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Expressão-chave da hermenêutica gadameriana da finitude. Com ela o autor efectua uma crítica severa dos pressupostos cientistas, apofânticos e iluministas da hermenêutica filosófica que se desenvolveu no período do Romantismo e do Historicismo. O fio condutor desta hermenêutica, dita científica, era a ideia metodológica moderna segundo a qual compreender( neste caso o texto ) seria reconstruir objectivamente a intenção do autor evitando toda a intromissão dos dados subjectivos ou pressupostos do intérprete.

O que, para Gadamer, é criticável neste tipo de concepção hermenêutica é a sua clara vinculação com a lógica subsuntiva das ciências da natureza e todo o seu conjunto de pressupostos sobre o que é compreender.Este foi visto, na Modernidade, segundo o lema do saber para poder prever, dominar e manipular o livro da natureza .Foi este o ideal que, logo desde o início da Modernidade, levou Francisco Bacon, no seu “Novum Organum Scientiarum,” a propôr ao próprio filosofar a necessidade de uma limpeza de todos os idola (ou preconceitos) da razão, nomeadamente de aqueles que actuam de um modo mais subreptício: os que são veiculados pelo uso da linguagem natural.

Assim se impôs no contexto filosófico ocidental, a ideia de que conhecer exige certeza e que tal facto implica um ponto de partida seguro, quer dizer, liberto dos modos habituais de comprender e, por isso, uma linguagem judicativa exacta, que só poderia ter o seu modelo na precisão matemática. Rejeita-se, de um modo deliberado, a mediação linguístico- natural do mundo originariamente vivido em situação de intersubjectividade e a partir de lugares-comuns, que marcam o enraizamento do pensamento humano em circunstâncias e horizontes concretos de compreensão. Criado, deste modo, um contexto puramemte cognitivo e pretensamente neutro do pensar modelar, surgem as condições da depreciação iluminista de todos os preconceitos do pensar, considerados a partir de então como motivo fundamental do erro, da infelicidade ou menoridade humana.O preconceito é, desde esse momento, elevado à categoria de juízo não fundamentado ou sintoma de menoridade, que contrasta com a conhecida máxima kantiana, ousa servir-te da tua própria razão. O preconceito deixa então de poder definir a significabilidade própria do âmbito imediato da consciência natural e adquire o sentido pejorativo que hoje ainda habitualmente lhe damos.Refere-se apenas a um facto exterior à raciolidade humana e, como tal, plenamente racionalizável. Ele tem uma dupla origem: a precipitação de cada um e o respeito pela autoridade do outro. Mas pode ser evitado através de um uso metódico e disciplinado da razão.

Ora, é esta a concepção de fundo da Modernidade iluminista, profundamente solipsista, que Gadamer,discípulo de Heidegger e adoptando a sua determinação da finitude da compreensão humana ( sempre jogada entre o primado da pré-compreensão e a necessidade de uma ulterior explicitação), rejeita claramente. A descoberta contemporânea da finitude ou essencial corporeidade do existir obriga a reconhecer que, nos dias de hoje, não existe para o homem a possibilidade de um grau zero do pensar. A razão humana sabe-se hoje finita, múltipla, comunicacional e limitada. Parte sempre de um horizonte concreto e situado de compreensão , isto é, de uma pertença fundamental à comunidade humana ou tradição, que a sustenta. Reconhece, pois, como a lente a partir da qual a subjectividade observa é um espelho deformador. Muito antes de nos compreendermos a nós mesmos, de um modo crítico-reflexivo, lembra-nos Gadamer, compreendemo-nos, de um modo pré-crítico ou preconceptual na Família, na Sociedade civil ou no Estado a que pertencemos. Logo, se quisermos fazer justiça ao carácter histórico-finito do ser humano, devemos efectuar uma reabilitação fundamental do conceito de preconceito e reconhecer que existem preconceitos legítimos”(VM I,344) . Só os preconceitos, depreciados pelo Iluminismo, permitem hoje ultrapassar o sonho moderno de mediação total e seu voto de transparência absoluta .Só eles permitem,de facto, enquanto categorias dialécticas do pensar, o acesso sempre hermenêutico, sempre narrativo ou implicado do homem finito à verdade. A reabilitação gadameriana dos pressupostos de toda a compreensão humana visa assim revelar a fundamental fragilidade de todo o pensar desencarnado, puramente cognitivo ou conceptual. Esqueceu-se na Modernidade a verdadeira condição hermenêutica, retórica ou intersubjectiva do sentido: o primado antropológico da relação, isto é, a efectiva inserção de todo o ser finito num passado comunicacional, marcado pelas grandes narrações, sem o qual toda a sua experiência da razão é puramente abstracta ou vazia.. Este esquecimento marcou a Modernidade e seu optimismo ingénuo segundo o qual ser autónomo (pensar por si mesmo) significa nada receber ou tudo reconstruir a partir de um grau zero do pensar.

Mas, depois de Heidegger e da sua fundamental revelação da finitude de todo o pensar, se quisermos fazer alguma justiça à experiência privilegiada do autoposicionamento do cogito, enquanto núcleo do pensar é, então imperioso que meditemos sobre a essencial consubstancialidade do pensamento e da linguagem, isto é, sobre a inevitável linguisticidade ou narratividade de todo o exercício humano da razão.E isto significa antes de mais nada o seguinte: não existe mesmo para o homem a possibilidade de um qualquer isomorfismo entre as suas ideias e as coisas. Pelo contrário, porque somos finitos toda a nossa relação ao ser é de explicitação pela palavra, de referência, de simbolização e interpretação.A relação do homem ao outro homem faz agora parte integrante da relação do homem à verdade. Não apreendemos nunca as coisas em si mesmas mas já sempre mediadas (configuradas) pelo dizer dos outros ou tradição. Daí que a experiência da verdade seja originariamente hermenêutica, isto é, uma presença temporal linguisticamente habitada – – uma espécie de texto a interpretar – – , algo que só existe na constante dialéctica da palavra e da sua apropriação pela existência.

Categoria da relação, o preconceito em Gadamer tem pois um sentido eminentemente crítico, dialógico e inovador .Lembra-nos que hoje – – depois de M. Heidegger e do reconhecimento pós-fenomenológico do corpo, como verdadeiro espaço de experiência do pensar – – a pré-compreensão ou efeito do outro em mim, não pode mais ser remetida para o âmbito do preconceito a evitar. A conquista da identidade e autonomia humanas não segue, hoje, a via do esquecimento transcendental- reflexivo do outro. Constroí-se, pelo contrário, aceitando sem subterfúgios a autonomia e crítica do outro. Ora, foi isto que a mutilação epistemológica, que afecta o que a partir de Schleiermacher se chamou “ ciência hermenêutica”, esqueceu. Por isso,segundo Gadamer, é necessário que uma hermenêutica discuta a tese iluiminista da depreciação de todos os pressupostos, em ordem a um verdadeiro reconhecimento do sentido dialógico e produtivo da temática do preconceito.

Não foi por acaso que que nos três principais domínios em que sempre se desenvolveu a hermenêutica anterior a Schleiermacher – o âmbito das ciências histórico- filológicas, o âmbito teológico e o da jurisprudência – sempre floresceu a crítica do objectivismo e do positivismo e foi justamente este espírito de crítica ao objectivismo puramente redutor e explicativo que fez desenvolver a hermenêutica .O grande pressuposto, que aqui actuava ainda que de forma não temática, era o da aproximação linguística ou narrativa dos factos e ainda a ideia muito clara de que interpretar significa uma apropriação não subsuntiva nem meramente neutra do real.

Compreender e interpretar sempre significaram a necessidade de traduzir para um horizonte concreto singular a mensagem do texto e de o fazer claramente entrar em jogo. A hermenêutica dita científica do Romantismo e Historicismo esqueceu-o , tão dominada que estava pelo espírito de cientificidade do Iluminismo. Por isso, não pôde perceber que o modelo da compreensão parte sempre de pressupostos ou linhas de orientação prévias e provisórias, que marcam a dimensão dialógica e narrativa de toda a experiência humana do sentido.

Aqui reside, de facto, a novidade de Gadamer: os preconceitos da razão humana histórica têm um carácter dialógico, provisório e processual – e não um conteúdo definitivo – desconhecido pelo Iluminismo, mas já presente, de um modo muito claro, no seu âmbito de origem: os quadros da jurisprudência latina. Préjuízo, não significa, originariamente, o juízo falso do Iluminismo, mas pertence originariamente ao seu sentido a possibilidade de vir a ser valorizado positiva ou negativamente. Exprime já, em sentido jurídico ( o sentido primitivo da palavra), uma antecipação de sentido ( o juízo prévio à sentença definitiva) que só intersubjectivamente, isto é, em tribunal, pode (ou não) confirmar-se. A dialéctica dialógica do preconceito, que Gadamer herda do procedimento jurisprudencial e de toda a tópica humanista da formação pela dialéctica e retórica, tem um intuito fundamental : sublinhar, contra o antropocentrismo da razão monológica moderna, a condição dialógica do pensar humano, a sua natureza questionante fundamental. Pensar a partir de preconceitos significa reconhecer que na abertura do homem à verdade reside simultaneamente a possibilidade do erro ou mal-entendido. Por isso, a compreensão humana parte sempre de conceitos prévios, que devem explicitar-se e, se não se confirmarem, devem ser substituídos por outros mais adequados. Ora, isto significa que, se em si mesmo pensar a partir de preconceitos não significa já sujeição ou menoridade, é necessário, no entanto, distinguir os preconceitos falsos – que se fecham ao diálogo e à interpretação – dos verdadeiros, aqueles que se deixam pôr em causa promovendo, por isso mesmo, a compreensão como abertura ou interpretação. A verdade dos preconceitos exige o seu exercício dialéctico num aprofundamento da relação , que todos somos e nenhum pode possui por si só. É fundamentalmente dialógica, isto é , uma praxis de ordem comunicativa na qual cada um se expõe ao outro, oferecendo-lhe, por sua vez, a possibilidade de se expôor e transformar.

{bibliografia}

H.-G.GADAMER,Gesammelte Werke 1. Hermeneutik I . Wahrheit und Methode- 1 . Grundzuege einer philosophischen Hermeneutik, Tuebingen, Mohr,1986; ID., Gesammelte Werke 2. Hermeneutik II. Wahrheit und Methode-2 . Ergaenzungen. Register, Tuebingen, Mohr, 1986; M. L. PORTOCARRERO F.SILVA, O Preconceito em H.-G.Gadamer: Sentido de uma Reabilitação, Lisboa, FGG/JNICT, I995: JANKOWITZ, W.G., Philosophie und Vourteil. Untersuchungen zur Vorurteilshaftigkeit von Philosophie als Propaedeutik einer Philosophie des Vorurteils, Meinsenheim am Glan- Verlag Anton Hain, 1975.