. O primeiro reporta-se ao período histórico que se seguiu à descolonização, referindo-se, portanto, a um momento específico, enquanto o segundo engloba tudo o que ocorreu desde o início até ao fim do colonialismo. Como explicou Teresa Pinto Coelho, em Ilhas, Batalhas e Aventura: Imagens de África no Romance de Império Britânico do Último Quartel do Século XIX e Início do Século XX (2004), tal distinção deve-se “à insatisfação (…) com o termo post-colonial que exprime uma realidade que não se identifica com o fim dos impérios coloniais europeus, já que o colonialismo pode não implicar a ocupação de territórios, mas continuar a manifestar-se sob outras formas (…), no que é geralmente conhecido como neocolonialismo”.[1] (13) Consequentemente, postcolonial abarca “all the culture affected by the imperial process from the moment of colonization to the present day (…) because there is a continuity of preoccupations throughout the historical process initiated by European imperial aggression”. (Childs e Williams, 1997, 3) Por conseguinte, a postcolonial literature identifica-se com a literatura que, ainda antes do processo de independência das colónias, demonstra resistência à colonização ou subverte, de algum modo, as perspectivas dos colonizadores. Como afirmou Boehmer, “[r]ather than simply being the writing which ‘came after’ empire, postcolonial literature is that which critically scrutinizes the colonial relationship. It is writing that sets out in one way or another to resist colonialist perspectives”. (2005, 3) A conceptualização de postcolonial literature estende-se a mais esferas do que a britânica e a exclusivamente literária, dado que “[o]f course, neither term [post-colonial and postcolonial] need apply only to the English-speaking world, nor only to literature”, (2005, 3) Convirá, ainda, referir que, apesar das diferenças identificadas entre os vocábulos ingleses post-colonial e postcolonial, a língua portuguesa admite somente a utilização do termo “pós-colonial”, o que se deve ao facto de o prefixo “pós” ser sempre acompanhado de um hífen (excepto quando “pós” não possui acentuação própria, como ocorre em posfácio). (Coelho, 2004, 13)

Edward Said (1935-2003) – um palestiniano nascido em Jerusalém, que estudou no Cairo e, depois, nos Estados Unidos da América, onde se estabeleceu – e as obras Orientalism (1978) e Culture and Imperialism (1993) afiguram-se cruciais para o pós-colonialismo, assim como para a afirmação e o desenvolvimento da teoria pós-colonial e dos Estudos Pós-Coloniais. Said definiu criticamente o conceito de orientalismo e criticou-o, por este promover a difusão do poder colonial de forma perniciosa. O termo orientalismo possui três significados profundamente relacionados entre si. Em primeiro lugar, o estudo académico do Oriente, em disciplinas tão variadas como a antropologia, a sociologia, a história ou a filologia. Depois, o orientalismo identifica-se com “a style of thought based upon an ontological and epistemological distinction made between ‘the Orient’ and ‘the Occident’”. (Said, 1995, 2) Portanto, o orientalismo assenta numa oposição dicotómica entre Este e Oeste, a qual se afigura enganadora e destrutiva, pois parte do pressuposto de que o Oriente se identifica com tudo aquilo que não se inclui no âmbito do Ocidente. Finalmente, o orientalismo define-se como “a Western style for dominating, restructuring, and having authority over the Orient”. (1995, 3) Consequentemente, na acepção de Michel Foucault (1926-1984), o Orientalismo constitui um tipo de discurso, “a wide-ranging network of texts, images and preconceptions”. (Hiddleston, 2009, 85) Trata-se, portanto, de uma forma de representar o Oriente, de um discurso que reconstitui o Oriente, usando uma série de preconcepções e de pressupostos que contribuem para reforçar a posição do Ocidente enquanto local detentor do poder.

A definição saidiana de orientalismo assenta no argumento de que as ideias sobre o Oriente propagadas pelos orientalistas têm causas e efeitos concretos, pelo que o Orientalismo não se reduz a uma mera “airy European fantasy about the Orient, but a created body of theory and practice in which, for many generations, there has been a considerable material investment”. (1995, 6) O orientalismo ocupa um lugar hegemónico a nível cultural, servindo para sustentar mitos relacionados com a suposta superioridade europeia, os quais são amplamente aceites pela sociedade onde são propagados. Para analisar este discurso, Said recorreu a uma série de textos, mediante os quais procurou demonstrar que o conhecimento do Oriente se estrutura através de um conjunto de imagens que servem para identificar e classificar o seu objecto. Por exemplo, neste tipo de discurso, o Islão simboliza a barbárie, o fanatismo e o terrorismo. O orientalismo pega depois nestes pressupostos e usa-os para definir toda uma religião, assim como a cultura que a acompanha. Consequentemente, o orientalista “will designate, name, point to, fix what he is talking or thinking about with a word of phrase, which then is considered either to have acquired, or simply to be, reality”. (72) Acresce que, para Said, o orientalismo se desenvolveu de tal forma que perdeu qualquer conexão à realidade, criando um “Outro”, o oriental. Assim, o Oriente afigura-se “reconstructed, reassembled, crafted, in short, born out of the Orientalists’ efforts”. (87) Said afirmou, ainda, que o orientalismo permeia a literatura, a academia e os media, não só da época colonial, mas também do momento da sua escrita. Consequentemente, o orientalismo, caracterizado por Said como uma tradição e uma doutrina que alega que o Ocidente é superior ao Oriente, continuava em vigor. Aliás, o estudo orientalista do Islão continuava a promover ideias retrogradas a seu respeito, especialmente desde o final da Segunda Guerra Mundial e face aos conflitos entre árabes e Israel. Os árabes eram considerados “the disrupter of Israel and the West’s existence”, (286) um obstáculo à criação de Israel em 1948 e “a shadow that dogs the Jew”. (286) Mais, estas ideias chegavam a ser disseminadas pela academia, como se podia comprovar em The Cambridge History of Islam, publicada em 1970, que apresentava uma série de erros relacionados com a religião e com a história islâmicas.

Após a publicação de Orientalism, os modos de representação do “Outro”, do colonizado, presentes nos escritos coloniais europeus – como relatórios médicos, obras ficcionais, documentos governamentais, relatos de viagens, entre muitos outros – adquiriram um lugar de destaque. De acordo com Pramod K. Nayar, em The Postcolonial Studies Dictionary (2015), o conjunto de representações europeias “of the colonial power’s subjects that enables the political, economic, cultural and social practices of racialized power relations between colonizer and colonized peoples” (32) denomina-se discurso colonial. Entendido na acepção que lhe foi atribuída por Foucault, o discurso refere-se às condições políticas, sociais, administrativas e linguísticas que permitem determinadas afirmações, como as proferidas a respeito do Islão e dos árabes, descrevendo as hierarquias de poder em que certas figuras – médicos, políticos ou administradores, por exemplo – decidem o que pode ser dito e o que deve ser silenciado. O discurso colonial representa os colonizados das mais variadas formas, sem que tenha de obter qualquer selo de autenticidade. Na verdade, o discurso colonial valida-se a si mesmo e, na ausência de algo que o questione, institui-se como verdade absoluta, identificando a realidade. Nos numerosos estudos que surgiram na senda de Said, o discurso colonial passa a ser percepcionado como um conjunto de imagens estereotipadas do “Outro” colonizado, o qual continua a ser persistentemente descrito como selvagem, feminino, primitivo, vulnerável, infantil, supersticioso, iletrado, apolítico, entre muitos outros e diversificados adjectivos. Acresce que, no âmbito do discurso colonial, os territórios povoados pelos nativos são descritos como vazios – em alusão ao conceito de terra nullius –, selvagens e decadentes, para mencionar apenas alguns elementos. Estas representações circulam de forma eficaz, transformam-se num meio para justificar o domínio colonial – se o “Outro” colonizado possui as características mencionadas, então carece de capacidade para se autogovernar – e são aceites até pelos próprios nativos, tornando-se, consequentemente, “a very insidious means of imposing colonial rule because the discourse, once it was accepted by the subject, presented the colonial rule as necessary, benevolent and natural”. (Nayar, 2015, 33)

A tese desenvolvida por Said em Orientalism seria alvo de uma extensa panóplia de críticas, especialmente por Homi K. Bhabha, que introduziu o conceito de ambivalência. Baseando-se na psicanálise, que percepciona a ambivalência como “uma flutuação contínua entre querer uma coisa e o seu oposto, assim como a atracção e repulsa simultâneas por um objecto, pessoa ou acção” (Coelho, 204, p. 16), Bhabha argumenta que o europeu pretende reformar o nativo, para que este se assemelhe mais ao primeiro, o que decorre do fascínio do europeu pelo nativo e da crença de que o nativo pode ser reformado. Contudo, o europeu também teme que o nativo não possa ser reformado ou que, depois de reformado, adopte uma postura não desejável. Portanto, por um lado, o europeu ambiciona que o nativo se torne mais branco, ocidental, cristão e moderno, mas, por outro, prefere que o nativo permaneça tal como é, pois, assim, continua previsível e mais manejável. Afinal, como afirmou Nayar, “[a] ‘modernized’ native subject might not be a quiescent subject any more”. (2015, 8) A crítica desenvolvida por Bhabha tornar-se-ia profundamente influente, defendendo que o discurso colonial é marcadamente ambíguo, “plurivocal e não homogéneo; fragmentado e não unificador”. (Coelho, 2004, 16) Para Coelho, a ambivalência adquire o estatuto de ameaça à autoridade do colonizador mediante os efeitos do que Bhabha denominou mimicry. O conceito provém da biologia e descreve a capacidade de determinados animais imitarem o espaço que os circunda para caçar ou escapar a um predador. Esta ideia encontrava-se já implícita na obra Black Skin, White Masks (1952), quando Franz Fanon argumentou que os africanos ambicionam falar as línguas europeias como se fossem europeus, perdendo qualquer pronúncia que originalmente possuíssem. Mediante o recurso ao termo mimicry, Bhabha descreveu a reconstrução dos nativos à semelhança dos europeus, através da assimilação da religião, da educação, da literatura e de práticas culturais europeias. Os nativos pretendiam aumentar o seu grau de parecença aos europeus, anglicizando-se ou europeizando-se. De acordo com Nayar, Bhabha e Fanon aludem a uma “total domination of the colonized by the colonizer through insidious means”. (2015, 94) Efectivamente, a vontade de os nativos se assemelharem o mais possível aos europeus decorria do facto de os colonizadores convencerem os colonizados de que estes seriam mais civilizados se abandonassem tudo o que os caracterizava como nativos e abraçassem o que os identificaria com os europeus. Segundo Nayar, a mimicry de formas culturais do Ocidente resultava no mimic man, o qual esperava ser, de alguma forma, beneficiado pelo império. Contudo, o mimic man tornou-se alvo de chacota por parte dos europeus, que nunca o reconheceram como um dos seus, até porque o mimic man não se integrava na cultura colonizadora. Assim, para Nayar, “[s]uch mimic men in postcolonial writing represent the deepest tragedy of the colonized subjects never at home in their own or the master’s culture”. (2015, 104) Porém, Coelho acredita que a mimicry constitui uma forma de “facilitar o exercício do poder quando utilizada pelo colonizador e uma forma de resistência quando usada pelo colonizado”. (2004, 16) Utilizando como exemplo a aprendizagem da língua inglesa, a autora constatou que quando o europeu ouve a sua língua a ser falada pelo nativo, “depara-se com a ameaça da semelhança entre ele e o Outro que se quer diferente”. (16)

O conceito de ambivalência apresentado por Bhabha inviabilizou a proposta de Said, segundo a qual, no âmbito do discurso colonial, o Oriente e o colonizado representavam os negativos e os opostos do Ocidente e do colonizador. A existência de binómios na relação estabelecida entre o nativo e o europeu demonstrou-se, assim, inviável, motivando uma série de estudos relacionados com a literatura de império. Nestes estudos, a oposição dicotómica saidiana do colonizado e do colonizador passou a ser interpretada “em termos de visões complementares de atracção e repulsa/ afirmação e crítica simultâneas do processo imperial”. (Coelho, 2004, 16)

 

Obras Citadas

Boehmer, Elleke. Colonial and Postcolonial Literature: Migrant Metaphors. Oxford UP, 2005 (1995).

Childs, Peter e Patrick Williams. An Introduction to Post-Colonial Theory. Prentice Hall/ Harvester Wheatsheaf, 1997.

Coelho, Teresa Pinto. Ilhas, Batalhas e Aventura: Imagens de África no Romance de Império Britânico do Último Quartel do Século XIX e Início do Século XX. Colibri, 2004.

Fanon, Franz. Black Skin, White Masks. Traduzido por Constance Farrington, Penguin, 2001. [1961]

Hiddleston, Jane. Understanding Postcolonialism. Routledge, 2009.

McLeod, John. Beginning Postcolonialism. Manchester UP, 2000.

Nayar, Pramod K. The Postcolonial Studies Dictionary. John Wiley & Sons, 2015.

Said, Edward. Orientalism: Western Conceptions of the Orient. Penguin, 1995. [1978]

[1] Em The Postcolonial Studies Dictionary (2015), Pramod K. Nayar explicou que o termo neocolonialismo remonta a Kwame Nkrumah (1909-1972), antigo presidente do Gana, relacionando-se com o contínuo controlo económico e cultural, por parte de países europeus, de estados que haviam adquirido a independência política no século XX, após décadas ou séculos de colonização. O controlo económico manifesta-se no contexto da ausência de independência económica dos referidos estados, a qual se encontra patente no escrutínio ao qual as políticas económicas destas nações são sujeitas por parte dos países europeus. Afinal, a Europa delibera quantos e quais subsídios devem ser atribuídos a certos estados, tomando também decisões relacionadas com programas de ajustamento estrutural, (des)investimentos directos no estrangeiro, privatizações, entre outros. O controlo económico constitui também uma consequência da globalização, a qual promove a exploração dos recursos humanos e naturais existentes nestes estados, ecoando o que ocorria aquando do colonialismo. Já o controlo cultural manifesta-se no domínio das línguas europeias, na exportação de bens de consumo e de formas de entretenimento em circulação nesses estados.