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Termo de origem grega (prólèpsisacto de tomar de antemão; opinião que se forma antecipadamente, opinião preconcebida; em retórica, prolepse é a resposta antecipada a uma objecção) que designa uma figura retórica que consiste na antecipação gramatical de palavras pertencentes a um sintagma posterior da frase, de forma a realçá-lo, como se observa no exemplo: «E estas calças, veja em que estado deixou estas calças…» (José Saramago, Todos os Nomes, 7ª ed., Caminho, Lisboa, 1998, 145).

Em narratologia, prolepse é o termo utilizado para referir uma das formas de Anacronia, através das quais o narrador pode alterar/ distorcer a ordem temporal dos acontecimentos (analepse/ flash-back e prolepse). A prolepse consiste na alteração da ordem sequencial dos acontecimentos, antecipando alguns que ainda não tenham ocorrido ou fazendo simplesmente um sumário de uma situação que virá a ocorrer, tal como se verifica na seguinte situação: «A partir deste dia, Marta vai querer tanto ao cão Achado como sabemos que já lhe quer Cipriano» (José Saramago, op. cit., p. 87). Quando o sumário está localizado no início da narrativa, retira a curiosidade ao leitor em descobrir o desfecho da acção, pois todo o texto será a explicação do que foi apresentado no início. Este tipo de prolepse pode associar-se a noções de fatalismo ou predestinação.

Genette distinguiu variantes da prolepse: prolepse interna que consiste na técnica de antecipar acontecimentos, finda a qual o narrador retoma a narrativa no ponto onde a havia interrompido, como se verifica no seguinte exemplo:

Para fazer entrega da mercadoria, o oleiro ia ser obrigado a passar por trás do quarteirão em demolição, rodeá-lo […]. Quando daqui a dez dias vier recolher o genro, não haverá qualquer vestígio destes prédios, terá assentado a poeira da destruição que agora paira no ar […]. O oleiro olhou o relógio, ainda era cedo, nos dias em que trazia o genro era inevitável ter de aguardar duas horas […] (Idem, pp. 18-19).

As prolepses internas complementam, frequentemente, futuras elipses, na medida em que antecipando, no tempo, determinados acontecimentos, estes poderão, posteriormente, ser, apenas, mencionados. A prolepse pode surgir anunciada por um marcador de tempo específico, como nas seguintes situações: «Fica adiada para um capítulo ad hoc, e voltemos à minha Joaninha.» (Ap. Luís Amaro de Oliveira, Viagens na Minha Terra de Almeida Garrett, (1846), 5ª ed., Porto Editora, Porto, 1981 (1ª ed., 1974), 81) e «muitos e muitos anos depois de estar concluída esta babel, entrará Junot em Mafra, onde no convento apenas ficaram uns vinte frades velhos.» (José Saramago, Memorial do Convento, 13ª ed., Caminho, Lisboa, 1982, 213-14), funcionando como elemento de ligação com um momento ulterior da acção onde será desenvolvida.

A segunda variante consiste na prolepse externa que se refere, frequentemente, ao presente da narração, pois projecta-se para além do términus da acção, de maneira a demonstrar a repercussão que esse acontecimento suscitou no narrador ou na personagem que o transmite. O excerto que se segue é suficientemente ilustrativo, na medida em que Sofia só virá a morrer mais tarde, embora o narrador antecipe esse facto, no momento presente em que recorda:

Meteram-na no colégio. Mas não houve outro remédio senão tirá-la de lá, porque duas vezes tentou suicidar-se. […] Mas agora que morreste de uma morte inesperada que te evitou o gesto puro de te matares, agora que relembro toda a tua vida certa, evidente, […] reconheço a verdade antiga axiomática, de todo o teu raiar a um mundo de limites, de máximos, de pura iluminação. (Vergílio Ferreira, Aparição, 50ª ed., Bertrand Editora, Lisboa, 2000 (1ª ed., 1994), 58-9).

Gérard Genette considerou, ainda, a existência da prolepse completiva que contribui para preencher uma lacuna posterior aos factos narrados, por exemplo através da evocação rápida do castigo imposto a Clio após os acontecimentos ocorridos, em Lisboa, devido à sua distracção: «Quanto à deusa Clio, foi privada de ambrósia por quatrocentos anos o que, convenhamos, não é seguramente castigo dissuasor de novas distracções.» (Mário de Carvalho, A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho e outras histórias, 3ª ed., Caminho, Lisboa, 1992 (1ª ed., 1983), 35); a prolepse repetitiva que anuncia um acontecimento que seria contado na devida altura, como se verifica na seguinte situação: « Los coches, como viremos a saber, em breve serão só dois.» (Lídia Jorge, op. cit., p. 233) e que se torna explícita através da expressão «como viremos a saber»; a prolepse iterativa que apresenta determinado acontecimento como o primeiro de uma série que se lhe seguiu. Uma antecipação deste tipo pode assumir o seguinte formato: «E o mesmo aconteceu no dia seguinte e no dia seguinte.» (ibid., p. 150) de modo a que o leitor tome consciência de que exemplos idênticos se sucederão no futuro.

Genette estabeleceu, ainda, a diferença entre prolepses parciais e completas, embora tenha concluído que a grande maioria pertença ao primeiro grupo, pois a antecipação dos acontecimentos que é feita tem início e termina no mesmo ponto da narrativa, continuando esta, depois, o seu desenrolar, interrompendo-se a prolepse, tal como se interrompeu a narrativa. A prolepse completa existe quando a antecipação ocupa a totalidade do tempo da história até ao desenlace.

A prolepse é muito menos frequente do que a analepse ou flash-back, embora facilmente identificada através da utilização de expressões adverbiais ou tempos verbais (futuro ou presente) como se verifica nos exemplos transcritos («A partir deste dia», «Não haverá qualquer […] terá assentado», «Fica adiada», «Muitos e muitos anos depois», «Agora que relembro», «Como viremos a saber», «No dia seguinte» ).

Tal como Gérard Genette afirmava, «a narrativa na primeira pessoa presta-se melhor do que qualquer outra à antecipação, pelo seu declarado carácter retrospectivo, que autoriza o narrador a alusões ao futuro e particularmente à sua situação presente, que de certo modo fazem parte do seu papel» (Gérard Genette, Figures III, p. 106). Tais alusões ao futuro podem, inclusivamente, estar contidas no interior de analepses, quando o narrador (ou a personagem) está num momento de recordação (flash-back) e antecipa acontecimentos que correspondem ao presente ou ao futuro do tempo da história, pertencendo, em ambos os casos, ao passado do narrador (visto que se encontram no interior de uma analepse). Vejamos a seguinte situação: «Depois, muito tempo depois, lembrava-se de a ter visto entre os talheres banhados a prata, quando Custódio Dias já sabia que Walter Dias não havia de regressar mais.» (Lídia Jorge, op. cit., p. 35), onde um futuro que há-de ser presente para a personagem – a fotografia encontrada entre os talheres de prata – está a ser evocado a partir de uma lembrança do passado. A situação oposta também pode acontecer – a analepse no interior de uma prolepse, quando o leitor é informado antecipadamente de como o presente lhe surgirá.

A prolepse chega a fazer referência a acontecimentos que correspondem ao final da acção, servindo, assim, para acentuar a curiosidade do leitor, antecipando o seu conhecimento imediato e superficial das situações de que se virão, ao longo da narrativa, a conhecer os pormenores que conduziram a tal desfecho. Veja-se o seguinte exemplo: «Mas veio ainda a segunda época. E então sofri um novo ataque de fortuna. Mas ele trouxe-me também a coragem ou o desespero que ainda não tivera para me ver de frente e acabar com tudo de uma vez. Porque nas férias seguintes, como depois contarei, tremendo de raiva e de alegria, fui o homem perfeito que o meu ardor esperou –e saí.» (Vergílio Ferreira, Manhã Submersa, 13ª ed., Bertrand Editora, Lisboa, 1987, 194).

A prolepse não deve, no entanto, confundir-se com a profecia ou premonição que são situações que não vão surgir desenvolvidas posteriormente no texto, mas que apenas pretendem criar uma atmosfera de agoiro. Veja-se o seguinte exemplo de Frei Luís de Sousa: «Mais, muito mais. E veremos: tenho cá uma coisa que me diz que antes de muito se há-de ver quem é que quer mais à nossa menina nesta casa.» (Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa, segundo fac-símile da edição da Quinta do Pinheiro, 1844, Lisboa, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 1993, com ortografia actualizada).

{bibliografia}

Mieke Bal, Introduction to the Theory of Narrative, 1997 (1ª ed., 1985); Gérard Genette, Figures III, (1972).