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Aceita-se hoje sem grande discussão que a conferência que Derrida pronunciou em 1966 na Johns Hopkins University, “La structure, le sign et le jeu dans le discours des sciences humaines”, marca não só o primeiro momento do pós-estruturalismo nos Estados Unidos como o primeiro texto de crítica ao estruturalismo literário e cultural, que claramente aponta um novo caminho e que, por pretender ultrapassar o estruturalismo e por não se ter encontrado melhor termo até à data, se convencionou chamar pós-estruturalismo. A esse ensaio juntaríamos um outro: “Force et signification”, ambos os textos incluídos na colectânea: L’Écriture et la différence (1967). Noutro livro fundamental aparecido no mesmo ano, De la grammatologie, Derrida continua a sua crítica ao estruturalismo observando que, no pensamento ocidental e particularmente no pensamento francês, o discurso dominante continuava a ser o estruturalismo, permanecendo preso da sua estratificação dentro da metafísica, caracterizada pelo logocentrismo.

Portanto, nos anos de 1966 e 1967, fica desenhada a primeira crítica directa e consistente do estruturalismo e que ajudará à identificação de um momento “pós-“ no qual não só alguns dos mesmos intérpretes vão rever as suas posições teóricas iniciais como alguns novos pensadores vão encontrar espaço mais amplo para novas teorias sobre a literatura. No que nos interessa, a conferência da Johns Hopkins University reflecte sobre essa questão complexa do valor da interpretação de um texto literário, que o filósofo francês considera ser de dois tipos: um tipo que procura decifrar a verdade original, presa a um jogo de regras obrigatórias; e um outro tipo que não está dependente dessa procura original e condicionada, mas que é uma procura da verdade (para) além de, e que exige participar num jogo aberto, que se identifica com o caminho já apontado por Nietzsche para a mesma questão, acrescendo que nenhuma interpretação está garantida em face da abertura do texto à pluralidade de leituras. Desta forma, o estudo sistemático do texto literário em moldes estruturalistas, que prevêem um modelo universal de análise, é preterido em vista de um modelo que prevê que qualquer modelo se arrisca a ser ultrapassado pela sua própria formulação ou pragmática.

Em 1970, também já o outro responsável maior por um reexame crítico do estruturalismo literário, Roland Barthes, tinha revisto a sua própria posição e publica aquele que é considerado o seu primeiro trabalho da fase pós-estruturalista: S/Z, uma obra que tem vários pontos de contacto com a crítica já então elaborada por Derrida quer na conferência da Johns Hopkins quer em De la grammatologie ou em L’Écriture et la différance. Barthes começa por repudiar a sua própria opção inicial pelo estruturalismo, recusando agora a pretensão de fazer corresponder todos os textos a uma única estrutura e, consequentemente, estabelecer um modelo único de análise que ignore na prática as diferenças entre os textos. A crítica literária tornar-se-á doravante auto-reflexiva, utilizando um discurso que se constrói e desconstrói a si mesmo, afirmando-se sobretudo pelo facto de nunca se tornar um método instituído em receitas mais ou menos científicas capazes de servir os comodismos da crítica. Numa entrevista dada em 1971 (“A Conversation with Roland Barthes”, in Signs of the Times: Introductory Readings in Textual Semiotics, editado por Stephen Heath et al., Granta, Cambridge), Barthes declara que para ele o momento de mudança do estruturalismo para o pós-estruturalismo se deu entre a Introdução à Análise Estrutural da Narrativa (1966) e S/Z (1970). De facto, podemos ver, a partir da publicação de Elementos de Semiologia (1967), que Barthes vai conduzir a sua skepsis para outros caminhos diferentes do estruturalismo: em 1968, declara que o autor está morto, num célebre ensaio, que analisaremos; sugere que no acto de leitura intervêm dois aspectos essenciais: o prazer e a jouissance; e, para se poder estabelecer o valor de um texto, avança com a ideia de que ele pode ser scriptible (“escrevível, que se pode escrever, mas ainda não está escrito”) ou lisible (“legível, que pode ser lido, mas não escrito”). O escrevível obriga o leitor a cumprir um outro papel para além do inevitável consumidor de textos: deve tornar-se, no exercício da sua skepsis literária, um produtor. Podemos aproximar este dualismo dos dois modos de interpretação propostos por Derrida em “La structure, le sign et le jeu”: o escrevível, que exige, portanto, que o leitor se torne um produtor, entra no mesmo paralelo do jogo aberto de Derrida que visa alcançar um patamar além da expressão comum; e o legível, identificado como “texto clássico”, que possui apenas uma pluralidade limitada que não permite ir mais além de uma interpretação em moldes tradicionais. Em S/Z, Barthes recusa ainda a ideia de um modelo transcendente ao texto, para postular que todo o texto é de alguma forma o seu próprio modelo e, portanto, deve ser tratado na sua différance, no sentido derridiano. Não faz mais sentido uma teoria que seja um hipotético modelo de descrição, não faz mais sentido pressupor que a teoria seja dissociável da prática, que a crítica seja uma mera descrição, um comentário ou uma representação. Preferencialmente, quanto mais se escandir a superfície de um texto melhor se poderá observá-lo em termos de textualidade, isto é, em termos de produção de uma multiplicidade de efeitos significantes.

Sobretudo a partir do aparecimento do livro fundamental de Derrida De la grammatologie (1967), é revista e discutida a dependência do estruturalismo da linguística de Saussure. Derrida propôs que à semiótica se chamasse preferencialmente gramatologia.

Não é fácil distinguir a gramatologia e a semiótica do estruturalismo. Em sentido restrito, podemos dizer que a semiótica é a ciência dos signos, enquanto o estruturalismo é um método de análise. Mais à frente, apresentaremos com mais pormenor as principais teses de Derrida que interessam à teoria literária. A célebre distinção saussuriana entre língua e fala, geralmente explicada em termos definitivos quer por teóricos da literatura quer por linguistas ainda arreigados a modelos estruturais, tem sido um dos alvos privilegiados pela crítica pós-estruturalista. O dualismo de Saussure, que produz nada mais do que um sistema abstracto e idealista, omite um terceiro elemento na construção de linguagem, aquilo a que Michel Foucault vai chamar discurso. Na aparente união entre as palavras e as coisas, Foucault sugere que se podem descortinar regras que determinam e possibilitam determinadas práticas discursivas. Foucault recusou qualquer ligação categórica com o estruturalismo e a sua obra é de alguma forma evidente uma crítica profunda dos pressupostos saussurianos em que o estruturalismo se fundamentava. O pêndulo de Foucault inclina-se antes para o escrutínio da actividade da crítica literária, sugerindo a necessidade de uma auto-crítica que pode começar pela sujeição da noção de autor à mesma investigação que se ocupa do significado do discurso. Uma análise foucaultiana destacará e analisará as diferenças, as partes dissimilares de um poema, de um romance, de várias obras. Questionará não só o conceito de história literária enquanto continuidade ou genealogia mas também o próprio conceito de “literatura”, naquilo que a constitui como um objecto, os seus limites e exclusões, as suas implicações políticas e a sua relação com o poder na sociedade e nas instituições que a formam.

A figura de Derrida segue a tradição de todos os filósofos que procuraram ao longo dos tempos construir uma filosofia materialista. Tal como Marx, Nietzsche e Heidegger antes de si, o professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, de Paris, tem procurado remover todos os vestígios de idealismo do pensamento. No entanto, para o conseguir, terá de seguir os mesmos passos de Nietzsche: remover a própria filosofia, isto é, retirar ao pensamento a sua racionalidade para ficar apenas com a linguagem. Para Derrida, o estruturalismo é apenas um exemplo episódico na história do pensamento ocidental que permanece enraizada em conceitos metafísicos. Não é pacífica e facilmente explicável a rotulação de escola deste filósofo da linguagem, tanto mais que o seu magistério aponta precisamente para a negação de qualquer definição preconcebida. Em particular, a relação de Derrida com áreas tão diferentes como a psicanálise e a filologia é demasiado complexa. O que se pode dizer sem receio é que Derrida produziu um modo revolucionário (porque propaga ideias novas, ao mesmo tempo que transforma radicalmente a prática instituída) de crítica textual, que inclui na sua esfera de acção a filosofia e a crítica literária.

A relação do que se entende por pós-estruturalismo com a questão da interpretação textual está, pois, longe de ser mais consensual do que antes, durante as discussões no seio do New Criticism norte-americano e do estruturalismo francês sobre o valor da interpretação na teoria literária. No ensaio “Tradition and Difference” (Diacritics, 2, 1972),  Hillis Miller, seguindo a lição de Nietzsche já salientada por Derrida na conferência de 1966, na Johns Hopkins University, repete que o mesmo texto permite várias interpretações e que nenhuma interpretação pode ser absoluta ou “correcta”. M.H. Abrams, crítico da tradição historicista, manifestou a sua discordância quer em relação a Derrida quer a Hillis Miller, no ensaio “The Deconstructive Angel” (Critical Inquiry, 3, 1977), sustentando que tal premissa era falsa, pois implica que toda e qualquer interpretação histórica e racional esteja errada à partida. Frederic Jameson, um crítico do marxismo literário, no livro The Political Unconscious, salienta que a actividade hermenêutica ou interpretativa é um dos principais objectivos do pós-estruturalismo de origem francesa. Jonathan Culler, inicialmente estruturalista convicto e, depois de On Deconstruction (1983), continua contrário à interpretação, tal como procedia enquanto estruturalista. David Lodge, num artigo importante, “Deconstruction”, publicado no Guardian (8-4-1988), concorda que a desconstrução abre o texto a múltiplas interpretações. Shoshana Felman, num estudo sobre The Turn of the Screw de Henry James (“Turning the Screw of Interpretation”, Yale French Studies, 55/56, 1977), censura a leitura freudiana interpretativa que Edmund Wilson havia feito daquele texto, contudo ela própria acaba por proceder de modo interpretativo para responder à questão central: O que é uma leitura freudiana? Estas contradições internas que encontramos no seio da crítica dita pós-estruturalista não ajudam, de facto, à consagração e instituição deste ismo perante os espíritos mais cépticos ou tradicionalistas. Contudo, se restringíssemos a interpretação textual ao seu domínio legítimo que deve ser, contemporaneamente, a hermenêutica, tais contradições podiam desfazer-se. E dentro da hermenêutica temos necessidade de averiguar como é que é possível conciliar uma abordagem desconstrucionista com uma puramente interpretativa, uma leitura centrada na soberania do leitor com uma leitura marxista, historicista ou cultural, uma leitura psicanalítica com uma leitura filosófica, filológica ou retórica. Muitos dirão que tal tarefa é impossível, porém, se Derrida avançou com o jogo aberto, porque não encontrar um método que, não seguindo cegamente um modelo, possa ter a liberdade de se recriar, usufruir, manipular, maquinar uma interpretação que de todos eles seja devedora?

O pós-estruturalismo diz respeito a vários diálogos interdisciplinares entre a literatura e outras artes e ciências. Por exemplo, é relevante o diálogo com a psicanálise, após os trabalhos de Lacan, Foucault e Derrida. Seguindo cada um o seu caminho muito próprio, produziram uma crítica do conceito clássico do sujeito individual que tem concentrado as atenções desses estudos. A dicotomia saussuriana língua/fala surge assim de novo como objecto de crítica. Saussure nunca distinguiu qualquer acto discursivo específico, isto é, nunca considerou o posicionamento e a construção do sujeito no discurso, remetendo-o para o insondável domínio da fala. Negligenciou o papel do sujeito porque a sua atenção não se desviou do papel da língua, só que esta negação do sujeito em Saussure, e portanto no estruturalismo, conduziu precisamente à sua reaparição, não já como uma consciência unificada, mas estruturada pela linguagem enquanto diferença, de acordo com a formulação saussuriana de signo. Jacques Lacan, o psicanalista francês que começou por reexaminar o pensamento de Freud nos anos 30 e que será o mais original e polémico psicanalista do pós-guerra, defenderá a tese radical de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem. A cruzada de Lacan nos estudos freudianos foi conseguida através de uma revisão do estruturalismo de Lévi-Strauss em termos linguísticos, que inclui uma análise complexa e hermética, por vezes, das relações entre o desejo e a linguagem e das implicações do sujeito em frente das pressões sociais e linguísticas. É a exclusão do sujeito das formulações saussurianas que permite a reintrodução do sujeito, não como uma unidade imaginária mas como um efeito da linguagem. Sobretudo nos livros Écrits (1966) e nos vários seminários recolhidos na série anual Le Séminaire de Jacques Lacan (1953-80), Lacan destaca o papel nuclear da linguagem, que é a principal força constitutiva do homem.

Na era pós-estruturalista, a Alemanha e os Estados Unidos viram emergir uma nova escola teórica centrada na soberania do leitor. Na Alemanha, tomou o nome de Rezeptionästhetik (estética da recepção); no mundo anglo-americano, vingou a expressão reader-response criticism; em português, por força da dificuldade de tradução literal da expressão inglesa, preferiu-se (nas raríssimas referências a tal estética) a tradução do original alemão. O grupo de críticos da Universidade de Konstanz tem reunido as suas principais propostas na revista Poetik und Hermeneutik, desde 1964, uma justaposição de imediato chama a atenção para o facto de, para uma estética da recepção do leitor, as questões do sentido e da interpretação textual serem tão indispensáveis como as questões linguísticas e formais. Ao contrário da reader-response criticism, que é constituída por críticos mais ao menos independentes (Normand Holland, Stanley Fish, David Bleich, Michael Riffaterre, Jonathan Culler), a estética da recepção reúne maior consenso entre os seus seguidores. Embora Wolfang Iser seja talvez o mais conhecido membro desta escola fora do seu contexto alemão, Hans Robert Jauss, discípulo da hermenêutica de Gadamer, é o mais inflexível dos críticos da estética da  recepção. No seu ensaio nuclear, “A História Literária como um Desafio [Provokation] à Teoria da Literatura” (1970), procurou ultrapassar os dogmas marxistas e formalistas que não privilegiam o leitor no acto interpretativo do texto literário. Qualquer obra de arte literária só será efectiva, só será re-criada ou “concretizada”, quando o leitor a legitimar como tal, relegando para plano secundário o trabalho do autor e o próprio texto criado. Para isso, é necessário descobrir qual o “horizonte de expectativas” que envolve essa obra, pois todos os leitores investem certas expectativas nos textos que lêem em virtude de estarem condicionados por outras leituras já realizadas, sobretudo se pertencerem ao mesmo género literário.

 

{bibliografia}

 

Catherine Belsey: Poststructuralism: A Very Short Introduction (2002); Colin Davis: After Poststructuralism: Reading, Stories and Theory (2004); David R. Howarth: Poststructuralism and After (2013); James Williams: Understanding Poststructuralism (2005); Mark Poster: Critical theory and poststructuralism: in search of a context (1988); Robert Young: “Post-Structuralism: The End of Theory”, Oxford Literary Review, V, 1/2, 1982; Roger Jones: ‘Post Structuralism’, in Philosophy since the Enlightenment (available at: http://www.philosopher.org.uk); Tilottama Rajan, Michael James O’Driscoll: After Poststructuralism: Writing the Intellectual History of Theory (2002)