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No seu livro O Grau Zero da Escrita (1953), Roland Barthes teoriza a passagem da unidade da literatura clássica (ou “burguesa”) para a pluralidade das “escritas modernas”. Este fenómeno de multiplicação, consequência da viragem histórica trazida pela Revolução Francesa, tem, segundo Barthes, um impacto directo na condição do escritor. Ao carácter normativo das regras clássicas sucede-se a escolha, que investe os autores de uma responsabilidade até aí ausente da instituição literária. O ensaio de Barthes intitulado “Escritores e Escreventes”, publicado em 1960, surge ainda na continuidade desta reflexão. A Revolução Francesa é apontada, uma vez mais, como momento simbólico em que a linguagem se torna “pública” e, acrescenta Barthes, deixa de estar exclusivamente em poder dos “escritores”. Segundo o autor, a escrita é apropriada por um novo grupo – os “escreventes” – e por intermédio destes torna-se instrumento de praxis.

Os escritores, diz Barthes no mesmo ensaio, funcionam dentro dos limites da instituição literária, descrita pelo autor como uma estrutura intransitiva, com regras próprias, distanciada do mundo social. Politicamente nulos – e, dessa forma, ao serviço da ideologia dominante – estes concentram as suas energias na acção sobre o objecto literário, no “como escrever” a obra. Para os escreventes, pelo contrário, “a fala não é senão um meio; para eles, a fala suporta um fazer, não o constitui”(p.211). Prosseguindo a caracterização destes últimos, o artigo di-los portadores de um pensamento essencialmente livre, “à margem das instituições e transacções” ( p.212) – o que parece contrariar a atenção que Barthes presta geralmente às implicações ideológicas de todos os discursos e a sua incredulidade em relação a “escritas ingénuas”. A este propósito, recorde-se o conceito barthesiano de grau zero da escrita ou escrita branca, “livre de qualquer sujeição a uma ordem fixa da linguagem.” (O Grau Zero da Escrita, p. 63). É aqui importante ressaltar que, para Barthes, a emancipação formal da literatura moderna – o facto de não se sujeitar a regras determinadas a priori – é condição indispensável do seu comprometimento político, só ela permite o surgimento de uma “moral da forma” (op.cit., p.22). Deixando para trás a instituição literária que circunscrevia o horizonte do escritor, o escrevente alarga o seu círculo de relações a toda a sociedade e inscreve-se na História.

Roland Barthes chama a atenção para o facto de nenhuma das categorias que dão o nome ao seu ensaio “Escritores e Escreventes” existir na sua forma pura – os autores movem-se, de uma forma geral, entre os dois papéis, dando origem a uma forma mitigada, o “escritor-escrevente”. O problema que se nos afigura fundamental nesta dicotomia, no entanto, é outro. Neste ensaio, Barthes não equaciona uma dimensão que caracteriza a sua visão da escrita moderna, tal como ela nos surge noutros escritos: a auto-reflexão. Barthes sugere em “Escritores e Escreventes” que estes últimos encaram a literatura como meio, dando ênfase à dimensão pragmática do texto e atribuindo menor importância a “como escrever” a obra. Ora, aquilo que nos é sugerido pela obra de Barthes é que a linguagem não alienada é precisamente aquela que perde a sua ingenuidade e se vira para si própria, ao mesmo tempo que está atenta ao presente. Estas duas dimensões da escrita são cúmplices numa articulação eficaz com o processo social e tanto uma como outra se opõe ao fechamento institucional da escrita clássica.

O comprometimento político barthesiano, marcado como é pela indeterminação do sentido e por uma reflexão sistemática acerca do modo de dizer as coisas, será sempre oblíquo. Como afirma Barthes em “A Resposta de Kafka” – um ensaio do mesmo ano de “Escritores e Escreventes”- “o escritor é como um artesão que fabricasse seriamente um objecto complicado sem saber segundo que modelo nem para que uso.” (in Ensaios Críticos, Ed. 70, 1977, p.193)

{bibliografia}

Roland Barthes, O Grau Zero da Escrita (Lisboa, 1989); “Escritores e Escreventes”, in Ensaios Críticos (Lisboa, 1977).