Pertencem a Santo Agostinho as famosas palavras que dão conta da complexidade do tempo: “Que é, portanto, o tempo? Se ninguém me coloca a questão, eu sei; se alguém coloca a questão e se eu quero explicar, eu já não sei” (Les Confessions, Livres XI et XIV, 17. apud Molino, 2003, p.249).
Muito embora a categoria tempo incida, igualmente, nos modos dramático e lírico, o verbete que ora se apresenta, ainda que em termos resumidos, cuida de sua manifestação apenas no modo narrativo. Levar isso em consideração comporta deixar explícito que a temporalidade é o eixo estrutural, sobretudo, da narrativa.
Ressalva feita, a análise do tempo de uma narrativa basear-se-á na consideração de dois dos três planos em que a narrativa pode ser abordada: o plano da história e o plano do discurso. O primeiro diz respeito ao plano dos conteúdos narrados, e o segundo se reporta ao plano da expressão desses mesmos conteúdos. Em outros termos, significado e significante respectivamente. O tratamento em separado desses dois tempos paga tributo à comodidade expositiva, como bem salientou Carlos Reis (2000, p.406), já que eles estão, de forma íntima, relacionados.
A prevalência, até o momento, de exegeses que privilegiam tão somente a temporalidade da história pode ser compreendida pelo fato de o tempo ser um constituinte bem visível nesse plano de análise. Com efeito, pode-se, por exemplo, averiguar com um rigor mais ou menos alto o tempo de uma história relatada pelo narrador. Isso se realiza elencando-se os marcos temporais que enquadram a narrativa. Assim, ter-se-á casos de histórias que duram horas, dias, semanas, meses, anos e até séculos. É, igualmente, respeitante ao tempo da história, que se costuma distinguir o tempo em cronológico e em psicológico. O tempo cronológico não é outro senão o tempo que o relógio assinala; já o tempo psicológico, por seu turno, é a maneira pela qual o tempo é subjetivamente vivenciado pelas personagens que povoam determinado mundo possível.
Se, em boa parte dos casos, acima de tudo naqueles em que abundam os marcos temporais, não oferece grandes dificuldades a aferição do tempo da história, o mesmo já não ocorre com o tempo do discurso: a metodologia para sua mensuração não é, de pronto, evidente. Seguindo a melhor tradição, contudo, mede-se o tempo do discurso pela sua extensão, quer dizer, pelo número de linhas e de páginas, o que dá uma idéia aproximada do tempo que seria gasto para ler determinado fragmento de um texto. Por isso, o tempo do discurso é, na verdade, um pseudotempo.
A riqueza e a conseqüente complexidade que o tempo do discurso confere à análise da narrativa é avaliada pela consideração dos três domínios com ele relacionados: a ordem, a velocidade e a freqüência. Daqui para diante, procurar-se-á tratar de cada um desses elementos, conforme os sistematizou, com muito acerto e perspicácia, o teórico francês Gérard Genette e os seus principais comentadores.
Em Discurso da Narrativa (1995, p.33), afirma Genette que estudar “a ordem temporal de uma narrativa é confrontar a ordem de disposição dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo com a ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na história”. Se se atentar ao fato de que, na reconstituição do plano da história, os eventos se articulam necessariamente em ordem linear, um fenômeno verificado com acentuada freqüência nas narrativas será o da anacronia, quer dizer, o da “discordância entre a ordem da história e a da narrativa” (Genette, 1995, p.34). Em termos mais simples, conforme salientam Molino e Lafhail-Molino (p.267), “je peux raconter les événements dans un ordre différent de celui dans lequel ils se sont déroulés”. De duas espécies são as anacronias: analepse e prolepse. A primeira corresponde ao flash-back e a segunda ao flashforward ou à antecipação. A analepse é, fora de dúvida, bem mais freqüente do que a prolepse, e remonta aos primeiros textos literários de que se tem notícia. Vale lembrar os inícios in medias res das epopéias, que obrigavam o narrador a fazer retrospecções para que se entendesse o desenrolar da história.
A respeito da velocidade da narrativa, Genette (1995, p.87) salienta que ela configura-se “pela relação entre uma duração, a da história, medida em segundos, minutos, horas, dias, meses e anos, e uma extensão: a do texto, medido em linhas e em páginas”. Decorre daí uma primeira grande distinção que se deve ter em mente: a isocronia e a anisocronia. Quando se está diante de um processo cujo objetivo é conferir ao discurso da narrativa duração idêntica à da história relatada, então, estar-se-á diante de um procedimento isócrono. O procedimento será o da anisocronia quando houver “alteração, no discurso, da duração da história, aferindo-se essa alteração em função do tempo da leitura” (Cf. Carlos Reis, 2000, p.34). A cena, que, em geral, corresponde aos momentos mais dramáticos de uma narrativa, é um signo da isocronia. Os signos da anisocronia, por sua vez, são mais numerosos: a pausa (o tempo da história pára e continua o tempo do discurso), o sumário (o tempo da história é maior que o tempo do discurso) e a elipse (supressão de períodos de tempo, ou ainda, é anulado o tempo do discurso ao passo que prossegue o da história). Embora Genette não a considere como um signo autenticamente realizado pela tradição literária, é preciso lembrar a extensão – assim a denomina Carlos Reis (2000, p.154) -, que consiste no fato de o tempo do discurso ser mais longo que o tempo da história.
É por um efeito de combinação de todos esses signos que uma narrativa tem configurado seu ritmo, sua velocidade ou seu andamento. Assim, não é difícil supor que um relato no qual preponderem os sumários e as elipses e pouco espaço haja para cenas, pausas e extensões será uma narrativa inegavelmente veloz.
Considerar a freqüência de uma narrativa é ter em mira uma “relação quantitativa estabelecida entre o número de eventos da história e o número de vezes que são mencionados no discurso” (Cf. Carlos Reis, 2000, p.182). Como conseqüência, podem aparecer o discurso singulativo (a narrativa conta uma única vez o que aconteceu uma vez na história), o repetitivo (reporta o discurso em momentos distintos um acontecimento da história) e o iterativo (uma única emissão da narrativa representa várias ocorrências do mesmo evento).
Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes. Dicionário de Narratologia (2000); Jean Molino e Raphaël Lafhail-Molino. Homo Fabulator: théorie et analyse du récit (2003). Gerard Genette. Discurso da Narrativa (1995).
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