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Evocando a faculdade potenciadora do imaginário e da fantasia, o sonho apresenta-se como um processo psico-fisiológico em que uma sequência de imagens e vivências, que ocorrem durante o sono, se articulam numa estrutura de associações figurativas, assumindo pois a forma de uma linguagem simbólica. Enquanto linguagem simbólica, não há uma associação directa entre os elementos desta estrutura e seus significados, ou seja, as imagens presentes e concretas remetem para imagens ausentes e abstractas. Como tal, assemelha-se a uma alegoria em que a linguagem imagética se faz por conteúdos simbólicos (manifestos), cujo sentido profundo (latente) é passível de ser descodificado.

Já Freud, consciente da significação oculta das imagens do subconsciente, havia distinguido duas funções inerentes ao processo onírico: a identificação e displacement (deslocação ou transferência) – que se assemelham à metáfora e à metonímia. Freud considerou o sonho como expressão do subconsciente, i.e., uma projecção da interioridade para a exterioridade, que manifesta desejos reprimidos os quais, segundo Freud, têm uma função retrospectiva. Assim, rejeitou a visão profética da Antiguidade e da Idade Média. No entanto, Carl Gustav Jung, atribuiu ao sonho uma função prospectiva.

Embora as perspectivas psicológicas e filosóficas nem sempre tenham sido consensuais e tenham sofrido alterações e adaptações perante as ideologias e o pensamento vigente em cada período da história, assistiu-se sempre a uma tentativa de compreender e interpretar o processo onírico, estabelecendo a sua importância e a sua especificidade.

E, sendo o sonho utilizado como um artifício ou recurso no texto literário, sendo ele próprio uma construção narrativa que se encaixa dentro de uma outra narrativa (o texto literário), tem-se procurado aplicar as perspectivas psicológicas e filosóficas directamente e de psicanalisar a literatura. Desde a publicação de Die Traumdeutung (A Interpretação dos Sonhos) de Freud em 1900 a psicologia moderna tem exercido uma profunda influência na crítica literária.

Sendo o sonho universal no tempo e no espaço, encontramos já especulações filosóficas e referências às experiências oníricas em vários textos antigos: Atharaveda, documento com origem na Índia datado do século V A.C., Chester Beatty Papyrus da XII Dinastia Egípcia (1991 – 1786 A.C.); De somno et vigilia e De somnis e De divinatione per somnum de Aristóteles, Odisseia de Homero, entre outros. A própria Bíblia contém frequentes registos soniais como a interpretação do sonho do Faraó que sonha com sete vacas gordas e sete vacas magras. José explica este sonho como sendo uma previsão de sete anos de fartura seguidos de sete anos de fome.

Na Antiguidade, o sonho era considerado um espaço de contacto com o sobrenatural e com os deuses que aconselhavam e orientavam o homem, revelando acontecimentos futuros. As profecias envoltas em ambiguidade e aparentemente desprovidas de sentido eram decifradas por onirocritas e oniromantes que interpretavam os sonhos de faraós, chefes de estado ou de heróis.

Influenciada pela tradição antiga e pelos textos bíblicos, surgiu na Idade Média uma literatura visionária em que o sonho geralmente assumia a forma de uma alegoria (alegoria de sonho ou dream allegory), porque envolvia conflitos morais e espirituais. Alguns exemplos conhecidos de alegoria do sonho incluem: Le Roman de la Rose (c.1227), Divina Comédia de Dante, Piers Plowman atribuído a Langland, The Book of the Duchess de Chaucer. Embora a alegoria de sonho tenha sido popular sobretudo na época medieval, é possível encontrarmos ainda alguns exemplos em épocas posteriores: The Piligrim’s Progress de John Bunyan (1678), The Fall of the Hyperion (1819) de John Keats, Alice’s Adventures in Wonderland (1865) de Lewis Caroll e Finnegans Wake (1939) de James Joyce.

Rejeitando as experiências oníricas ligadas a entidades demoníacas e ao mundo dos mortos, os textos medievais deram continuidade à interpretação dos sonhos e das visões como uma manifestação divina, um diálogo com Deus em que a Verdade e a Sabedoria são reveladas. Assim, a elite de sonhadores da Antiguidade foi substituída por santos, mártires e ermitas ¾ apenas estes eram considerados sonhadores verdadeiros que, devido às suas virtudes e condutas, se aproximam da esfera divina. Paralelamente ao sonho surgiu a experiência visionária que segundo Alberto Magno (1200-1280) é o grau mais elevado da classificação dos sonhos. A experiência visionária, que ocorre em estado de vigília ou de êxtase, implica um processo de purificação que geralmente se realiza através de viagens extraordinárias a lugares transcendentes, onde se acede ao conhecimento e ao contacto divino. O sujeito liberta-se do seu corpo e dos seus sentidos, elevando-se em espírito às esferas do sagrado – ao Paraíso. Destas viagens poderá resultar a divinização do sujeito, como se comprova em A Vida e Milagre da Bemaventurada Virgem Sancta Catherina de Sena, da Ordem dos Pregadores, tirada da sua principal estorea. O carácter profético das visões predomina nas viagens em que primeiro se assiste à descida ao inferno por onde começará a viagem iniciática e só depois a elevação ao mundo celestial. Só assim sendo possível a redenção do sujeito que terá a missão de transmitir aos outros tudo aquilo que lhe foi revelado. Este tipo de experiência visionária pode ser incluída na literatura apocalíptica, da qual faz parte A Visão de Túndalo.

Durante a Idade Média privilegiou-se as perspectivas de teólogos e filósofos em concordância com as teorias neoplatónicas em que o sonho é classificado tendo em conta etapas intermédias entre o mundano e o revelador . O último grau mais elevado e verdadeiro do sonho teria sempre um carácter divino. Contudo, a teoria aristotélica, não reconheceu o carácter divino e profético dos sonhos; pois, segundo Aristóteles, os sonhos tinham origem em processos somáticos e psicológicos, podendo ser influenciados pelos nossas acções e pensamentos – parecia antever já aquilo que seria confirmado mais tarde. A negação do sagrado era sentido como um desafio à ideologia teocêntrica vigente neste período. Como tal, o pensamento de Aristóteles, não deixando de influenciar a interpretação da experiência onírica durante os séculos XIII e XIV, foi adaptado à ideologia cristã da época. Boosco Deleitoso deixa transparecer a perspectiva da somatização do sonho.

No Renascimento o fenómeno onírico continuou a revelar um carácter profético, como o sonho de D. Manuel n’ Os Lusíadas (IV, 67-75). Contudo, alterações se fazem sentir: o sonho passou a revelar os desejos e ambições dos homens. A viagem de Vasco da Gama n’ Os Lusíadas não é mais que o próprio sonho dos homens em encontrar o Paraíso Terrestre. De resto, tal como na tragédia clássica, o sonho apresentou-se como uma prolepse, servindo para adensar e precipitar os acontecimentos inerentes à fatalidade. Veja-se o sonho de Inês de Castro na tragédia Castro de António Ferreira (III,950-971) e o sonho de Brutus, bem como as aparições fantasmagóricas em Julius Caesar de Shakespeare. Paralelamente ao sonho surgem alucinações que pretendem acentuar ainda mais o clima de fatalidade presente nas tragédias clássicas. Outro exemplo ainda deste tipo de visão onírica em obras literárias que seguem os preceitos da tragédia clássica, embora posterior, é o sonho de Madalena em Frei Luís de Sousa (1843) de Almeida Garrett.

Para os românticos o sonho deixou de ser um artifício para passar a ser considerado como um tema literário autónomo, propício aos devaneios da imaginação e à sensibilidade poética, revelando os sentimentos e pensamentos mais íntimos do homem. De acordo com Samuel Coleridge a Verdade encontrava-se na poesia e a poesia, por sua vez, era a expressão do poder criativo da imaginação, decorrente da evasão do espírito e de experiências oníricas – o que se concretiza no poema “Kubla Klan: or, A Vision in a Dream”, em que o autor, adormecido, é acometido por um sonho onde as imagens que se lhe apresentam são depois traduzidas em duzentos a trezentos versos que viriam a ser escritos ao despertar.

As referências e as especulações sobre o sonho continuaram a aparecer em outros autores e épocas posteriores. Veja-se o caso de Antero de Quental, no seu poema “No Turbilhão” (Sonetos Completos, 1886), “Pedra Filosofal” de António Gedeão, Fernando Pessoa, as short-stories de D.H. Lawrence, para quem o sonho, expressão dos nossos receios e desejos, é a libertação do idealismo e da restrição, “It is the blood bursting into consciousness.” (D. H. Lawrence, Fantasia of the Unconscious, Psychoanalysis and the Unconscious, Penguin Books, Londres, 1986, p. 173).

Um caso singular de aproveitamento do sonho para a matéria ficcional é o de Eça de Queirós em O Crime do Padre Amaro. A iniciação sexual de Amaro é feita de forma alienatória, produzindo, através de uma fuga ultrajante à realidade, a dessacralização da Virgem. A primeira mulher que Amaro torna objecto da sua libido é a primeira Mulher: a Virgem. Nenhum ser humano pode aspirar a experiência sexual mais sublimada e mais sonial. Hegel terá dito que os sonhos são desprovidos de qualquer coerência razoável e objectiva. Freud, recordando-o em A Interpretação dos Sonhos, conclui que os sonhos são uma massa desconexa por definição, aceitando as mais violentas contradições. Por isso não estranhamos que só alguém a quem o sentimento libidinoso está proibido por lei, só alguém assexuado por dever espiritual, podia trazer para a experiência sonial o desejo mais impenetrável. Amaro diz isso mesmo no momento em que se conforta a si mesmo por ter sido triunfalmente escolhido pela "rapariga mais bonita da cidade": "E escolhera-o a ele, a ele padre, o eterno excluído dos sonhos femininos, o ser melancólico e neutro que ronda como um ser suspeito à beira do sentimento!" (O Crime do Padre Amaro, Obras Completas de Eça de Queiroz, vol.4, Círculo de Leitores, Lisboa, 1980, p.130). O sonho mais importante de Amaro surge num momento em que o pároco procura desviar do caminho do seu desejo o adversário João Eduardo. Amaro prepara uma intriga para tirar de cena o pobre rapaz e assim ficar com a iniquitas via (assim metaforiza Eça em relação à mulher – p.30) livre para a satisfação do mais libidinoso dos desejos. O sonho sugeriu a Eça uma longa e magnífica descrição, da qual damos aqui o essencial:

… toda a noite sonhou com Amélia. Tinha fugido com ela: e ia-se levando por uma estrada que conduzia ao Céu! O Diabo perseguia-o; ele via-o, com as feições de João Eduardo, soprando e rasgando com os cornos os delicados seios das nuvens. E ele escondia Amélia no seu capote de padre, devorando-a por baixo de beijos! (…) Caminhando, vieram a encontrar uma figura branca, que tinha na mão uma palma verde. «Onde está Deus, nosso pai?», perguntou-lhe Amaro, com Amélia conchegada ao peito. A figura disse: «Eu fui um confessor, e sou um santo (…). Oh! Pudesse eu caminhar a passos largos nas torpezas diferentes da Terra – ou bracejar, sob as variedades da dor, nas chamas do Purgatório!»

Amaro murmurou: «Bem fazemos nós em pecar!» – Mas Amélia desfalecia fatigada. «Durmamos, meu amor!» (…) Amaro pousou a sua mão sobre o peito de Amélia: um enleio muito doce enervava-os: enlaçaram-se, os seus lábios pegavam-se húmidos e quentes (…). – Mas de repente as nuvens afastaram-se como os cortinados de um leito; e Amaro viu diante o Diabo que os alcançara, e que, com as garras na cinta, esgaçava a boca numa risada muda. Com ele estava outra personagem: era velho como a substância (…) «Aqui estão os dois sujeitos», dizia-lhe o Diabo retorcendo a cauda. – E por trás Amaro via aglomerarem-se legiões de santos e de santas. (…) «Então a personagem esfregando as mãos, donde se esfarelavam universos, disse grave: «Fico inteirado, meu caro amigo, fico inteirado! Com que, senhor pároco, vai-se à Rua da Misericórdia, arruina-se a felicidade do Sr.João Eduardo (um cavalheiro), arranca-se a Ameliazinha à mamã, e vem-se saciar concupiscências reprimidas a um cantinho da Eternidade? (…)» E voltando-se para dois anjos armados de espadas e lanças, a personagem bradou: «Chumbem uma grilheta aos pés do padre, e levem-no ao abismo número sete!» E o Diabo gania: «Aí estão as consequências, senhor padre Amaro!» Ele sentiu-se arrebatado de sobre o seio de Amélia por mãos de brasa; ia lutar, bradar contra o juiz que o julgava – quando um sol prodigioso que vinha nascendo do Oriente bateu no rosto da personagem, e Amaro, com um grito, reconheceu o Padre Eterno!

(pp.184-186)

Se o tema do romance é o crime, espera-se que o criminoso tenha que ser julgado. O julgamento do réu Amaro é feito pelo seu próprio inconsciente. Quer dizer, a auto-análise de Amaro é suficientemente legítima para concluir a sentença do seu processo. E que sentença mais incisiva pode o homem proferir do que aquela que é ditada pelo seu próprio inconsciente? Lá se invoca a presença do mal e do bem, do Diabo e de Deus ou Padre Eterno. A metáfora do velho Padre serve na perfeição para condensar todos os anseios de Amaro num só: a jouissance de Deus censura afinal a jouissance da Mulher. Freud já nos havia demonstrado que o sonho sofre a intervenção deformadora da censura. O Padre Eterno funciona como Autoridade censória: é o superego de Amaro que funciona como guarda, a fim de impedir que o material recalcado surja na consciência. Estabelece-se um jogo decisivo: a pulsão da morte contra a pulsão da vida, por outras palavras, a possibilidade de aniquilamento do desejo contra a possibilidade de o satisfazer. Era fundamental que o mecanismo de censura fosse accionado no inconsciente de Amaro, pois a consciência sabe que o desejo libidinoso vai de encontro às regras sociais e morais que trazem castrado o falo dos clérigos. A censura do Padre Eterno envia para o inconsciente a tendência inconfessada da jouissance da Mulher. Amaro vai acordar "banhado em suor", quando "um raio de sol entrava pela janela", deixando cumprida a missão da formação do sonho que consiste em primeiro lugar em ultrapassar a inibição da censura. Repare-se na retórica do sonho de Amaro e veja-se como o essencial do trabalho do sonho conduzido por Eça se esclarece nas leis da linguística: o inconsciente de Amaro está estruturado segundo a linguagem do desejo. É através da linguagem que se deve sempre explorar o inconsciente e não tratá-lo como se fosse um "lugar". Não interessa onde ou o que é que seja em si mesmo, mas como se manifesta. E sabemos que ele é o discurso do Outro. Repete-se a história: o ubíquo Outro que já conhecemos regressa ao inconsciente de Amaro. Ele nos ajudará a desconstruir a signifiance deste sonho. A chave significante do sonho de Amaro é a expressão "era velho como uma substância". O significado que se liberta desta frase é o de Deus identificado com "velho" e com "substância" (termo aristotélico para Deus, considerado como o que existe por si mesmo, sem supor outro ser de que seja atributo). Ora, até sermos "informados" (o sonho é precisamente o momento em que o desejo se forma ou in-forma, o instante em que, mais do que satisfazer o desejo de alguma coisa, se trabalha na realização do desejo como tal) da verdadeira identidade desse "velho", o que acontece no final quando Amaro reconhece o Padre Eterno, nenhuma parte da frase ou do que nos é descrito até aí nos autoriza a deduzir tal significado. Este liberta-se pelo arranjo dos termos, pela sua contextualização. É, pois, na cadeia do significante que o significado existe e este é o processo estilístico em que se forma o sonho de Amaro. Palavra a palavra não descortinaríamos qualquer interpretação ou signifiance. Se aceitarmos o princípio lacaniano de que o significante actua separadamente da significação e na ignorância do sujeito, podemos dizer que esse "velho" já habitava o homem Amaro e impôs-se-lhe tanto no sentido linguístico como no sentido psicanalítico. A verdade da relação amorosa proibida já está escrita no inconsciente do padre Amaro mesmo antes de ele estar verdadeiramente consciente do seu pecado. Deus é a sua máxima censura; a Mulher, o máximo significante em torno do qual se ordenam as leis do desejo.

{bibliografia}

Dalila Pereira da Costa: Os Sonhos – Porta de Conhecimento (1991); Gilbert Durand: As Estruturas Antropológicas do Imaginário – Introdução à Arquetipologia Geral (Lisboa, 1989); Isabel Branco de Mascarenhas: «A Problemática do Sonho na Literatura», Studia Lusitanica, nº 1 (1998); James Ward: Sonhos e Presságios (Lisboa, 1995); Maria Teresa Reis de Carvalho: «Viajantes do Além», in Studia Lusitanica, nº1 (1998); Mauro Mancia: O Sonho como Religião da Mente (Lisboa, 1991); Mircea Eliade: Mitos, Sonhos e Mistérios (Lisboa, 1989); Sigmund Freud: A Interpretação dos Sonhos (Lisboa, 1999).