Stuart Hall (1932-2014) publicou, em 1997, a primeira edição de Representation, obra reeditada em 2013 e na qual o autor se debruçou sobre o conceito de representação, considerado não só uma das práticas centrais para a produção de cultura, mas também um momento-chave daquilo que o autor denominou o circuito da cultura.[1] Para Hall, a cultura não pode ser compreendida como um conjunto de coisas – como, por exemplo, romances, pinturas, programas televisivos, banda desenhada, entre outros –, devendo antes ser entendida como um processo, um conjunto de práticas. Fundamentalmente, a cultura relaciona-se com a produção e a troca de significados entre membros de uma sociedade ou grupo. Dizer que duas pessoas pertencem à mesma cultura significa que elas interpretam o mundo mais ou menos do mesmo modo, expressando-se a si mesmas, os seus pensamentos e suas emoções, de formas facilmente entendidas uma pela outra. Portanto, a ideia de cultura depende da forma como os seus participantes interpretam de modo significativo aquilo que ocorre em seu redor, percepcionando o mundo de forma mais ou menos semelhante. A ênfase colocada por Hall nas práticas culturais afigura-se crucial, pois são os participantes de uma cultura que conferem significado às pessoas, aos objectos e aos eventos. As coisas em si não possuem um significado intrínseco, único, fixo e imutável. Uma pedra, utilizando o exemplo de Hall, pode ser apenas uma mera pedra, pode significar uma delimitação geográfica ou pode identificar-se com uma escultura, dependendo do significado que lhe é atribuído num dado contexto. A forma como as pessoas usam as coisas, o que sobre elas dizem, pensam e sentem – ou, por outras palavras, a forma como as representam – é que lhes confere significado. Pode atribuir-se significado às coisas de diferentes formas, nomeadamente através de estruturas de interpretação, do uso que se lhes dá, do modo como são integradas nas práticas do quotidiano e da maneira como são representadas: “the words we use about them, the stories we tell about them, the images of them we produce, the emotions we associate with them, the ways we classify and conceptualize them, the values we place on them”. (Hall, xix) Assim, a cultura encontra-se envolvida em todas as práticas, não geneticamente programadas, mas que possuam significado e valor para as pessoas, práticas que precisam de ser significativamente interpretadas ou que dependem do significado atribuído para o seu funcionamento efectivo. Consequentemente, a cultura permeia o todo da sociedade, distinguindo “the ‘human’ element in social life” do “biologically driven”. (xix) Esta concepção de cultura distancia-se completamente da adoptada, por exemplo, por Matthew Arnold (1822-1888), F.R. Leavis (1895-1978) e Q.D. Leavis (1906-1981), embora se aproxime da proposta por Raymond Williams (1921-1988).
Neste âmbito, a representação reporta-se à produção de significado dos conceitos que existem na mente das pessoas, através do recurso à linguagem. O elo estabelecido entre os conceitos e a linguagem permite aos seres humanos fazer referência a objectos, pessoas e eventos, sejam eles factuais ou ficcionais. Consequentemente, tornam-se necessários dois sistemas de representação distintos para que o significado seja produzido.
O primeiro diz respeito a um mapa conceptual, um sistema através do qual todos os tipos de objectos, pessoas e eventos se correlacionam com um conjunto de conceitos ou representações mentais que cada indivíduo possui na sua mente. Os conceitos reportam-se tanto a coisas que se podem efectivamente ver – pessoas ou objectos materiais – como a coisas que não se podem ver, tocar ou sentir – conceitos de guerra ou de morte, exemplos dados pelo próprio Hall – ou ainda a coisas que provavelmente nunca serão vistas por pessoa alguma – anjos, sereias, Deus, o diabo, o paraíso, o inferno ou mesmo Middlemarch (a localidade ficcional criada por George Eliot). Sem estes conceitos não seria possível interpretar o mundo de uma forma significativa.
Cada indivíduo possui o seu próprio mapa conceptual, que, todavia, não é completamente diferente do das pessoas que o rodeiam, caso contrário cada um interpretaria o mundo de diferentes formas, sendo incapaz de partilhar os seus pensamentos e de expressar as suas ideias de forma perceptível aos outros. Assim, os mapas conceptuais dos indivíduos afiguram-se, em larga medida, semelhantes, o que, para Hall, significa que pertencem à mesma cultura. Dado que as pessoas interpretam o mundo de modos semelhantes, são capazes de construir uma cultura de significados partilhados, no contexto social em que coabitam. Hall acrescenta, ainda, que, por esta razão, a cultura é algumas vezes definida como partilha de significados e de mapas conceptuais. (4)
O segundo sistema de representação diz respeito à linguagem, possuindo Hall uma visão muito abrangente do conceito de linguagem, como se depreende do seguinte passo:
The writing system or the spoken system of a particular language are both obviously ‘languages’. But so are visual imagens whether produced by hand, mechanically, electronically, digitally or some other means, when they are used to express meaning. And so are other things which aren’t ‘linguistic’ in any ordinary sense: the ‘language’ of facial expression or of gesture, for example, or the ‘language’ of fashion, of clothes, or of traffic lights. Even music is a ‘language’. (4)
Os mapas conceptuais partilhados (aludidos atrás) têm de ser traduzidos para a linguagem comum, para que os conceitos abarcados por esses mapas possam ser correlacionados com palavras escritas, imagens visuais e sons falados, aos quais se pode fazer referência através de signos. Estes substituem ou representam os conceitos e as relações conceptuais estabelecidas entre si. Acresce que os signos se encontram organizados em linguagens, as quais permitem às pessoas traduzir os seus pensamentos – ou conceitos – para palavras, sons e imagens e, depois, usá-los para expressar significados e comunicar conceitos a outros.
Como se referiu, os indivíduos pertencentes à mesma cultura partilham mapas conceptuais semelhantes. Assim, essas pessoas devem igualmente partilhar o modo de interpretar os signos de uma linguagem, pois apenas de tal forma os significados poderão ser eficazmente intercambiados entre elas. Dever-se-á, contudo, considerar as seguintes questões: “how do we know which concept stands for which thing? Or which word effectively represents which concept? How do I know which sounds or images will carry, through language, the meaning of my concepts and what I want to say with them to you?”. (5) No caso de signos visuais, a resposta afigura-se relativamente simples, dado que a imagem de uma árvore se assemelha a uma árvore real. Porém, um signo visual continua a ser um signo, que possui significado e carece de interpretação, o que se torna mais claro caso se trate de uma caricatura ou de um desenho, pois algumas pessoas poderão perguntar-se se se encontram efectivamente na presença de uma imagem alusiva a uma árvore: “As the relationship between the sign and its referent becomes less clear-cut, the meaning begins to slip and slide away from us into uncertainty”. (Hall, 5) Contudo, a resposta às questões acima apresentadas complica-se mais com signos verbais e sonoros. Nestes casos, não existe qualquer relação entre a palavra, o som e a coisa a que se referem. Como exemplificou o autor, “[t]he letters T,R,E,E do not look anything like trees in nature, nor does the word ‘tree’ in English sound like ‘real’ trees (if indeed they make any sound at all!)”. (7) Assim, a relação estabelecida entre a palavra árvore, o som produzido quando se menciona a palavra árvore e uma árvore real afigura-se arbitrária, o que significa, como Hall afirmou, que “in principle any collection of letters or any sound in any order would do the trick equally well”. (7) A arbitrariedade desta relação torna-se mais clara se se pensar que em inglês se usam palavras e sons muito distintos dos utilizados em português para aludir ao mesmo conceito, nomeadamente o de árvore. Levanta-se, então, outra pergunta: “[H]ow do people who belong to the same culture, who share the same conceptual map and who speak or write the same language (English) know that the arbitrary combination of letters and sounds that makes up the word TREE will stand for or represent the concept ‘a large plant that grows in nature’?”. (7) A resposta a esta e a todas outras questões enunciadas prende-se com a construção e a cristalização do significado por meio de códigos, os quais estabelecem uma correlação de tal forma forte entre o mapa conceptual e o sistema linguístico que sempre que as pessoas pensam numa árvore, pensam também na palavra árvore. Portanto, os códigos cristalizam a relação estabelecida entre os conceitos e os signos, devendo a linguagem ser usada para transmitir determinadas ideias e os conceitos mencionados quando se ouve ou vê determinados signos. Ao cristalizarem arbitrariamente a relação estabelecida entre o mapa conceptual e a linguagem, os códigos permitem não só que os indivíduos se compreendam entre si, mas também traduzir os conceitos por linguagem e a linguagem por conceitos, o que, por sua vez, possibilita a eficaz comunicação do significado dentro da mesma cultura. Estes códigos resultam, ainda, de um conjunto de convenções sociais:
English or French or Hindi speakers have, over time, and without conscious decision or choice, come to an unwritten agreement, a sort of unwritten cultural covenant that, in their various languages, certain signs will stand for or represent certain concepts. This is what children learn (…). They learn the system and conventions of representation, the codes of their language and culture (…). They unconsciously internalize the codes which allow them to express certain concepts and ideas through their systems of representation – writing, speech, gesture, visualization, and so on – and to interpret ideas which are communicated to them using the same systems. (Hall 8)
Deste modo, o significado deriva também desses conjuntos de convenções, o que, por seu turno, indica que o significado não pode, de forma alguma, ser considerado imutável. Claro que o significado não sofre alterações constantemente, pois, se assim fosse, as pessoas não se conseguiriam entender, mas sofre alterações ao longo dos tempos, como se verifica quando certas palavras ou expressões caiem em desuso, enquanto outras adquirem uma nova proeminência. Mesmo quando as palavras ou expressões usadas não se alteram, a conotação ou as nuances que possuem mudam. Tal como Hall refere, “meaning does not inhere in things, in the world. It is constructed, produced”. (10)
Ao argumentar que o significado é construído, Hall está claramente a adoptar uma abordagem construcionista da representação. De acordo com esta perspectiva, não se deve confundir o mundo material, onde se encontram as pessoas e as coisas, com as práticas e os processos simbólicos através dos quais a representação, o significado e a linguagem operam. Ainda que aqueles que defendem esta abordagem não neguem a existência do mundo material, acreditam que não é o mundo material que atribui significado às coisas, mas sim o sistema de linguagem ou qualquer outro sistema que esteja a ser usado para representar os conceitos contidos no mapa conceptual. Os actores sociais usam os mapas conceptuais e os sistemas linguísticos para construir significado, para tornar o mundo significativo e para comunicar coisas sobre o mundo de um modo perceptível a outras pessoas. Contudo, Hall frisa que os signos podem obviamente possuir uma dimensão material, pois os sistemas representacionais dependem de sons emitidos com cordas vocais, imagens inscritas em papel, marcas deixadas com tinta em telas ou impulsos transmitidos electronicamente. Porém, o significado não depende do cariz material dos signos, mas sim da sua função simbólica. Um determinado som, uma certa imagem, uma marca ou um impulso substituem, simbolizam ou representam um conceito, funcionando, na linguagem, como signos que transmitem significado ou, como disse Hall, “signify”. (11)
Barker, Chris e Emma A. Jane. Cultural Studies: Theory and Practice. Sage, 2016; Du Gay, P. et al. Doing Cultural Studies: The Story of the Sony Walkman. Sage, 1997; Hall, Stuart. Representation. Sage, 2013. [1997].
[1] O círculo da cultura constitui um modelo, desenvolvido por Hall e pelos seus colegas, no qual se encontram diferentes momentos, nomeadamente a representação, a identidade, a produção, o consumo e a regulamentação. Neste modelo, o significado cultural encontra-se no conjunto de todos os diferentes níveis do circuito. Cada um dos momentos envolve a produção de um determinado significado, o qual se encontra articulado com o momento seguinte. Contudo, o nível anterior não determina os significados adoptados ou produzidos no momento seguinte. Cf. Du Gay et al., 1997, pasim; Barker e Jane, 2016, 69-70.
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