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Uma definição genérica tende a apresentar romance, o subgénero narrativo de tipologia mais diversificada, como história ficcional em prosa e de extensão considerável (de modo a preencher, pelo menos, um volume), na qual persongens e acções inventadas mas como que tiradas da vida real, passada ou presente, são envolvidas numa intriga de complexidade variável. A visível dificuldade, nesta e noutras definições, para expressar com rigor certos aspectos do romance tem podido contribuir para o cepticismo de alguns críticos, segundo os quais a respectiva forma não existe ou seria demasiado instável para permitir uma classificação consistente e suficientemente contrastada com outros subgéneros e espécies da literatura narrativa. Na sua mais acentuada modificação moderna, o romance desenvolve-se a partir do século XVIII, muito depois de outras inflexões ficcionais, não tendo, todavia, estabelecido uma tradição de regularidade formal ou estrutural baseada em originais de excelência única e dominante — ao invés do que acontece, por exemplo, com a tradição narrativa fundada nas epopeias de Homero. O que, aliás, não obstou a que a moderna ficção narrativa e o romance em particular se tenham tornado o fenómeno literário mais característico desde o referido século.

O romance moderno é, pois, e antes de mais, ficção narrativa em prosa; no entanto, tem com insistência mostrado aptidão para aparentar uma verdade literal, desconfiada do ‘poético’ e do ‘maravilhoso’, sendo o seu assunto muitas vezes extraído de, ou articulado com, referências a acontecimentos reais. Talvez devido, inclusive, ao incremento historicista na época da sua modernização, o romance e a ficção narrativa em geral têm frequentemente procurado modos de actualização factual, documental e verista, através, por exemplo, de diários, memórias, cartas, relatos de viagem. A própria fixação da ficção narrativa antecedente na prosa (medium natural do discurso comum) se pode inserir em recorrente estratégia de autenticação, na qual sobressai modernamente certa minúcia de informação circunstancial, a par e passo com o apontamento do quotidiano. Os primeiros modos de expressão literária propiciavam a memorização celebratória pela recitação pública do lendário; ao invés, a ficção narrativa moderna parece prescindir da oralidade, visando antes condições de tempo e disponibilidades de leitura propícias à privacidade dos destinatários. Condições e diponibilidades em todo o caso consideravelmente diminuídas no presente século até porque partilhadas com muitas outras solicitações.

Se se torna sintomática a extensão, por exemplo, de Clarissa Harlowe e de Tom Jones, no século XVIII, ou de Guerra e Paz, no século XIX, e de Em Busca do Tempo Perdido, no século XX, ela não corresponde, todavia, às duzentas e cinquenta páginas da média sugerida por E. M. Forster para o romance usual (Aspects of the Novel, 1927). Média corroborada por inúmeras narrativas que ficam muito aquém dos dois milhões de palavras da citada obra de Proust. Menor extensão e concomitantemente menor complexidade da intriga ou da análise de personagens caracterizam grosso modo a novela ou, mais ainda, o conto e a short history — sendo que esta última não ultrapassa geralmente as cinquenta páginas. Mas também, segundo alguns teóricos da literatura, na novela avulta o evento e a história linearmente contada, enquanto no romance a atmosfera psico-social e o mundo das personagens se tornam mais intrincados, desenvolvendo-se num ritmo temporal mais lento. O termo português ‘novela’, usado para uma narrativa de extensão intermédia, corresponde ao francês nouvelle; no entanto, as designações novella, em italiano, e Novelle, em alemão, são frequentemente aplicadas a narrativas próximas das que os Anglo?saxónicos referem como short stories.

O próprio realismo de apresentação, patente em grande número de romances modernos (isto é, a detida observação e descrição literal da vida predominantemente anti?heróica de um protagonista; assim como de objectos e manifestações correntes na experiência humana) sugere uma autenticação verista. Quando a observação e a descrição incidem sobre a excepcionalidade, esta não atinge necessariamente a dimensão heróica da epopeia ou da lenda. Mas o realismo de apresentação nem sempre corresponde ao chamado realismo de avaliação, que desafia a literalidade na prescrutação da vida, das suas condições e realizações.

Muitos romances procuram recriar um tempo passado (romance histórico), mas a maior parte envolve o contemporâneo na expectativa de novidade geralmente associada ao fluxo do presente e implícita na própria palavra ‘novel’ surgida na Inglaterra da época setecentista para marcar a diferença em relação à ficção narrativa precedente.

Se a diferença entre ‘história’ e ‘romance’ sugere, desde logo, uma maior complexidade na obra designada pelo segundo termo, igualmente se depreende que a brevidade de bastantes histórias dificilmente comporta a organização causativa de uma intriga (em inglês plot), melhor se prestando à linearidade de tempos e eventos julgados mais relevantes para a criação de sentido. Segundo certos autores e críticos, a história como mero desenrolar temporal de acontecimentos é mesmo algo de secundarizável num romance; mas a própria unidade da intriga ou os nexos causais que a movem configuram uma complexidade reconhecidamente variável de romance para romance. É provável, contudo, que a moderna ficção narrativa deva boa parte do seu impulso setecentista a uma crescente necessidade de compreensão de condicionantes historico-sociológicas contemporâneas, reunidas em convergente influência e sem intervenção de agentes sobrenaturais, num ambiente ainda bastante estratificado, face ao qual o homem da época procura autodeterminar-se como pessoa e indivíduo. Necessidade que tende a dispensar certos estereótipos do romance tradicional, dado o contexto ser agora muito mais propício à mobilidade exterior e à variação interior da pessoa comum, mesmo que esta possa aparecer figurada por vezes ainda noutras imagens de antiga mas modernizada tradição teofrástica (cf., em inglês, ‘characters’).

Pelo menos desde inícios do século XVIII que os romances modernos, como se disse, adoptam amiúde formas e processos documentais. Na literatura popular do tempo de Defoe tornara-se frequente a reconstituição mais ou menos ficcional de uma carreira de crime, não raro alegadamente com base em processos judiciais ou na confissão à última hora de condenados à morte; o formato (auto)biográfico de aventurosas crónicas no velho e no novo mundo, com relevo para episódios de delinquência e marginalidade picaresca; a recriação memorialista ou diarística de balanços existenciais e etico-religiosos (com forte projecção no âmbito da expressão inglesa desde a ‘autobiografia espiritual’ do seiscentista puritano John Bunyan). Em Tom Jones, Fielding alia comédia de costumes e romance de formação; em Pamela, outro contemporâneo, Richardson, reúne comédia de costumes e manual epistolar de conduta. Na segunda metade do século XVIII, numa altura em que o romance gótico começava a sua voga e o romance histórico se aproximava, Frances Burney, entre outros ficcionistas, prossegue o romance de costumes centrado na apresentação e integração de uma jovem em sociedade. Já no século XIX, Jane Austen é dos principais autores a recriar tal situação, num romance aliás mais elaborado, enquanto os românticos seus contemporâneos acolhem favoravelmente o romance histórico e continuam a fruir com agrado da ficção gótica. Nesta se intensifica a expressão de estados de espírito de melancolia, apreensão, horror e terror, em paradigmáticas figuras femininas insistentemente ameaçadas pela vilania de aristocratas e outros representantes de uma hierarquia decadente, com os quais se vêem reunidas à força em remotas abadias e inóspitos castelos da Europa meridional, cujos subterrâneos labirintos lhes servem de prisão e se tornam correlativos das obsessões da mente. A paisagem exterior já não condiz com cenários pastoris tradicionais; as escuras florestas ou as macabras grutas onde seres misteriosos se escondem já não sugerem uma possível harmonia entre os humanos, ou entre estes e o mundo natural. Sublinhado em tom por vezes melodramático é antes o contraste entre imagens de solaridade, pressupostas em descrições de países do sul, e estereótipos de corrupção, violência e superstição, a eles também amiúde associados, sobretudo a partir da Reforma. De dimensão mais universal são certas narrativas como Caleb Williams (século XVIII), de William Godwin, e Frankenstein (século XIX), de Mary Shelley, cujos elementos góticos anunciam a exploração de clivagens potencialmente esquizofrénicas, feita por R. L. Stevenson em Dr. Jekyll and Mr. Hyde, na época Victoriana. Em todo o caso, o romance gótico teve nítidas repercussões em muitos escritores oitocentistas e novecentistas (muito especialmente norte-americanos). Veja-se, por exemplo, Emily Brontë (Wuthering Heights, personagem de Heathcliff), Charles Dickens (Bleak House, caps. 11, 16, 47, e Great Expectations, episódios de Miss Havisham), Edgar Allen Poe (histórias de terror), William Faulkner (Sanctuary e Absalom, Absalom!) e Truman Capote (narrativas de crimes), entre ourtos. Outra possível linha de certa continuidade na novel é a que liga a dimensão trágica de Clarissa Harlowe a obras bem posteriores como The Return of the Native, do oitocentista Thomas Hardy. Ainda outra classificação tipológica assentará em paralelismos estruturais (cf. Percy Lubbock, The Craft of Fiction, de 1921, e Edwin Muir The Structure of the Novel, de 1929). Assim, por exemplo, numa via cénica ou dramática se situam romances que, à maneira de Henry James em The Ambassadors, se constroem a partir de um número relativamente reduzido de cenas fulcrais como numa peça de teatro, com consequente selectividade nas circunstâncias envolventes. E numa via oposta, de amplitude panorâmica, se foram concebendo romances que, ao modo de Thackeray em Vanity Fair, acompanham uma vasta latitude de espaço e tempo; Guerra e Paz, de Tolstoi, permanece talvez o exemplo mais típico e conhecido. Inúmeras narrativas ditas de aventuras, desde Colonel Jack, de Defoe, e Roderick Random, de Smollett, a outras dos nossos dias, passando por muitas do século XIX, como Treasure Island, de R. L. Stevenson, e obras de Júlio Verne, dão maior ênfase à dimensão espacial. Mas em grande quantidade de casos, é a dimensão temporal que sobressai; veja-se, já do século XX, The Old Wives’ Tale, de Arnold Bennet, ou The Forsyte Saga, de John Galsworthy. A mesma acentuação temporal naturalmente ocorre no chamado romance histórico ou de época, de que se pode destacar três espécies: a) com personagens, acções e cenários basicamente históricos num todo assumidamente ficcionalizado (caso de I, Claudius, de Robert Graves); b) com personagens e acções ficcionalizadas tal como o exótico cenário e a obra no seu conjunto (exemplificável nas narrativas de feição militar, ditas de capa e espada, escritas por Dumas, ou no romanesco sentimental de Margaret Mitchell (cf. Gone with the Wind); c) em posição intermédia, o romance histórico propriamente dito, com um backround autêntico nas personagens e acções ficcionais (variedade em que se pode incluir as narrativas de Walter Scott). À cor temporal do romance histórico não deixa de corresponder a cor local do romance topográfico; veja?se a ficção regionalista do século XIX: Maria Edgeworth com os seus cenários predominantemnte irlandeses, Balzac com Cenas de Província, em A Comédia Humana, ou os romances americanos do sul e algumas ficções narrativas que se tornam verdadeiros retratos rurais, urbanos ou metropolitanos (por exemplo Middle March, de George Eliot, Main Street, de Sinclair Lewis, Le Père Goriot, ainda de Balzac).

Outro critério para classificar narrativas ficcionais relaciona o respectivo protagonista com o papel que desempenha. O que é estimulado, inclusive, por antiga e ainda hoje comum tradição — fazer do regular acompanhamento da personagem principal factor decisvo de unidade numa obra, designadamente através de um desenvolvimento biográfico ou autobiográfico. Se essa personagem se apresenta com um conjunto de características que a tornam, na expressão de Aristóteles, ‘inferior a nós próprios’, leitores, a história que protagoniza pode até ilustrar um processo de desenraizamento social e mesmo de delinquência, traduzido em aventuras, quer picaresca, quer, por exemplo, mais típicas do que os Franceses chamam roman noir. De novo se poderá referir Colonel Jack, na medida em que ilustra o primeiro tipo, e Jonathan Wild, tanto na versão historicista de Defoe como na versão burlesca (com alguma simulação mock-historic) de Fielding, na medida em que se aproxima do segundo. A novela picaresca tem, todavia, ilustração anterior e mais típica na literatura hispânica, nomeadamente através de obras quinhentistas como Lazarillo de Tormes, de autoria anónima, ou Guzmán de Alfarache, de Mateo Aleman, e La Vida del Buscón, produzida já no século XVII por Francisco de Quevedo. Para esta mesma tradição, em primeira instância, nos remetem ainda certas obras do século XX, como Felix Krull, de Thomas Mann. Se o protagonista, não ‘inferior’ mas semelhante ao ‘comum’ dos leitores, é acompanhado pelo narrador durante os anos da sua educação juvenil, como sucede com Tom Jones no romance homónimo de Fielding, ou em Wilhelm Meisters Lehrjahre, de Goethe, é habitual classificar a respectiva história como de formação — ou, para usar o termo alemão corrente no vocabulário crítico, Bildungsroman. No caso de tal iniciação e formação respeitarem à personagem de um artista, estamos perante uma variante amiúde descrita com uma expressão também germânica, Künstlerroman, de que Portrait of the Artist as a Young Man, de Joyce, é dos exemplos mais reconhecidos. Se o protagonista e as restantes personagens forem desenhadas, ou não moldadas numa dimensão psicológica aprofundada, a exterioridade das suas acções tende a ganhar evidência. É o que se passa, aliás, em inúmeras histórias de aventuras, inclusive picarescas. Se, pelo contrário, houver um aprofundamento particularizado, a respectiva história adquire feição psicológica mais nítida — embora persista o debate sobre a melhor maneira de, através de uma via ou de outra, conhecer cada indivíduo e a natureza humana (pelos gestos exteriores ou pela expressão do interior?). Exemplos clássicos desta distinção, os romances de Fielding e os de Richardson têm levado os críticos, desde Samuel Johnson, a compará?los ao claro mostrador de um relógio, no caso dos primeiros, e ao respectivo mecanismo, no caso dos segundos. Mas um bom romance quase sempre tem ‘tipos humanos’, ou personagens desenhadas contrastando com outras moldadas (na terminologia inglesa tradicional, respectivamente de ‘manners’ e de ‘nature’; na terminologia corrente desde o citado livro de E. M. Forster, ‘flat’ ou ‘round’). De um ponto de vista estético, não são necessariamente menos eficazes umas que outras.

Diferente classificação se pode sugerir em função das características socio?culturais e ocupacionais de um grupo predominante de personagens. Em conformidade se falará de romances da vida campesina, políticos, sociais, etc.. Em certos casos, uma modalidade deste tipo pode acabar por favorecer determinados modelos ambienciais, estruturais ou outros como no caso dos ‘westerns’ e policiais, de prolífica fortuna inclusive cinematográfica.

Alguns influentes críticos do século XX têm insistido no carácter problemático das intenções numa obra literária, mas tal problematismo é variável. Quando se trata de uma narrativa de tese ou de forte componente didáctica, tornam-se mais flagrantes alguns vectores intencionais. Uncle Tom’s Cabin, de Harriet Beecher Stowe, é, neste âmbito, frequentemente apontado; e muitos exemplos extremos se podia referir, em que intenção se converte em propaganda mais ou menos flagrante. Num romance de qualidade, será menos frequente o autor declarar objectivos que esgotem as intenções que lhe possam ser atribuídas. Muitas narrativas setecentistas, de Defoe a Francis Burney, explicitaram nos respectivos prefácios (e por motivos que se prendem, fundamentalmente, à preocupação de defender a nova forma do romance) propósitos éticos e estéticos. Tal explicitação, contudo, viria a ser julgada cada vez menos necessária e a tornar-se cada vez menos ostensiva sobretudo no plano moral, ao longo dos séculos seguintes. A própria identificação entre autor e narrador sofreu um processo paralelo de apagamento; poucos romancistas hoje seguem o exemplo de Fielding em Tom Jones, cujo narrador mantém, à margem da história, um diálogo regular com o leitor através do qual se podem discernir alguns intentos mais conscientes. São todavia incontáveis as obras em que se torna visível um contraste, por vezes irónico, entre posições assumidas pelo narrador e pelo autor, ou entre o ponto de vista de determinadas personagens e o do narrador, coincida ou não a voz deste com a voz autoral.

As categorias literárias não são estanques e as obras que as ilustram são susceptíveis de cruzamentos e múltiplas gradações. Basicamente, a novel visou uma representação mais directa e testemunhal das possibilidades reais do mundo conhecido, ficando a palavra ‘romance’, na terminologia inglesa, a assinalar uma visão de possibilidades ideais ligadas ao mundo obscuro e menos consciente dos impulsos, desejos e sonhos subjacentes às acções humanas. Entretanto, a fábula permaneceu como narrativa de exemplificação moral e cuja finalidade didáctica se torna porventura mais decisiva em si mesma do que a construção a ela conducente. Muitas fábulas tradicionais apresentam títulos e nomes de persongens com manifesto simbolismo (cf. Christian, em Pilgrim’s Progress, de Bunyan). O que, aliás, ocorria nas moralidades do drama medieval e continuou a verificar-se quer no teatro quer noutros géneros, ainda durante o século XVIII, inclusive em romances de Richardson (Mr. B. em Pamela sugere a figura alegórica tradicional de Mr. Badman, assim como o nome Lovelace, do protagonista de Clarissa, pode simbolizar a negativa dominante do seu carácter: loveless), de Fielding (cf. Slipslop e Abraham Adams, por exemplo, em Joseph Andrews) e de outros autores. O nome dos protagonistas que dão o título a certas narrativas setecentistas de debate e ilustração de ideias, como Candide, de Voltaire, igualmente aponta para uma diferenciação didáctica, de preferência pelo geral em relação à particularização trazida pela novel. No entanto, a simbologia tipificadora ou reveladora de estereótipos humanos persistirá no romance moderno sobretudo quando de feição cómica ou de crítica socal (bem conhecido é o caso de algumas narrativas de Dickens). Certos críticos como F. R. Leavis e Richard Chase, por sua vez, têm amplificado o uso do termo ‘fábula’ de modo a incluir não só histórias cuja finalidade didáctica se traduz numa lição desafiadora de particularismos, mas também romances modernos de elaborção literalista da realidade e com personagens individualizadas, como os de Jane Austen, por entenderem que no respectivo padrão estruturante se inscreve um desígnio moral.

O posicionamento do romance moderno face à epopeia tem sido por vezes ambivalente. Mesmo na fase historico-cultural do surto da novel, um autor como Fielding invoca no Prefácio daquele seu primeiro romance moderno publicado (1742) o precedente homérico de Margites para justificar a proposta de uma ficção narrativa como ‘epopeia cómica em prosa’. A sua tentativa teórica, todavia, fica prejudicada pelo desconhecimento que se mantém desse pretendido precedente clássico e pela própria especificidade de cada uma dessas formas narrativas, epopeia e novel, correspondente a diversas exigências culturais das épocas que favoreceram uma espécie ou outra. E ao mesmo tempo que o autor augustano inglês procurava assim prestigiar a nova forma, justificava Richardson os seus romances em anotações ancilares tendentes a demonstrar a desadequação que número crescente de pessoas, autores e leitores, entendiam existir entre a epopeia clássica e o ideais culturais do tempo. É o caso, na Alemanha, por exemplo de C. F. Blankenburg (Ensaio sobre o romance moderno, de 1774), Goethe, Schiller e Hegel, que procuram confrontar a nova forma de ficção moderna e a epopeia — considerando esta só possível numa época ainda crente em certa harmonização entre natureza, homens e deuses, e na qual se conserva em parte vivo um teor de vida guerreiro. O romance moderno seria mais relevante para uma sociedade urbana e burguesa, de estabilidade firmada num individualismo matizado pela tradição cristã mas cada vez mais consciente do conflito entre interesses religiosos e seculares, entre as aspirações socio-culturais da pessoa comum e as prosaicas realidades que enfrenta. De resto, é discutível a compatibilidade entre a noção de heróico, inerente às epopeias, e a dimensão de comédia, reivindicada e conseguida por Fielding, a qual tem afinidades mais imediatas, como não deixa de transparecer, aliás, em muitas das suas páginas, com o romance de Cervantes e o ‘roman comique’ de Scarron. Aristóteles podia classificar as personagens da literatura grega de ‘melhores’ e ‘piores’ do que os leitores, conforme pertenciam à epopeia (as primeiras), ou à comédia (as segundas). Nem por isso a formulaica definição de romance moderno como ‘epopeia cómica em verso’ se torna mais convinente, até porque ele não tem que ser obra de comédia nem as respectivas personagens têm que ser estaticamente melhores ou piores do que o comum das pessoas reais, podendo oscilar e mostrar-se contraditórias — como muitas novels, a começar pelas de Fielding, viriam a evidenciar. Na ficção moderna, por outro lado, é a sociedade mercantilista, no sentido lato do termo, mas de crescente liberalização nas relações económicas e outras, que vai predominando. E mesmo tratando?se, por exemplo, de uma narrativa como Guerra e Paz, onde tão-pouco falta forte componente bélica, só a vasta amplitude do cenário e da rede de personagens (seguramente não a índole anti?heróica da obra) poderá viabilizar o rótulo de romance épico. Se não se pode excluir que numa época haja exemplos excelentes da recriação de modelos originais de epopeias muito anteriores, tal não invalida as tendências que se vêm aqui apontando e que permitem falar apenas de traços genéricos de identidade entre romance moderno e epopeia: considerável extensão narrativa e número de personagens, acção e enredo de complexidade apreciável.

As diferenças entre romance tradicional e moderno ou novel correspondem também, naturalmente, à diversidade de épocas socio-culturais propícias a um ou a outro. Historicamente, tanto na Grécia antiga como na Europa posterior, a sequência mais ostensiva vai da literatura heróica ao romance tradicional mais ou menos antigo, e deste ao romance moderno ou novel através de uma modificação marcadamente realista mas eventualmente contrariada por outras inflexões subsequentes. Às canções de gesta medievais, que reflectem uma época intermédia, seguem-se os romances (ou novelas) de cavalaria, que na sua prosa reflectem a vida mais estabilizada e sofisticada dos últimos tempos do feudalismo, de base predominantemente agrícola e senhorial, embora ainda com largos períodos de instabilidade politico-militar. O romance tradicional mais antigo assenta no idealismo etico-cultural que se reflecte num estereótipo, o cavaleiro que por efeito de cristã civilidade se torna cavalheiro, e no artificioso amor cortês — aspectos que não deixariam de encontrar expressão literária em épocas posteriores, se bem que integrados em diversa globalidade contextual e ficcional. Em primeiro lugar, porque ambos os aspectos fazem parte integrante e genuína de tendências vivenciais da pessoa humana, mesmo se os factores favoráveis à sua expressão podem variar com as condições historico-culturais. Em segundo lugar, porque muitos autores entenderam possível uma maior fidelidade ao real quando os inserem na sua ficção, ainda que para isso tenham de abdicar de algum verismo de pendor naturalista. Se, no entanto, tal fidelidade é sacrificada a desejos de escapismo e comercialismo, a exploração dos mesmos aspectos pode resultar numa inflação dos sonhos que certos leitores, um pouco como Don Quixote, mantêm acordados.

É de notar ainda que numa determinada conjuntura socio-cultural há geralmente exemplos de formas ficcionais mais características de épocas posteriores. Fantásticas aventuras em viagens interplanetárias como as narradas no século III d. C. por Luciano de Samósata em Verdadeira história reaparecerão, naturalmente com as suas diferenças, em obras dos séculos XVII (cf. Cyrano de Bergerac), XVIII (cf. Swift), XIX (cf. Júlio Verne) e XX (cf. ficção ‘científica’). Intermináveis infortúnios de dois amantes antes do seu eventual e definitivo reencontro, como se podem ler em Etiópica, de Heliodoro, ainda no século III d. C., têm tido incontáveis variações em épocas modernas. O mesmo se passa na tradição realista, de que há bastantes elementos precursores na literatura antiga. A festa de Trimalchio no Satyricon de Petrónio (século I d. C) é bem ilustrativa; e a exposição dos novos ricos ou parvenus nesta sátira menipeia antecipa exposição análoga em muitos romances modernos, do século XVIII em diante (cf., de Marivaux, Le Paysan parvenu). Nem é este o único caso típico de confluência entre sátira menipeia e romance moderno, como se pode ver, por exemplo, através de Tristram Shandy, de Sterne. A focagem realista da vida quotidiana de gente comum com vista ao entretenimento das classes médias urbanas, típicas da novel e da expansão setecentista da população ledora, tem, por sua vez, alguns antecedentes medievais. Um deles é o fabliau (pequena história em verso narrativo que trata usualmente de episódios amorosos envolvendo pessoas de condição menos elevada) com voga em França nos séculos XII e XIII, e de que há também exemplos posteriores, inclusive em Inglaterra (cf. O conto do moleiro, de Chaucer). Outro antecedente surge na rica sociedade de mercadores da Florença do século XIV, com Decameron, o famoso conjunto de novelas com que Boccaccio abre um caminho à ‘short story’ e até à ficção narrativa moderna, nomeadamente pela perícia na caracterização psicológica de personagens e na efabulação global. Igualmente em prosa mas mais extensas e menos conhecidas são outras obras do autor, Ameto, Fiammetta e Filocolo, que contribuíram para o mesmo encaminhamento verista. Fabliau e novella aproximam-se, de resto, por via de certo distanciamento nem sempre isento de humor cínico, em oposição à concentração idealista dos romances corteses. Com traços ainda mais próximos da novel situam-se, como se disse, as histórias picarescas espanholas. Contudo, pelo impacte da crítica à tradição cavalheiresca, por uma estrutura não meramente episódica mas envolvida na focagem persistente de um protagonista vário, e por um desenvolvimento baseado no regular confronto entre o idealismo de um cavaleiro e o realismo do respectivo escudeiro, Don Quixote (1600-1615) ficará, mais do que qualquer outra narrativa ficcional anterior ao século XVIII, a assinalar o limiar do romance moderno na Europa.

Não seria difícil acrescentar categorias e exemplos a partir de outros critérios, mas a documentação exaustiva de um processo tão vasto e facetado como é o da evolução da literatura narrativa, longo de séculos, excederia sempre os apertados limites impostos a um artigo de síntese como o presente. Por isso se optou por destacar o romance, enquanto principal subgénero narrativo moderno, e alguns aspectos da sua variadíssima tipologia que mais contribuíram para esse processo, com referência especial a obras capazes de documentar as experiências pioneiras que viriam a propiciar a maturação da novel. O que se justificará tendo em conta, designadamente, que a mudança nesse sentido verificada, especialmente na Inglaterra setecentista, é muito fértil em indicações sobre os caminhos desde então percorridos pela ficção narrativa, e que, apesar disso, nem sempre é bem conhecida ou avaliada nas suas consequências. Ao leitor interessado cabe complementar a informação aqui apresentada, recorrendo à bibliografia relevante.

{bibliografia}

Abbot H. Porter: The Cambridge Introduction to Narrative (2002); André Deutsch: The Language Library, (1977, ed. revista 1979); E. Muir: The Structure of the Novel (1967); J. Lintvelt: Essai de typologie narrative. Le “point de vue” (1981); Wallace Martin: Recent Theories of Narrative (1986)