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Termo relativo ao conjunto de manifestações discursivas de um texto literário afecto ao sujeito implicado. Este pode ser o autor, o narrador, a personagem ou a voz numa composição poética. Termo que designa qualquer entidade-pessoa pressuposta no discurso literário. Mais restritamente, o discurso subjectivo é aquele que revela a presença de marcas da instância de enunciação no texto literário. Todo o texto literário pressupõe, em última instância, um autor por mais indiferenciado que este seja. O texto literário não escapa também à inscrição de um determinado ponto de vista, ou seja, ao inevitável pressuposto de um sujeito na medida em que não existe um ponto de vista neutro e objectivo desencarnado, sem pessoa.

O conceito de sujeito tem sido central na época moderna. A subjectividade é um dos princípios estruturadores da modernidade. A desintegração das concepções religiosas no mundo moderno deu origem à racionalidade, largamente apoiada na individualidade. No contexto de profanização da cultura ocidental, a subjectividade, ou seja, o que é próprio do sujeito, torna-se um princípio e razão universal. O desenvolvimento das sociedades modernas tem expressão na formação de esferas de valores como o estado, a sociedade, a ciência, a moral e a arte, entendidas como incarnações do princípio da subjectividade. A invenção cartesiana da subjectividade opõe o sujeito ao objecto de modo que o sujeito se torna a peça essencial da teoria do conhecimento. Com efeito, o texto literário pressupõe o acto de conhecimento de um sujeito em contacto com o mundo. Este sujeito do conhecimento implica sempre um indivíduo, ou seja, uma pessoa de carne e osso.

Esta configuração fulcral da cultura moderna, o sujeito, tem vindo a ser criticada desde a segunda metade do século XIX. Autores como Marx, Freud e Nietzsche utilizaram a auto-reflexividade moderna para contestar a importância crucial da subjectividade e do correlativo sujeito. Então, segundo as várias interpretações, essa entidade reflecte o estatuto do homem tal como o modelou a sociedade ocidental, ou seja, não isento de determinações contingentes tais como a vontade, o entendimento e a razão. Esta concepção de sujeito é o fundamento teórico das sociedades democráticas modernas.

A noção de sujeito, implícita no texto literário, tem vindo a sofrer, então e em paralelo, um processo de descrédito. O simbolismo foi o primeiro código literário moderno que, ainda que de modo por vezes não programático, desacreditou o sujeito visto até então como um núcleo uno de significação e de interpretação da experiência de estar no mundo. Nos textos literários simbolistas, há, sem dúvida nenhuma, uma subjectivação no modo como a realidade é apreendida mas é uma subjectivação sem sujeito no sentido em que aquela não surge estritamente articulada com as características reais do indivíduo. A contemplação estetizante do mundo deixa de constituir a afirmação de uma individualidade (como o romantismo a tinha concebido) e passa frequentemente a ser uma expressão artística não-pessoal. A sociosfera do nihilismo também contribuiu para a dissolução da estabilidade do sujeito. O sujeito-indivíduo é atravessado por vectores, que relevam do sonho e da imaginação, dando-se a ascendência da autenticidade sobre a sinceridade. A impersonalidade é retomada pelos modernismos, que a radicalizam. Deste modo, o sujeito torna-se o lugar – assinalado mas frequentemente vazio – de um “impoder”. A literatura, como uma das manifestações da arte, ganha impacto (sem desejar massificar-se) decorrente da autonomia e do distanciamento em relação à realidade configurada pelo senso comum.

O sujeito aparece, então, como uma entidade negativa. Esta negatividade do sujeito (como a entidade pessoal pressuposta no texto literário) surge muito claramente no romance do século XX em que é reconhecível o que se pode designar pela crise da representação romanesca. O romance oitocentista (pertencente à época àurea deste género literário) é uma narrativa surgida em articulação estreita com a construção do mundo burguês e capitalista, representando-o de um modo realista nas suas várias facetas. O romance do século XX, de uma maneira geral, já não está preocupado em construir mas em abalar as certezas adquiridas desde o início dos tempos modernos. A descrença e a indiferença criam uma enunciação literária, que invade o enunciado e que destrói a narração entendida como neutra. O desejo de realismo já não se exprime através do romance mas através do jornalismo e da televisão. O esmagamento da personagem decorre da invasão da interioridade, que pulveriza a unicidade do sujeito ou, então, provém do triunfo da exterioridade, que faz da personagem um objecto, um destroço à mercê da História, da vida e da sociedade, perdendo assim também características estáveis. O sujeito torna-se ausente de si devido a forças que o submergem. A temática da perda de identidade é importante em muitos romances do século XX como, por exemplo, O Processo (1914) de Kafka, O Homem sem Qualidades (1930) de Musil, A Náusea (1938) de Jean-Paul Sartre, O Estrangeiro (1942) de Albert Camus, etc..

A desindividualização conheceu um novo fólego com os designados “novos romances” das literaturas do último pós-guerra. De entre estes, destaque-se o nouveau roman francês de onde provém, aliás, a designação. O sujeito, inscrito no romance das décadas de 50 e de 60, é marcado pela negatividade com um certo teor modernista, que alguns chamam pós-modernista. O sujeito surge como repetitivo, saturado de aspectos socializados, que o atravessam, retirando-lhe a unidade. Por isso, a reflexão, na época, à volta do género, o romance, anuncia-o a atravessar uma crise e a dirigir-se para a sua dissolução. No entanto, “a era da suspeita” (Nathalie Sarraute) – suspeita voltada sobretudo contra o sujeito, que, como diz a autora, não é já senão a sombra de si mesmo – surge, hoje em dia, passados quarenta anos, como extremamente produtiva na medida em que muitos romances cruciais foram escritos nesses anos, inscrevendo-se de um modo feliz na história do romance do século XX: O Ciúme (1957) de Alain Robbe-Grillet, A Barragem contra o Pacífico (1950) de Marguerite Duras, O Deus das Moscas (1954) de William Golding, Lolita (1955) de Vladimir Nabokov, O Anjo Ancorado (1958) de José Cardoso Pires.

A partir da década de 80, a literatura, mais concretamente, o romance redescobriu um certo realismo após o cansaço das narrativas marcadas por uma atitude vanguardística. Digamos que, de um modo pouco explícito, o centro de interesse se deslocou. A crise do romance, da literatura e das designadas ciências humanas tornou-se banal de modo que a expressão artística já não tem que se distinguir claramente da representação de tipo mimético. De qualquer maneira, a sociedade dita de informação (globalizada a partir dos anos de 70) pluraliza o mundo circundante no sentido em que dá uma multiplicidade de imagens do mundo, desdogmatizando e descentralizando as representações dele. Assim sendo, o papel “libertador” da arte moderna, como interpretação da sociedade a contra-corrente, esmorece. Neste contexto, o sujeito literário readquire uma faceta rasa, mais positiva, e volta a fundir-se com a noção de pessoa em muitas obras literárias. No entanto, restam ainda escritores que criam mundos literários cujo sujeito implícito é descentrado e fragmentário, inscrevendo no texto uma negatividade tipicamente moderna. O sujeito literário, nestas obras, é mais um desafio ao mundo do que uma confirmação do que existe e é conhecido.

{bibliografia}

Habermas, Jurgen, O Discurso Filosófico da Modernidade, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1990; Hamon, Philippe, Texte et Idéologie – Valeurs, hiérarchies et évaluations dans l’oeuvre littéraire, Presses Universitaires de France, Paris, 1984; Mitterrand, Henri, Le Discours du Roman, Presses Universitaires de France, Paris, 1980; Mourão, Luís, Um Romance de Impoder – A Paragem da História na Ficção Portuguesa Contemporânea, Angelus Novus, Braga, 1997; Sarraute, Nathalie, A Era da Suspeita – Ensaios sobre o Romance, Guimarães editores, Lisboa, 1963; Tadié, Jean-Yves, O Romance no Século XX, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1992.