Os elementos mais gerais que regem a leitura são os códigos, as regras e os saberes prévios que estabelecem uma determinada competência de leitura (cf. V.M. A e Silva, 1977:122; e U. Eco, 1979:53-55) . Por sua vez, o texto fornece as suas próprias condições de inteligibilidade a partir de enunciados que se encontram estrategicamente colocados em posição paratextual (indicações textualizadas, relativamente exteriores ao que se considera o texto propriamente dito) tendo em vista a orientação protocolar. É função dos protocolos de leitura porem a expectativa do leitor dentro dos parâmetros do texto – ou seja, darem os limites discretos do que é variável. Protokollon é, de facto, essa folha colada na frente, saber de regras que se assumem quase sem questionamento, e cuja leitura não se faz – sabe-se “de cor”.
Seguimos aqui, com alguma elasticidade, o conceito derridiano que Scholes desenvolve no trabalho que tem exactamente o nome de Protocolos de Leitura (1989). Pensar em protocolos , em nosso entender, é convocar os entabulamentos conceptuais, aquilo que, por detrás de um texto (ou melhor, antecedendo-o, como um conjunto de instruções de uso, tal como etimologia o sugere, ou nas estruturas culturais, mentais e linguísticas mais profundas, torna possível a comunicabilidade e a permuta de informações. Todos os intercâmbios semióticos pressupõem protocolos, o que não leva, de modo algum, à univocidade. Os protocolos de leitura não se estabelecem como acordos exaustivos mas antes como pactos tácitos: na abordagem de textos, por leituras, e na de discursos, por recepções. Na galáxia dos protocolos de leitura cabem as formulações gerais como os topoi, os raciocínios de pressuposições como os entimemas, os prototextos migrantes como as fábulas, as máximas, as normas morais e as mais simplificadas proposições de saber sobre o mundo. Gravitam, também, no mesmo espaço conceptual, conceitos como ideologema, contexto (cultural, histórico, social, literário) e cotexto (restantes escritos que envolvem directamente o texto em questão – sendo muito difícil, sem arbitrariedade clarificadora e voluntariosa, dizer onde termina o cotexto e começa o contexto). Acertar os meus horizontes de expectativa com os textos, ou seja, fazer caber estes dentro daqueles, ajustar os horizontes às inovações, dificuldades e propostas de reformulação a que os textos me obrigam durante o acto de leitura, são tudo operações que, com algum simplismo, nos ajudam a perceber o âmbito em que funciona o conceito. É óbvio que, uma das mais interessantes operações dentro do âmbito protocolar, é aquela a que Bloom se refere como misreading. O funcionamento protocolar de grande discípulo face ao mestre é a incompreensão criadora, o erro de leitura que leva à reformulação dos temas, das fábulas, das acepções dos mais importantes conceitos usados pelo antecessor.
No caso da narrativa romanesca, por exemplo, o saber mais importante (além do linguístico, claro) que funciona no pacto interiorizado de reconhecimento de parâmetros, de enciclopédia codificada capaz de assegurar a intersubjectividade autor-leitor por meio do sistema do texto, é o género e aquilo que ele implica como modelo de desenvolvimento discursivo. De um modo geral, o caso dramatizado, conduzido por um narrador é o que se espera. Convocam-se, em simultâneo, pela explicitação dos agentes e pelos actos cometidos (o “crime”, a “falta” ou desobediência à norma) os horizontes éticos: não o fazer, neste caso, seria negar uma possibilidade geral mínima de cumplicidade entre o leitor, o texto e o autor. Contudo, pensar apenas no plano ético, sem ter em conta a determinação genológica (a do romance clássico oitocentista, a do romance barroco, a do romance de cavalaria, por exemplo), seria esquecer a importância que o caso, enquanto desenvolvimento narrativo específico, tem como apresentação do problema ético.
O comportamento ou ethos surge como exemplo singular dentro de um corpo de normas (a ética como reguladora do dever ser comportamental) a partir das quais é julgado. É claro que em muito autores existem pelo menos duas normas , se não antagónicas, no mínimo contraditórias: a que é regida directamente pelas instâncias transcendentais (leis sagradas, axiologias fundadoras), que conduzem o homem como determinações, e a que é regida pelos representantes dessa potência poderes no universo imanente (ou que pelo menos se assumem como tal), que tornam questionável essa mesma determinação cósmica.
Operando com o conceito de différance, segundo o qual a escrita instaura um desfasamento irrecuperável entre os códigos do emissor e os do receptor, Derrida, numa fase avançada da sua obra, questionando a validade conformista da “hermenêutica fundamentalista” postula a impossibilidade de garantir o funcionamento protocolar, ou seja, o ajuste de reconhecimentos e pressupostos entre os dois extremos da cadeia de comunicação: “Um texto pode sobreviver à ausência do autor, à ausência do destinatário, à ausência do objecto, à ausência do contexto, à ausência do código, sem que deixe de poder ser lido” (cf. Scholes, 1989 (1991(:74).
Contra esse niilismo hermenêutico, Scholes, ainda que reconhecendo-lhe o valor por ele questionar os limites optimistas de uma hermenêutica convicta da obtenção da “verdade” do textos, argumenta do seguinte modo: “Em cada acto de leitura, a irremediável alteridade do escritor e do leitor é equilibrada e contrariada (pelo( desejo de reconhecimento e de compreensão entre os dois parceiros. Como leitores não podemos ignorar as intenções dos escritores sem incorrer num acto de violência textual que ameaça a nosso própria existência como seres textuais. Mas também não nos é possível preencher por inteiro a lacuna comunicativa e, em muito casos, temos de reconhecer que tal lacuna é de facto bastante ampla. Necessitamos de protocolos de leitura do mesmo modo que precisamos de outros códigos e de outros hábitos, isto é para dispormos de uma estrutura onde ajustar as nossas diversidades” (Scholes, 1989(1991( :66).
Scholes, Robert, 1989, (ed. Cons.1991, Protocolos de Leitura, Edições 70, Lisboa(, Protocols of Reading, Yale University Press, Yale.
Nota: A obra de Jacques Derrida, em geral, de modo disseminado, com base no desconstrucionismo e no diferimento presente em toda a escrita (a gramma), pode ser entendida como o questionamento e problematização genéricos dos limites e validades dos protocolos
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