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Já em 1885, Arthur Pougin no seu Dictionnaire du Théâtre, chamava atenção para o fato deste papel-tipo feminino específico da comédia, de maneira geral, atender a diversas facetas características: “cara de pau” e coquete; “entrona” e protetora; confidente e maternal. Naturalmente, isto dependia do jogo do ator e das funções que o tipo desempenhava outrora dentro da estrutura narrativa da peça. De toda forma, sabemos hoje que uma das potencialidades do papel-tipo é exatamente a possibilidade de oferecer ao jogo do ator uma atuação fora da convenção padronizada pelo “moderno” papel de cunho psicológico. Notadamente, Jacques Scherer (SCHERER, 1950: 39-50) traça, a partir da dramaturgia clássica francesa, uma espécie de genealogia do personagem do Confidente, matriz ancestral do papel tipo SOUBRETTE. O eminente professor, falecido em 1997, refutava, nesta sua obra, a idéia do deslocamento direto da função exercida pelo Coro no teatro greco-romano para a figura do Confidente. Na sua opinião, seria mais provável que um personagem secundário da “suite royale” do herói, uma espécie de personagem periférico, descolando-se desse conjunto, passasse a acompanhar o Herói ou a Heroína. Desta maneira o ou a Confidente ganha a aparência de um Amigo(a); uma Ama de leite; um Criado(a). Esses integrantes da corte do Herói passam a acompanhar e presenciar os acontecimentos que promovem a sorte e o infortúnio de seu soberano. A questão é que no gênero comédia esse Confidente feminino ganha os traços da SOUBRETTE. Como bem atesta Patrice Pavis (PAVIS, 1996: 333), o termo Soubrette advém do provençal Soubretto, afetado. Seja na figura da Serva, da Criada, da Aia, da Governanta, conforme o contexto histórico, ela é a Acompanhante da principal personagem feminina numa comédia. Pavis ainda chama atenção para a proximidade da SOUBRETTE com a Dama de Companhia. Leon Moussinac reproduz em seu livro Traité de mise em scène (1948) a classificação dos Emplois repertoriados a partir do famoso decreto de Moscou assinado por Napoleão que regulamentava o funcionamento da Comédie Française em 1812. Moussinac, por sua vez, indica que extraiu essa classificação do trabalho de Pierre Abraham, Physique au Théâtre (Paris, Ed. du Masque, 1928). Naturalmente, esta classificação é atinente ao repertório do próprio teatro clássico francês. Nesse sentido, os exemplos desses papéis-tipos são extraídos, basicamente, das peças de Molière, Corneille, Racine, Marivaux e Beaumarchais. Desta lista se destaca a personagem Dorina, da peça Tartufo de Molière, como sendo o exemplo típico para o papel da SOUBRETTE. A Dorina do Tartufo é de fato exemplar quanto ao tipo. Na peça de Molière, se, por um lado, a ela é atribuída a função de fazer avançar etapas importantes da ação, por outro, ela desempenha também a função de Confidente de Mariana e de Elmira. Dorina, que é caracterizada por Molière segundo traços advindos da farsa e do jogo da Comedia dell’Arte, é igualmente a articuladora dos estratagemas que levam os Enamorados (Mariana e Valério) a se reconciliarem. Dorina, em diversas ocasiões, procura “chamar à razão” Orgonte, o pai de família “possuído” por Tartufo. Por fim, a ela também é conferida, por Molière, a condição de governanta da casa da família de Orgonte, o que lhe coloca em posição de grande intimidade colocando-a como mais um membro da família em oposição ao falso devoto. Na dramaturgia oriunda do movimento Naturalista, ao longo da virada do século XIX para o XX, o emprego da noção de papéis-tipos ou dos Emplois do teatro francês perde sua finalidade, devido à ênfase no caráter psicológico determinado pela hereditariedade e pelo meio onde os personagens são chamados a evoluir. Contudo, a presença da personagem feminina da SOUBRETTE se mantém nas comédias de costumes, nas comédias de boulevards, nas comédias ditas de “atualidade”, tendo em vista sua permanência na função que ela representa como tipo no interior da estrutura do gênero. Segundo Otávio Rangel, ensaiador e autor dramático brasileiro, a SOUBRETTE “é a personagem feminina (a Criada das Comédias) jovem, gaiata, vivaz, ruidosa, de finalidade alegre, que complica as situações armando QÜIPROQUÓS, etc. Como Dama Elegante tem parte destacada na opereta. Em ambos os gêneros, sua idade está fixada nos 25 anos”. (RANGEL, 1949: 96). Otávio Rangel, para definir a função e o lugar desta figura ficcional, parte do princípio classificatório dos papéis-tipos atribuídos aos atores do “Velho Teatro” luso-brasileiro — Galã; Centro; Vegete; Baixo-Cômico para os tipos masculinos, e Ingênua; Dama-Galã; Dama-Central; Soubrette; Caricata para os tipos femininos —. Do ponto de vista da composição romanesca, os adjetivos que Rangel atribui à figura elucidam os estados do tipo e delineiam o seu perfil enquanto ser ficcional. Já do ponto de vista da trama e da sua função na narrativa, observa-se a sua finalidade como sendo o personagem que arma as situações e adensa por efeito sucessivo de QÜIPROQUÓS as situações que normalmente despertam o riso no espectador. A SOUBRETTE tem por objetivo conduzir as situações cômicas colaborando na tessitura da própria trama cômica. No Brasil, junto ao teatro realista romanesco do séc. XIX, o tipo está associado ao papel da Criadinha engraçada com traços por vezes erotizados. Outras vezes, o papel-tipo está identificado com a figura da Mulata pernóstica à maneira de Arthur Azevedo, como a sua Bemvinda, de A Capital Federal. O sucesso da peça de Marcos Caruso, Trair e coçar é só começar, que estreou em 1986 no Rio de Janeiro, ficando em cartaz por mais de vinte anos, confirma junto ao gênero comédia de costumes a herança do teatro de divertimento ou do Teatro de Boulevard. — “Inspirada no gênero vaudeville, essa comédia de costumes trata da história da intrometida e confusa empregada Olímpia” —. A permanência dos tipos adaptados à realidade dos anos 1980 — classe média brasileira —, as situações chaves e os nós dramáticos caracterizam por fim essa filiação e manutenção do gênero reafirmando sua continuidade na atualidade. Como é plausível ao gênero, o motor da sua ação é calcado no tipo, neste caso urbano, da empregada da atualidade. A SOUBRETTE, nesta peça, é Olímpia “empregada de absoluta confiança da família absolutamente desastrada e desconfiada” (http://www.trairecocar.com.br/). Verticalizando a discussão sobre o par Acompanhado/Acompanhante; Patroa/Empregada bem característico das relações sociais no Brasil de classe média e problematizando uma espécie de revanche do oprimido sobre o opressor seria relevante lembrar da peça de Noemi Marinho Fulaninha e Dona Coisa bastante encenada ao longo dos anos 1990. E finalmente, verifica-se por sua eficácia funcional em termos de narrativa a conservação ainda hoje do papel-tipo da SOUBRETTE graças ao seu alto grau de identificação e realismo que dela emana. A nossa identificação com o Tipo da Empregada, hoje, confirma na atualidade o conservadorismo de suas características funcionais desde seu surgimento. Isto atesta, igualmente, a permanência das relações Patrão/Empregado no imaginário do próprio teatro de forma a ver esse papel-tipo reproduzido agora pela teledramaturgia.

{bibliografia}

MOUSSINAC, Leon. Traité de la mise en scène, Paris, Editions Charles Massin & Librairie Centrale des Beaux-Arts, 1948; PAVIS, Patrice. Dictionnaire du Théâtre, Paris, Dunod, 1996; POUGIN, Arthur. Dictionnaire du Théâtre, Paris, Firmin-Didot, 1885; RANGEL, Otávio. Técnica Teatral. Rio de Janeiro, Editora Talmagráfica, 1949; SCHERER, Jacques. La Dramaturgie Classique en France, (reed. 2001), Saint-Genouph, Librairie Nizet, 1950.