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Termo em evidência a partir da crise do romance em finais do século XIX. Opõe-se a romance fechado pela glorificação não necessariamente explícita da improvisação e da surpresa na narrativa romanesca. A distinção entre romance fechado e aberto não é perceptível no período de apogeu (a partir do início do século XIX) desta forma de expressão literária típica dos tempos modernos. A partir da hegemonia do simbolismo, por volta da década de 80 do século XIX, assistiu-se, no panorama das principais literaturas europeias, à crise do modelo tradicional de romance (também constituindo o romance fechado). Esta crise abre-se em duas frentes: uma, francesa, proveniente da crítica que os discípulos de Zola (defensor e teorizador do naturalismo) empreenderam ao romance naturalista, por volta de 1887, acusando-o de falta de seriedade nos seus propósitos, sobretudo os referentes à documentação e ao conhecimento científico. Deste modo, o romance deixa de constituir um “inquérito” sobre a natureza e o homem e passa a representar as preocupações intelectuais de teor abstractizante e a expressão pessoal do autor. A geração de 90 é anti-naturalista e o romance torna-se psicológico com Bourget; desbrava as expectativas intelectuais com Dujardin, com Hennequin. A “abertura” do romance é, no entanto, resultante da técnica narrativa e da semântica literária, não sendo suficiente para a explicar a modificação das preocupações do autor e respectivas temáticas no romance. Exemplo flagrante desta questão é Paul Bourget que, apesar de ter renovado o romance francês a nível da semântica, é defensor acérrimo do romance fechado.

A guerra contra o romance tradicional, fechado, realista ou naturalista é também declarada na frente anglo-saxónica. A rejeição da omnisciência narrativa por parte de Henry James significa uma desvalorização do ponto de vista neutral e objectivo aí implícito, que, para este autor, é impeditivo da apreensão do sentido da realidade. Este sentido provém da impossibilidade em delimitar a experiência humana, sendo esta demasiado vasta e complexa. Trata-se, então, de um realismo subjectivo, que acaba por contribuir para a “abertura” do romance. O romance abandona, aos poucos, o modelo tradicional, que consiste numa diegese demarcada com princípio, meio e fim configurada, no enunciado narrativo, pela omnisciência narrativa. O período simbolista contribui para a transformação do romance devido ao alheamento da quotidianidade e da historicidade na representação literária e também devido à predominância de uma sensibilidade esteticista-decadentista. O romance aproxima-se, assim, da poesia, desvalorizando a diegese. São conhecidas as declarações de Paul Valéry no sentido de desprestigiar o romance, como, por exemplo, a declaração da sua impossibilidade em escrever uma frase como “a marquesa saiu às cinco horas”. A sua obra, La soirée avec Monsieur Teste (1896), considerada por muitos como um anti-romance, demonstra claramente que o protagonista é uma entidade textual concebida como um intelecto e uma inteligência livres da vida vulgarmente vivida. Na literatura portuguesa sobressai um exemplo de um romance inovador da autoria de um escritor da geração de 90, Raúl Brandão. Trata-se de Húmus (1917), bem exemplificativo de um romance aberto devido ao facto de os episódios se sucederem sem configurarem uma acção única. A estrutura romanesca aberta torna-se comum nos romances modernistas. O papel da consciência é sobrevalorizado, tornando a experiência individual irredutível. Onde o romance fechado generaliza, o aberto individualiza e relativiza. A “abertura” de cariz modernista quer destruir a representação da realidade implícita no romance realista do século XIX. É o que fazem com sucesso Virginia Woolf, James Joyce, Marcel Proust e José Régio com romances ditos psicológicos, respectivamente O Quarto de Jacob, Ulisses, Á Procura do Tempo Perdido, Jogo da Cabra Cega.

O romance vai-se tornando uma forma literária extremamente flexível e lugar discursivo de vários tipos de registo de linguagem, que capta um mundo moderno de mutações. O romance moderno ou, segundo outros, pós-modernista do pós-guerra (depois de 1945) concretiza a “abertura” através da suspensão do sentido do mundo. Exprime uma negatividade, que advém da tradição modernista e que se traduz pela recusa da narração de tipo realista. Tal recusa representa uma secundarização do compromisso literário presente no romance das décadas de 30 e de 40. A negatividade, quando comparada com a implícita no modernismo, é, agora, mais radical na medida em que não é escrita em nome de uma consciência individual subjectivada (opondo-se à objectivação do mundo circundante) mas é apenas a vontade de representar a superfície do mundo sem assumir qualquer tipo de compromisso com qualquer modo conhecido de organizar a realidade. Trata-se de um questionar, não sendo capaz de dar respostas. Por vezes, a narrativa surge como fortemente narcísica, dissociada da realidade vigente (comum, vulgar). A percepção da experiência directa do mundo acaba também por significar a apreensão subjectiva do mundo, sem que tal subjectivação seja, no entanto, coincidente com a individuação do narrador ou do ou da protagonista. A subjectividade aqui implicada é da ordem de uma perda, a da certeza da representação visto que as estruturas são todas múltiplas. O que se perdeu foi sobretudo o sentido de unicidade do mundo por excesso de significações. Umberto Eco contribuiu para uma poética da obra aberta, em Obra Aberta (1962), em que desenvolve a noção de que a arte produz formas autónomas do mundo como campo de possibilidades. A arte moderna não está já preocupada em conhecer o mundo (tarefa desempenhada por outros domínios) mas em produzi-lo. No domínio da narrativa contemporânea, Eco analisa a influência da linguagem da televisão através do fenómeno da transmissão directa de acontecimentos. A narração, ao registar a sucessão bruta dos factos naturais, orienta-se, uma vez mais, para a dissolução do enredo, levando ao abandono da causalidade tradicional, responsável pelo “fechamento” da narrativa.

O romance aberto é característico de uma sociedade transbordante em que o sentir torna-se o já sentido, que adquire uma dimensão anónima, impessoal e socializada. A “abertura” do romance provém do facto de que esta forma literária é já raramente portadora de conhecimento e de informação que, outrora, eram veiculados pelo romance tradicional. Hoje em dia, o romance, como toda a literatura, encontra-se remetido para a esfera de uma autonomia estética. No panorama do romance moderno, produzido no século XX, é preponderante a estrutura aberta. Não quer isto dizer que não haja romances fechados de valor literário indiscutível neste século como, por exemplo, Uma Abelha na Chuva (1953) de Carlos de Oliveira e tantos outros. Ou que a “abertura” do romance não se tenha tornado numa convenção moderna, tão estéril como outras de outros períodos literários. De qualquer maneira, o romance aberto tem também cultores em épocas anteriores. Vários estudiosos consideram que o chamado romance de formação, aquele que narra o desenvolvimento do protagonista, tendo em conta a aprendizagem humana e social dele, tem frequentemente um final em aberto na medida em que a intriga é construída pela acumulação de episódios, que acabam por traduzir as possibilidades de vida do héroi em formação. São exemplos Wilhelm Meister de Goethe, Lucien Leuwen de Stendhal, A Montanha Mágica de Thomas Mann.

{bibliografia}

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