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Uma querela ou questão literária se dá quando dois ou mais pontos de vista contrários tornam-se relevantes e seus respectivos defensores entram ou não em debate intelectual. Caso não exista esse debate direto, a história nos revela que muitas vezes um terceiro, geralmente no papel de crítico, traz as divergências da querela à tona, seja posicionando-se ou não. Outro tópico ainda a ser discutido é que duas ideias opostas muitas vezes possam ser fruto de uma mesma fonte criativa ou imaginativa, e mesmo que pareçam distintas à primeira vista, é possível estabelecer analogias entre as duas. Veremos também, embora de forma sutil e não aprofundada, que muitas vezes um confronto literário ou intelectual pode esconder por trás de si outros interesses tão inerentes à arte durante a sua história, como a política ou mesmo interesses ideológicos. Também são interessantes e acaloradas as querelas filosóficas, mas nos reservamos a enumerar somente as literárias que merecem a pena.

É notável aquela Querela dos Antigos e Modernos que ocorreu em França no fim do século XVII, quando a Academia de Letras ficou dividida entre a ideia de que a antiguidade greco-romana era ainda superior a qualquer produção literária francesa e a de que a moderna produção literária do país nada devia aos clássicos do passado. Charles Perrault (1628 — 1703), um dos protagonistas do debate, liderou a Querela dos Modernos e lançou a polêmica com o poema Le Siècle de Louis le Grand (1687) ao enumerar os “defeitos” de Homero (como o uso demasiado de viagens e a característica brutal de seus heróis) e tumultuou a sessão acadêmica no dia de sua leitura; e a formulação declarada Parallèle des Anciens et des Modernes (1688–1692), que trata de cinco diálogos entre seus colegas, um Antigo, um Moderno, e um dividido. Sua maior contribuição viria, contudo, com a publicação das Histórias ou contos do tempo passado ou Contos da Mamãe Gansa (Histoires ou contes du temps passé ou Les Contes de ma Mère l’Oye, 1697), em que Perrault conferiu acabamento literário a histórias populares como A Bela Adormecida no Bosque, Barba Azul, A Gata Borralheira (Cinderela), O Gato de Botas, Chapeuzinho Vermelho, Polegar, entre outras, que até então circulavam exclusivamente nos salões parisienses e pela boca do povo de sua época, mas que permanecem  famosas, adaptadas e recontadas até os dias atuais.

Não se pode desprezar outras querelas literárias notáveis. Como aquela que ocorreu entre o Pré-Romantismo (ou Sturm und Drang) e o Classicismo na segunda metade do século XVIII na Alemanha. Embora certos autores ponderem que, exclusivamente na Alemanha, ambos os movimentos não possuíssem características literárias distintas entre si (e até mesmo o titã Johann von Goethe liderou ambos os grupos), outros encontram divergências sobretudo sociais. Por certo, os fatores sociológicos dessa vez aparecem mais evidentes do que a querela que animou a Academia Francesa, posto que o Classicismo alemão era mantido pelos aristocratas e seus valores sociais e artísticos elitistas, enquanto o Pré-Romantismo emergia como fruto expressivo de uma classe burguesa em ascensão ambiciosa em adquirir prestígio literário. Seria impossível este novo movimento ser mais propício à época, visto que pregava a revolta contra as convenções. O Sturm und Drang significa “tempestade e ímpeto” em sentido literal: é a representação absoluta da paixão humana, da emoção acima da razão, do profano, com personagens que amam tão intensamente que são capazes de se suicidar, de se vingar, de matar e viver no extremo. Por outro lado, o Classicismo era o caráter sagrado da obra de arte, a ordem, a pureza, o rigor e o equilíbrio. Como escrito anteriormente, Goethe soube temperar estas ambivalências de forma exemplar em sua obra.

Até aqui, nos parece que as querelas surgem sobretudo em momentos em que um movimento literário ou artístico decai diante de um novo, o que, por si só, agita as almas dos escritores e poetas que vislumbram a novidade mas que, ao mesmo tempo, convivem com aqueles que não pretendem desgarrar-se do passado. É uma querela literária a crítica de Machado de Assis (1839-1908) quanto o Realismo “exagerado” de Eça de Queirós (1845-1900) e suas descrições por demais naturalistas e técnicas, no momento mesmo em que o escritor brasileiro pedia para se voltar os olhos à realidade, mas não “suprir a estética” (ASSIS, 1959, p.177-8). É querela o estranhamento de Capistrano de Abreu (1853-1927) e outros frente às inovações literárias trazidas pelo próprio Machado de Assis com a narrativa escrita por um defunto-autor em Memórias Póstumas de Brás Cubas em 1881 (FACIOLI, 2008, p.62.). Da mesma forma, é querela literária a forma como os escritores do Modernismo Brasileiro portavam-se perante a literatura do Parnasianismo (cuja tríade constituía em Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira), sobretudo durante a Semana de Arte Moderna de 1922, cujo hino memorável, o poema “Os Sapos”, escrito por Manuel Bandeira (1886-1968), zombava descaradamente do método parnasiano. Em Portugal, a Questão do Bom-senso e Bom-gosto (ou Questão Coimbrã) dividiu, no século XIX, velhos autores defensores do status quo e do ultra-romântico na literatura, como António Feliciano de Castilho, e um grupo de jovens estudantes em Coimbra (entre eles, Ernesto Biester, Tomás Ribeiro e Manuel Joaquim Pinheiro Chagas) protegidos por Antero de Quental e assimiladores de novos movimentos como o realismo e o naturalismo europeu.

Estes são exemplos todos em que os opostos parecem se enfrentar com clareza, mas existem propostas de querelas trazidas por críticos algum tempo depois de terem ocorrido ou por serem velados. Ao comentar a falta de interesse do grande público em relação ao romance Vidas Secas de Graciliano Ramos, que demorou dez anos para vender os 1.000 exemplares da primeira edição (MALARD, 2006, p. 204), a crítica, biógrafa e ensaísta Lúcia Miguel Pereira trouxe à luz uma querela na literatura brasileira: “Se tivesse sido escrito há alguns anos, se fosse do tempo do Quinze e da Bagaceira, teria levantado uma celeuma. Mas veio quando já o público está meio cansado de histórias do nordeste, quando se criou essa absurda querela literária entre romancistas do norte e romancistas do sul, entre bárbaros e psicólogos.” (citado por PEREIRA, 2005, p.150) É muito acertado dizer que a popularidade de Vidas Secas só aumentou com o tempo, porém à época da crítica, não havia interesse em romances de cunho social, tampouco regionalistas. A moda da vez eram os romances (em grande parte influenciados pela Madame Bovary de Gustave Flaubert) sobre crises de relacionamentos de uma classe que não experimentava a miséria material, tema este que Pereira denomina categoricamente de “adultério mundano”. Dessa vez, temos uma querela literária que envolve diretamente o leitor: como escreve Pereira, “Mais uma história de retirantes, de seca, dirá enfastiado o possível leitor que, antigamente, se teria extasiado ante o valor desse ‘documento humano'”.

Vimos que em geral as querelas literárias se dão com um grande grupo de pessoas, porém podem acontecer entre somente duas pessoas. Por exemplo, numa entrevista concedida a um webjornal, quando perguntada sobre a importância da literatura num país em desenvolvimento, a escritora Nélida Piñon lembrou o seguinte: “Eu vou usar um exemplo que me fascinou quando eu era muito jovem. Surgiu um debate, na França, entre dois grandes intelectuais: o Jean-Paul Sartre e o Claude Simon, que mais tarde ganhou o Prêmio Nobel. O Sartre dizia que, naquele momento, seria necessário que os jovens africanos, que estavam em Paris, defendessem a sua pátria, voltando para a sua terra e assumindo posturas políticas e ideológicas. Já o Claude Simon falava que estava certo não renunciar às posturas políticas e ideológicas, mas o escritor africano devia fazer a sua obra independente de países pobres e iletrados; porque se ele deixasse de ‘registrar a história de seu país, ainda que em meio à dor, quem o povo africano irá ler ao longo dos anos ou dos séculos? Acaso, o escritor francês? Acaso, o Sr. Sartre?'” (Webjornal – Mensal – Edição 91 – Aracaju, 09 de julho a 13 de agosto de 2006, por José Roberto Mendes)

Outros dois homens, desta vez muito mais antigos que os anteriores, protagonizaram uma questão literária fictícia problematizada por Aristófanes em sua comédia As Rãs (encenada por volta de 405 a.C), em que de um lado da barricada está Ésquilo e, do outro, Eurípedes, ambos disputando o trono de rei da tragédia grega. O autor da comédia atribui ao deus Dionísio a missão de descer ao Hades em companhia do escravo Xântias e trazer de volta um tragediógrafo à Atenas. Compara a obra de ambos e dá a vitória à Ésquilo, cujos temas históricos e épicos pesavam (para Aristófanes) muito mais soberbos e relevantes do que Eurípedes e suas encenações na rua, sua dessacralização do mito, seu foco ao homem comum e seus problemas mundanos. Ao despejar críticas e observações em forma de comédia, Aristófanes não só expõe seu conservadorismo mas também traz à tona assuntos que possivelmente inquietava seus contemporâneos e abre, ainda neste século, questionamentos vários como: é possível um tema ou um gênero ser artisticamente superior a outro?

À guisa de entrarmos num tema mais contemporâneo, é possível citar também como questão literária a moderna cultura de massa que engloba o romance popular, o jornal, a história em quadrinhos e o Reader’s Digest, formatos que importunam seus detratores mas que é a realidade concreta de seus criadores. Em seu canônico Apocalípticos e Integrados (publicado originalmente em 1964), Umberto Eco parece polarizar ambos os grupos, chamando o homem de cultura de apocalíptico por este julgar a massificação da cultura uma perca significativa do valor artístico e, em contraposição, o produtor da cultura de massa como integrado, aquele que é otimista em relação à propagação e democratização em larga escala da área cultural. Dessa forma, o apocalíptico discursaria argumentos de decadência da arte e sua produção, a medida que ele mesmo já é um indivíduo em extinção (Eco o define como “último supérstite da pré-história, destinado a extiguir-se”) que escreve para um público reduzido e consolado pela sua elevação acima da banalidade média, julgando-se ele próprio e seu público como uma espécie de “super-homens nietzschianos”. O integrado, por sua vez, dissemina sua cultura para um público muito maior, não atribui superioridades intelectuais, ao mesmo tempo que incentiva uma passividade e um consumo acrítico. É certo que enquanto um tende para a crítica e o recusamento, criando, assim, um questionamento, uma questão literária, o outro apenas aceita e/ou cria a cultura de massa sem teorizar, porém a essência da produção de ambos pode ser comparada e estudada a nível de analogias. Mesmo Eco, nas páginas iniciais, adverte que ambos os termos não sugerem “oposição entre duas atitudes”, mas são “adjetivos complementares, adaptáveis a esses mesmos produtores de uma ‘crítica popular da cultura popular’.” O assunto garantiria uma grande elucubração sobre níveis de cultura, gosto, estética, manipulação e superficialidade, mas nos detemos aqui.

Cabe concluir que, com os exemplos dados acima, pudemos observar que na maior parte das vezes as querelas ou questões literárias são empreendidas por aqueles que assentem e aqueles que dissentem. De uma forma ou de outra, há de se concordar que a existência do assentimento, bem como a existência do dissentimento, trazem à luz a importância da diversidade de opiniões e ideias. Porque o dissentimento é capaz de gerar críticas construtivas, relevantes, e o assentimento gera prazer artístico e atribui novas propostas à cultura. Estas ambivalências (necessárias) têm norteado o homem diante da arte através dos tempos.

{bibliografia}

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