Termo que designa, no contexto hermenêutico, o modo de funcionamento da linguagem que ,por não ser puramente unívoca, suscita uma necessidade de interpretação. São as expressões de duplo sentido, e não a linguagem unívoca, o campo privilegiado da hermenêutica. O símbolo refere a dupla intencionalidade da linguagem, lembra-nos P. Ricoeur( CI, 285) – – o representante da hermenêutica contemporânea que maior atenção dedica à problemática das relações entre o símbolo e a interpretação, chegando a definir um por meio do outro, o campo do símbolo e o da interpretação(DI, 18).É, de facto, pela interpretação que o símbolo se inscreve na problemática da linguagem .O símbolo é sempre linguagem, diz-nos o autor, não existe de modo nenhum, antes do homem que fala, mesmo que o seu poder “ esteja sempre enraizado em algo de mais profundo”. E não existe símbolo sem interpretação. Isto é, o simbolismo só actua quando a sua estrutura é interpretada(DI, 27-28).Com efeito, só numa interpretação é que surgem os dois níveis de significação da intencionalidade simbólica, pois é o próprio reconhecimento dos limites do sentido literal que nos permite perceber a outra dimensão do sentido simbólico.
Enquanto expressão linguística, qualquer símbolo é um signo e, neste sentido, tal como todo o signo, visa algo para além de si mesmo e vale por isso. No entanto, nem todo o signo é um símbolo, porque, ao contrário dos símbolos técnicos perfeitamente transparentes que apenas dizem o que querem dizer com o significado , os signos simbólicos são opacos .Neles um outro sentido se dá e simultaneamente esconde no sentido patente ou literal. Os símbolos evocam uma realidade que não pode ser nem designada nem reconstruída por detrás deles . O seu duplo sentido suscita sempre ambiguidadade. Estão constituídos de tal modo que a sua significação secundária apenas se alcança mediante as ruínas da significação primária. Impõe-se, então, uma pergunta: significará sempre o duplo sentido simbólico uma revelação ou também uma dissimulação? Existem, com efeito, usos absolutamente incompatíveis do sentido simbólico. Necessário é, pois ,definir o seu sentido hermenêutico, pensa Ricoeur, situando-o , antes de mais, entre outras definições e distinguindo-o claramente da concepção do símbolo própria da linguagem matemática.
Para Ricoeur, existe uma concepção demasiado lata do símbolo, a de E. Cassirer, que entende a função simbólica como a função geral de mediação (DI, 19) por meio da qual a consciência constrói todos os seus universos de percepção e de discurso. Nesta acepção, a simbólica designa o denominador comum de todas as maneiras de objectivar a realidade(DI, 20), isto é, refere a mediação universal que o espírito realiza entre o homem e o real. Ora, segundo Ricoeur , tal concepção ao unificar todas as funções de mediação sob o tema do simbólico dá a este conceito a mesma extensão que os conceitos de realidade e de cultura.. Perde-se, com isto, a distinção fundamental do símbolo: o âmbito das expressões multívocas. Com efeito, se nomeamos a função significante, no seu conjunto, como simbólica, não temos , diz-nos Ricoeur, qualquer palavra para designar esse grupo de signos, que pela sua textura intencional implicam uma leitura de um outro sentido no primeiro sentido, isto é, o imediato e literal( 21).
Querer dizer algo de diferente daquilo que se diz, eis o que, segundo o autor, constitui a função simbólica da linguagem, que para além da dupla dualidade do signo – – de estrutura e de significação; do significado e da coisa – – lhe acrescenta acrescenta uma outra : a do sentido ao sentido. Todo o símbolo pressupõe, de facto, signos que têm já um sentido primário, literal, manifesto e que por meio deste mesmo sentido remetem para um outro. Mas não é só a função apresentativa do signo que o símbolo recolhe e manifesta. É, também, a inscrição da relação comunicacional na própria raíz do sentido que nele se exprime , dado que ele é em si mesmo uma relação do sentido ao sentido – – duplo ou múltiplo sentido – – que intercepta toda a referência puramente literal da linguagem e promove o trabalho da interpretação. Símbolo, intersubjectividade na referência e interpretação são assim conceitos correlativos. A simbólica deve pois ser analisada como o meio de expressão linguística de uma realidade extralinguística. Nela nomeia-se o inominável ,algo de profundo, forte e eficaz ,que querendo ser dito, escapa a toda a nomeação, uma relação entre força e forma que nos faz pensar no estranho sentido da dimensão não puramente semântica da linguagem . Quem compreende o símbolo, compreende a realidade e a linguagem mas é uma linguagem diferente da habitual que apreende, em e por meio dos limites da linguagem -argumento.
A necessidade de uma “epistemologia do símbolo” impõe-se, assim, no âmbito hermenêutico Segundo Ricoeur, há que enumerar as diferentes zonas em que habitualmente o símbolo aflora , em ordem a poder dilucidar a estrutura comum de todas as manifestações deste tipo de pensamento. O símbolo aparece , em primeiro lugar, no âmbito da fenomenologia da religião , ligado aos ritos e aos mitos, enquanto linguagem do sagrado. Aqui, a expressividade do mundo chega , de facto, à linguagem por meio das expressões de duplo sentido. O mesmo acontece na segunda zona emergência do símbolo , a onírica. O sonho é justamente um testemunho do facto de querermos dizer algo de diferente de aquilo que dizemos. E apesar de não coincidir com a simbólica mítica, lembra-nos Ricoeur, o sonho partilha com ela a mesma estrutura do duplo sentido: em si mesmo é-nos inacessível .Só a narrativa do acordar e o trabalho da interpretação nele fazem sentido. Também na imaginação poética o símbolo na sua textura do dizer e simultaneamente esconder é a forma verdadeira da linguagem. Assim sendo, e porque existe na nossa linguagem todo um conjunto de manifestações dispersas que têm em comum a estrutura semântica do duplo sentido, o autor propõe-nos a seguinte definição: “Chamo símbolo a toda a estrutura de significação na qual um sentido directo, primário, literal, designa também um outro sentido indirecto, secundário, figurado, que apenas pode ser apreendido através do primeiro”(DI, 25). Segundo Ricoeur, o que singulariza o símbolo é justamente o facto de ele ser um signo, que tem, enquanto tal, um sentido primário, literal ou manifesto – – o sentido convencional – – e ainda o de remeter por meio deste mesmo sentido e segundo uma relação de analogia, impossível de objectivar, para um outro sentido latente ou não manifesto. Esta relação de analogia entre o sentido primeiro e o sentido segundo deve ser explicitada , sob pena de se cair numa definição demasiado estreita do símbolo. Com efeito, aqui, a analogia não é uma relação que possa ser objectivada , pois o que caracteriza o símbolo é o facto de nele o próprio movimento do sentido primário assimilar intelectualmente o intérprete ao simbolizado, sem que este possa dominar intelectualmente a similitude(DI, 26). E este movimento pode ainda remeter o intérprete para uma revelação ou para uma possível distorção. Daí que o autor restrinja deliberadamente a noção de símbolo “ às expressões de duplo-sentido ou múltiplo sentido, cuja textura semântica é correlativa do trabalho de interpretação, que explicita o sentido segundo do símbolo”(DI, 22).
A ligação entre o símbolo e a interpretação é, segundo Ricoeur, a questão fundamental suscitada pela linguagem- símbolo, aquela que permite dar consistência linguística à questão do duplo sentido, mostrando como ele não é um contrasenso, mas faz parte da circunscrição linguística conseguindo elevar o sentimento inominável à articulação do sentido. E o grande problema levantado pelo símbolo é , segundo Ricoeur, o do tipo de reflexão que ele suscita e o de como é que esta se insere no âmbito mais vasto da reflexão filosófica (DI, 48 ss). A chave desta questão reside, segundo o autor, na relação entre Hermenêutica e reflexão ou, por outras palavras, na própria análise da necessidade que tem toda a reflexão de se tornar hermenêutica.
O fio condutor é aqui o seguinte: se a filosofia é reflexão, esta não pode hoje basear-se mais na evidência imediata do Cogito. De facto, é a própria apodicidade, outrora indiscutível, do eu penso que hoje, nomeadamente, depois da suspeita de Freud, Nietzsche e Marx e das filosofias do corpo está em questão. Não existe já qualquer coincidência entre o eu sou e eu penso .Impôs-se de modo radical a dúvida quanto ao que eu sou. Assim sendo, a reflexão não pode conceber-se mais em termos tradicionais. Deve, hoje tornar-se hermenêutica, isto é, reencontrar-se por meio do deciframento dos documentos ou manifestações da sua vida. É esta a sua condição.
Concebendo, assim, a reflexão como a apropriação do esforço humano para existir e do seu desejo de ser, através das obras que dão testemunho deste esforço e deste desejo (CI, 21), P. Ricoeur não só alarga o âmbito da experiência filosófica – – a reflexão não se limita já a uma simples crítica do conhecimento ou do juízo moral; reflecte sobre o acto de existir a partir das suas manifestações – – como consegue dar ao símbolo o estatuto de um novo a priori: o do pensamento concreto, aquele que procura partir da vida e do modo sempre simbólico e hermenêutico como ela se revela. A verdadeira natureza da reflexão, que não queira hoje cair na pura abstracção é de ordem simbólica e hermenêutica, isto é, exige uma interpretação de todos os símbolos, que espalhados pelo mundo , testemunham o desejo e o esforço para existir que subjaz a todo o pensar.
Com esta sua reflexão sobre o símbolo, o objectivo de Ricoeur é claro: romper o âmbito encantado da filosofia da reflexão e da consciência de si, isto é, repensar as condições do próprio pensar filosófico. É a condição hermenêutica, linguístico-encarnada e por isso mesmo intersubjectiva do pensar que a mistura originária de símbolo e interpretação oferece . Em suma, uma transformação radical do próprio programa da filosofia reflexiva, dado que justificar o recurso ao simbolismo em filosofia é justificar, em primeiro lugar, a contingência cultural, a linguagem equívoca e a guerra das hermenêuticas. É, enfim, assumir os conflitos que tecem a condição corpórea ou encarnada do existir que pensa, penetrar no conflito das interpretações que ele origina. O resultado é a concretização e o alargamento do âmbito da reflexão filosófica que se abre finalmente à Poética , às ciências da linguagem, à expressividade religiosa e a todo o conjunto de disciplinas que exploram a dimensão não semântica ou ligada do símbolo.
P.RICOEUR, Philosophie de la Volonté, II. Finitude et Culpabilité, II. La Symbolique du Mal, Paris, Aubier, 1960; ID., De L´Interprétation .Essai sur Freud, Paris, Seuil, 1965; ID., Le Conflit des Interprétations. Essais d‘Herméneutique, I ,Paris, Seuil, 1969; ID., Teoria da Interpretação,trad. Lisboa, ed. 70, 1987;H.,OTT, “ L´expression symbolique et la réalité de l´inexprimable”, in E. CASTELLI, ( ed), Il Sacro. Studi e Ricerche, in Archivio di Filosofia,Padova, Cedam, 1974, 351-368; M.,RENAUD,.” Fenomenologia e Hermenêutica. O projecto filosófico de P. Ricoeur” , in Revista Portuguesa de Filosofia,Braga, XLI ( 1985), 1-38; C., TAYLOR, “Force et sens, les deux dimensions irrédutibles d´une science de l´homme” in G. B. MADISON( ed), Sens et Existence. En Hommage à Paul Ricoeur, Paris, Seuil, 1975, 124-137; X.,TILLIETTE, “ Réflexion et symbole: L´entreprise philosophique de P.Ricoeur”, in Archives de Philosophie, XXIV,1961, 574- 588.D. Fr., Vansina, “ Esquisse, orientation et signification de l´entreprise philosophique de Paul Ricoeur ( I-II) “ in Revue de Métaphysique et de Morale, 69, (1964), nº2 , 179- 108; nº3, juillet-septembre, 305-321; T. CALVO MARTÍNEZ, R. ÁVILA CRESPO (ed) P.Ricoeur, Los Caminos de la Interpretacíon.Symposium Internacional sobre el Pensamiento Filosófico de Paul Ricoeur, Barcelona, Anthropos, 1991.
Comentários recentes