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A Confraria, ou Irmandade, Pré-Rafaelita (Pre-Raphaelite Brotherhood – “PRB”) inaugurou-se, em 1848, na casa dos pais de John Everett Millais, em Londres, configurando um movimento poético, pictórico e de crítica de arte, emoldurado no coração mesmo do segundo romantismo inglês. Naquele ano, promoveu-se, na Royal Academy , de Londres, a primeira exposição pré-rafaelita, em que as obras, assinadas com o nome do pintor e a sigla “PRB”, causaram escândalo estético e ético. Inspirando-se nas estéticas dos escritores e críticos de arte ingleses Mathew Arnold e John Ruskin, na poética do pré-romântico inglês William Blake, do poeta inglês romântico John Keats, no contemporâneo Robert Browning e na arte italiana antes de Rafael e Michelangelo, o Pré-Rafaelismo (ou Pré-Rafaelitismo), cujos mais célebres componentes são o pintor e poeta Dante Gabriel Rossetti, o pintor e poeta William Morris, os pintores John Everett Millais e William Holman Hunt – elimina da arte a moral da obrigação, a miséria sensorial e combate os males da civilização industrial. Dante Gabriel Rossetti fora aluno do pintor Ford Madox Brown, que aderiu, posteriormente, à Confraria. Em 1850, criaram uma revista – The Germ –, que teve apenas quatro edições, de janeiro a abril; nessa revista, apareceu o mais famoso poema de Dante Gabriel Rossetti – The blessed damozel –, que impressionará Debussy e que será também título de um quadro do pintor-poeta. Narra a lenda que o crítico inglês Leigh Hunt teria aconselhado a Rossetti seguir a carreira de pintor, porque, se pintasse como compunha poemas, seria um homem rico… Um crítico de escol – Mario Praz – emite juízo contrário a uma crítica perversa, quando afirma que “Superficial seria o juízo que concluísse que, como a poesia de Rossetti deriva de antigos poetas italianos (mas também de Robert Browning, cuja poesia tinha caráter totalmente diverso) e sua pintura de mestres italianos da Renascença (particularmente os venezianos), as duas artes, tal como ele as praticava, não estivessem no mesmo nível, ou mesmo que seguissem caminhos diversos (…). A poesia e a pintura de Rossetti são produtos da mesma inspiração”. Os Pré-Rafaelitas opuseram-se, fervorosamente, ao academicismo da cultura oficial, sobretudo à arte vitoriana de seu tempo, extremamente acadêmica, intentaram readquirir o sentido ético do operar artístico primitivo, almejaram uma arte mais espontânea e voltada para a natureza, prenunciando, ao mesmo tempo, conteúdos da modernidade, como pondera, do alto de sua autoridade crítica, Arnold Hauser, que aponta, no Pré-Rafaelismo, o triunfo da combinação de assuntos não-pictóricos e valores pictóricos novos e atraentes. Atentos aos problemas sociais, interessados pelo mundo da ciência, demonstraram, ao mesmo tempo, atração e repulsa pelo progresso técnico: adotaram a fotografia e protestaram contra a industrialização, promovendo uma volta ao artesanato. Causou o Pré-Rafaelismo uma revolução, tanto na pintura quanto na literatura, sobretudo através da mitologia que criou, tendo como eixo a mulher com aura de androginia, com ares evanescentes, com olhares lânguidos, com postura inacessível e sensual, fria e carnal, modelo absoluto da femme fatale, transgressora, muitas vezes envergando uma túnica pré-rafaelita, de estéticas e culturas. As madonas do Pré-Rafaelismo já não mais guardam a castidade das madonas florentinas, tampouco têm a inocência graciosa com que aureolavam suas musas Filippo Lippi e Boticelli. Na linguagem da pintura, o Pré-Rafaelismo postulou e operou, num retorno apoteótico ao Quattrocento italiano e à arte flamenga, uma pletora de detalhes, uma exuberância de cores e uma fulgurante e complexa composição. Propuseram-se a imitar o estilo dos artistas, que precederam Rafael – fonte, em sua opinião radical, de todo academicismo -, cultivaram, fervorosamente, uma ligação com a natureza (“truth to nature”), daí resultando um minucioso realismo, que perturba, até hoje, o olhar e a mente do fruidor. A ambigüidade dessa postura reflete-se, também, na temática das obras pré-rafaelitas, que oscila entre assuntos de inspiração contemporânea, ora burguesamente intimistas, ora vazadas em um vago populismo, e assuntos históricos, literários e religiosos, em que se notam influências dos nazarenos, aqueles artistas que, em Viena, no mês de julho de 1809, se insurgiram, apoiados nas teorias de A. W. Schlegel e W. H. Wackenroder, contra o academicismo clássico e as teorias de J. Winckelmann, aspirando a um retorno às fontes originais da pintura; a fim de regeneram a pintura alemã, os nazarenos – artistas alemães em Roma – elegeram como seu paradigma a arte de Dürer, Perugino e até de Rafael, quando jovem. A Idade Média européia, com suas tradições nacionais, serviu de imensa inspiração aos Pré-Rafaelitas, sobretudo a Rossetti, fascinado por Dante Alighieri e pelo Stil Nuovo. A aventura pré-rafaelita, que durou de 1848 a 1860, intrinsecamente ligada à estética da arte pela arte, ao esteticismo do irlandês Oscar Wilde, confluirá, a partir, principalmente, de artistas como William Morris e Aubrey Beardsley, nos irrequietos ideais estéticos do fim do século XIX (decadentismo, simbolismo, Art Nouveau) e influenciará as vanguardas artísticas, como o revolucionário surrealismo, que haveriam de triunfar nas primeiras décadas do século XX. Com seu gênio transgressor, Salvador Dalì falará do “surrealismo espectral do eterno feminino pré-rafaelita”. Em Dante Gabriel Rossetti (1828-1882) – filho de pai refugiado político napolitano e de mãe professora, tendo como irmãos Christina Georgina Rossetti, grande poetisa, e William Michael Rossetti, renomado crítico de arte – , poeta e pintor, e principal nome dessa estética, também denominada, et pour cause, Rosseti-ism, o Pré-Rafaelismo exibe uma natureza esplendorosamente plástica, de que a o soneto abaixo, com tradução do poeta brasileiro José Lino Grünewald, é nítido paradigma:

A Sonnet is a moment’s monument, –

Memorial from the Soul’s eternity

To one dead deathless hour. Look that it be,

Whether for lustral rite or dire portent,

Of its own arduous fullness reverent:

Carve it in ivory or in ebony,

As Night or Day may rule; and let Time see

Its flowering crest impearled and orient.

A Sonnet is a coin: its face reveals

The soul, – its converse, to what Power ‘tis due: –

Whether for tribute to the august appeals

Of Life, or dower in Love’s high retinue,

It serve; or, mid the dark wharf’s cavernous breath,

In Charon’s palm it pay the toll to Death.

Soneto é um monumento do momento,-

Da Alma, memorial da eternidade

Ao morto, hora imortal. Na integridade,

Que seja rito em luz ou só portento,

Dessa árdua plenitude reverente:

No mármore ou no ébano, cinzele-o,

Ditam a Noite e o Dia; e o Tempo a vê-lo: Pérolas, crista em flor e o oriente.

O soneto é moeda: a cara dela

Mostra a alma, – e a coroa a que o Senhor

Deve: – ou por taxa ou quem augusto apela

A Vida, ou dom na corte alta do Amor,

Serve: ou, no arfar poroso em cais sem norte,

Paga à mão de Caronte o som da Morte.

O Pré-Rafaelismo não foi, em sua época, bem aceito, nem pelo público, tampouco pela crítica, que lhe acusava o medievalismo e o excesso de detalhes; todavia, John Ruskin, renomado crítico de então, reconheceu-lhes o valor no que se referia à devoção à natureza e à rejeição aos métodos tradicionais de composição. Em Portugal, duas revistas muito importantes – Arte , fundadora do simbolismo português – e Orpheu , inauguradora do modernismo naquele país -, influenciaram-se, de acordo com João Gaspar Simões, pela estética pré-rafaelita: “É nessa revista, Arte , que podemos admirar a preponderância do gosto pré-rafaelita nas artes plásticas e decorativas. O mesmo Orpheu atesta ainda esse gosto, para não referirmos ao aparato gráfico das obras do próprio Sá-Carneiro”. Segundo o celebérrimo escritor pós-moderno argentino Jorge Luis Borges, “em toda a obra de Rossetti respira-se um ambiente de estufa e de doentia beleza”. Essa crítica emblema o próprio Pré-Rafaelismo, ecoando nos espelhos e labirintos de nossa pós-modernidade.

{bibliografia}

Latuf Isaias Mucci, A poética do Esteticismo (1993), p. 139-146. Mario Praz, Literatura e artes visuais (1982), p. 46. Mario Praz, El pacto com la serpiente (1988), p. 109. Arnold Hauser, História social da literatura e da arte (1972), p. 993. José Lino Grünewald. Grandes poetas da língua inglesa do século XIX. ( 1988), p. 118-119. Latuf Isaias Mucci, Ruína & simulacro decadentista: uma leitura de Il piacere, de D’Annunzio (1994). João Gaspar Simões, O mistério da poesia (1971), p. 123.