Narra a lenda que Constantino, o Grande, imperador romano, no poder de 306 a 337, teria visto em sonhos, às vésperas da batalha decisiva contra Magêncio para o controle do império de Roma, uma cruz no céu e ouvido alguém pronunciar esta frase: “In hoc signo vinces” (que traduzo: “Com este signo, vencerás”). Ao despertar, o Pontifex maximus ordenou a seus soldados que gravassem, nos seus escudos, aquele signo. Naquele mesmo dia de 312, o imperador sonhador, que , apenas no leito de morte, se tornaria cristão, ganhou a batalha da Ponte Mílvia. Outra versão dá conta de que a visão ocorrera na Gália, quando Constantino estava a caminho de Roma, antes da batalha contra Magêncio. Já uma terceira versão da mesma lenda narra que a visão miraculosa aconteceu para todos os soldados de Constantino, quando os dois exércitos rivais se defrontaram na ponte Mílvia. Nas três versões do milagre, está sempre presente a palavra “signo”, ou o signo “signo”, declinada no ablativo singular latino do substantivo latino neutro signum/signi. Ainda no repertório do signo gravado, recordo que Mensagem, de 1934, único livro de Fernando Pessoa (1888-1935), publicado em vida do Poeta, a que foi atribuído, no concurso “Antero de Quental”, promovido pelo Secretariado de Propaganda Nacional, um decepcionante prêmio de “segunda categoria” (o prêmio de “primeira categoria”, recebeu-o o livro Romaria, de Vasco Reis: quem saberá algo do poemário galardoado?)), inaugura-se com uma epígrafe em latim: “Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum”, que, em vernáculo, verto para : “Bendito seja o Senhor nosso Deus, que nos deu o signo”. Embora a insígnia inaugural, conjugando, no acusativo do singular, o substantivo latino, não tenha levado à vitória quem dela se apropriou, terá, todavia, inaugurado a trajetória literária inexaurível de alguém que se, em vida, não foi considerado o “Supra-Camões”, goza, per omnia saecula saeculorum, de uma fortuna crítica muitíssimo mais vasta do que o império romano, definitivamente mais significativa do que todo o império luso, pois, entre o céu e a terra, entre o sonho e o livro, entre a batalha e a poesia, entre os signos e as coisas, há muito mais signos do que possa imaginar nossa, nem tão vã, semiologia. Destarte, é o signo: surpreendente, ambíguo, plurívoco, imperial, poético. Em ambos os enunciados, tanto na frase esotérica de Mensagem quanto no enunciado cristão do imperador romano, fulgura o significante “signo”, chave, portanto de qualquer leitura das “coisas, que são a mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo”, como finaliza Fernando Pessoa seu texto de pórtico.
Tão complexa revela-se a noção de signo que o célebre semiólogo italiano Umberto Eco chega a afirmar, com doses de ironia, como é de seu feitio pós-moderno, que “um dos momentos de crise da semiótica contemporânea foi justamente a crise da noção de signo. Afirma-se: ‘o signo não existe’ “. No entanto, ainda segundo o autor de Lector in fabula (1979), não podemos viver fora do círculo dos signos, dado que “encontramo-nos na situação de dever evitar o que Jonathan Swift imaginou para os habitantes da ilha de Laputa, que andavam com um saco contendo os objetos que precisavam nomear. E assim, quando tinham de falar de uma maçã, de uma pena ou de uma caixa, tiravam o objeto do saco. À parte o fato de que estavam, portanto, impossibilitados de falar de elefantes ou de hipopótamos por motivos práticos, veremos mais adiante que também esses personagens estavam, no fundo, usando coisas presentes para indicar coisas ausentes, porque, evidentemente, a maçã que tiravam do saco não devia representar somente aquela maçã, mas todas as maçãs possíveis. E novamente, portanto, havia uma presença que remetia a algo que não estava presente”. Misturando lenda e reflexão semiológica, o professor da Universidade de Bolonha aponta a natureza dupla do signo, de qualquer signo, seja ele verbal, imagético, sonoro, táctil, gustativo…Com efeito, fica claro, em qualquer abordagem sobre o signo, que este é, por sua própria natureza cultural , duplo, visto que se estrutura como presença de algo ausente e como ausência daquilo a que remete. Segundo o semiólogo francês Roland Barthes (1915-1980), o “termo signo, presente em vocabulários bem diferentes (da Teologia à Medicina) e de história muito rica (do Evangelho à Cibernética), é por isto mesmo bastante ambíguo; além disto (…), é preciso uma palavrinha a respeito do campo nocional onde ele ocupa um lugar, aliás flutuante (…). Signo , na verdade, insere-se numa série de termos afins e dessemelhantes, ao sabor dos autores: sinal, índice, ícone, alegoria são os principais rivais do signo”. Concomitantemente e sem se conhecerem (confirmando o que Carl Jung designa, belamente, como “sincronicidade”), o norte-americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) e o suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913) conceberam, respectivamente, uma semiótica e uma semiologia, em que a categoria do signo funciona como básica. No entanto, o lógico estadunidense e o lingüista genebrino definem, diferentemente, o signo, até por se basearem, para a constituição da nova ciência, por ambos definida como “ciência dos signos”, em heurísticas diversas: Peirce parte da lógica, ao passo que Saussure fundamenta-se na lingüística. Outra marca da diferenciação de perspectiva, semiótica e semiológica, reside no fato de se considerarem como signos não apenas entidades lingüísticas como signos não-verbais. Ao fim e ao cabo, tudo é signo e como falar do signo a não ser por outro signo? Em todas as suas linguagens, o ser humano não escapará de uma instigante tautologia.
De acordo com Peirce, signo é algo que substitui algo, para alguém, em certa medida e para certos efeitos; define-se como “qualquer coisa que conduz alguma outra coisa (seu interpretante) a referir-se a um objeto ao qual ela mesma se refere (seu objeto), de modo idêntico, transformando-se o interpretante, por sua vez, em signo, e assim sucessivamente, ad infinitum”. É de se notar que o termo “interpretante” refere, na nomenclatura semiótica peirceana, o signo equivalente que se cria na mente da pessoa a quem o signo se dirige. A cadeia infinita de signos revela, então, o traço que permite caracterizar o ser humano como um incansável produtor de signos, presentes em todas as civilizações e culturas, até porque, ocorrendo no seio de um grupo social, o signo é um fato culturalizado. Não terá fim a capacidade semiótica do homo significans. Por conseguinte, o significado de um signo é um outro signo.
Recortando o signo como signo lingüístico, Saussure pondera que “le signe linguistique unit non une chose et un nom, mais un concept et une image acoustique. Cette dernière n’est pas le son matériel, chose purement physique, mais l’empreinte psychique de ce son, la représentation que nous en donne le témoignage de nos sens; elle est sensorielle, et s’il nous arrive de l’appeler ‘matérielle’, c’est seulement dans ce sens et par opposition à l’autre terme de l’association, le concept, généralement plus abstrait”. Nessa linha de pensamento, o autor do Cours de linguistique générale (1915) nomeia “significante” a “imagem acústica” do signo e “significado” o “conceito”. Com seu talento taxonômico, sempre articulando uma tríade, ao contrário da lingüística saussureana, que privilegia o duplo (langue/parole; forma/conteúdo, sincronicidade/diacronicidade…), o filósofo-semioticista de The collected papers (nome original da tradução brasileira Semiótica, efetuada por José Teixeira Coelho Neto ) distingue três classes de signos: “um signo é um ícone, um índice ou um símbolo. Um ícone é um signo que possuiria o caráter que o torna significante, mesmo que seu objeto não existisse, tal como um risco feito a lápis, representando uma linha geométrica. Um índice é um signo que de repente perderia seu caráter que o torna um signo se seu objeto fosse removido, mas que não perderia esse caráter se não houvesse interpretante. Tal é, por exemplo, o caso de um molde com um buraco de bala como signo de um tiro, pois sem o tiro não teria havido buraco; porém, nele existe um buraco, quer tenha alguém ou não a capacidade de atribuí-lo a um tiro. Um símbolo é um signo que perderia o caráter que o torna um signo se não houvesse um interpretante. Tal é o caso de qualquer elocução de discurso que significa aquilo que significa apenas por força de compreender-se que possui essa significação”. Ainda numa relação triádica, Peirce, considerando os signos como elementos de sistemas mais ou menos elaborados de significação e de comunicação, assim dimensiona os signos : numa perspectiva sintática, em que se analisam as relações formais que mantêm entre si; numa perspectiva semântica, privilegia-se a relação entre o signo e o seu designatum; já, numa perspectiva pragmática, equaciona-se a relação entre os signos e os seus utentes.
Como exemplo da aplicação da semiologia de cariz saussereano, podemos ler o poeta contemporâneo brasileiro Arnaldo Antunes, ex-integrante da banda de rock “Titãs”, que oferece, no poema “Nome não”, uma emblemática lição de coisas semiológicas, onde não se podem fundir palavras e coisas:
“os nomes dos bichos não são os bichos/ os bichos são:/ macaco gato peixe cavalo/ vaca elefante baleia galinha // os nomes das cores não são as cores/ as cores são: / preto azul amarelo verde vermelho marrom // os nomes dos sons não são os sons/ os sons são// só os bichos são bichos/ só as cores são cores/ só os sons são/ som são, som são/ nome não, nome não// nome não, nome não// os nomes dos bichos não são os bichos// os bichos são:// plástico pedra pelúcia ferro/ madeira cristal porcelana papel “
Por seu turno, o extraordinário poeta modernista brasileiro Jorge de Lima (1893-1953) trava, na clave da intertextualidade semiológica, no “Canto X”, de seu Inventário de Orfeu (1952), um diálogo poeticamente amoroso com o decadentista francês Stéphane Mallarmé (1842-1898), que buscava uma rosa que não estava em nenhum buquê, vale dizer, um referente a que signo algum reenvia : “Não a vaga palavra, corrutela/ vã, corrompida folha degradada, / de raiz deformada, abaixo dela,/ e de vermes, além, sobre a ramada; // mas, a que é a própria flor arrebatada/ pela fúria dos ventos; mas aquela/ cujo pólen procura a chama iriada/ – flor de fogo a queimar-se como vela:// mas aquela dos sopros afligida,/ mas ardente, mas lava, mas inferno,/ mas céu, mas sempre extremos. Esta sim,// está é que é a flor das flores mais ardida,/ esta veio do início para o eterno,/ para a árvore da vida que há em mim”. Nesse belo soneto, a cascata da adversativa “mas” produz a semiose do signo que não alcança a coisa; mas é preciso ler os significantes que levam a uma frondosa e fecunda árvore. Se, segundo o filósofo francês Merleau-Ponty (1908-1961), a gênese do sentido jamais se conclui, a semiologia ajuda a quebrar-se o espartilho da linguagem, que é, saussureanamente falando, um sistema de signos. Este poema do imenso poeta português Eugénio de Andrade celebra, lindamente, a força e a fraqueza das palavras, que são signos de nossa sina, quer sejamos ou não literatos, pois somos todos leitores e fazedores de signos, sobretudo de signos lingüísticos: “São, como um cristal, /as palavras./ Algumas, um punhal,/ um incêndio. / Outras,/ orvalho apenas”.
“A Literatura ensina-se?”, pergunta-nos, e a si mesmo, o Professor Carlos Ceia. Creio que a investigação do signo seja um horizonte seminal para se ensinar e aprender a Literatura, metáfora e metonímia de toda linguagem, a fortiori da linguagem da arte. Se, citando-se Saussure, todo signo é arbitrário, “todo o texto literário sujeito a uma leitura crítica é suposto ser anónimo. Este adjectivo denota também aquilo que é obscuro, o que serve também objecto da textualidade. Se partirmos do pressuposto de anonimato do texto, devemos começar por nos consciencializar de que o objecto que temos perante nós possui os seus segredos, o seu mistério próprio que nos cabe não menos desvelar como continuar”, responde o professor da Universidade Nova de Lisboa. Desde sua etimologia, signo é senha, sina, sino, sinal, desenho, desígnio.
Fernando Pessoa, Obra poética (1983), p. 3. Umberto Eco. Conceito de texto (1984), p. 4, p. 6-7. Roland Barthes, Elementos de semiologia (1964), p. 39. Charles S. Peirce, Semiótica (2000), p. 74. Ferdinand de Saussure, Cours de linguistique générale 19830, P. 98, 99. Carlos Ceia, A Literatura ensina-se? Estudos de Teoria Literária (1999), p. 76. Décio Pignatari, Informação. Linguagem. Comunicação (1977), p. 25.
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