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Palavra do grego que significa reconhecimento. Aristóteles utilizou este termo na sua Poética para se referir à tomada de consciência por parte do herói trágico de um erro que ele próprio terá cometido num passado mais ou menos remoto e que o terá conduzido à perdição presente.

Na tentativa de compreender a natureza do ser humano, sobretudo nas vertentes ética e política, o fundador do Liceu dedica-se, ao longo de vários escritos, a inquirir acerca daquilo que para o homem são, no fundo, os três grandes pilares da moral, a saber: a virtude, a felicidade e a justiça. Embora a sua Poética obra onde procura munir-se de instrumentos de análise e de conceitos que lhe permitam interpelar de forma crítica as múltiplas realizações da poesiahelénica não seja, de entre esses escritos, o mais vocacionado para explorar exaustivamente as matérias que constituem o domínio ético, facto é que também aqui vamos encontrar algumas reflexões afins. Na realidade, Aristóteles não se pode subtrair aos problemas morais que derivam das acções humanas acções que são justamente o objecto de imitação de toda a poesia. No caso particular da tragédia, algumas dessas acções revelam as limitações do espírito humano e a sua incapacidade para se libertar do contingencial, do imediato. O herói trágico acaba sempre por agir contra si próprio apesar de se convencer de que domina a situação em que se encontra. Só mais tarde, quando a cadeia de acontecimentos se abate sobre esse ser afinal indefensável, se torna visível o dantes era oculto. É nesse momento que se dá o reconhecimento

Nos capítulos X e XI, Aristóteles introduz a questão do reconhecimento ao distinguir a fábula simples da complexa. (Adoptamos aqui a tradução do termo tal como se nos é apresentada na versão portuguesa de Eudoro de Sousa de 1964; na de 1994, o mesmo termo é traduzido por mito. Dado que esta palavra no português contemporâneo está fortemente conotada com o fantástico e/ou o religioso, afasta-se daquilo que “poderia acontecer, quer dizer: o que é possível, verosímil e necessariamente”(1451a 36)). Aquilo que define a fábula é o facto de imitar uma acção que efectua uma mutação de fortuna marcada pela peripécia () e pelo reconhecimentoRevisitemos as palavras do filósofo:

O reconhecimento, como indica o próprio significado da palavra, é a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para amizade ou inimizade das personagens que estão destinadas à dita ou à desdita. A mais bela de todas as forma é a que se dá juntamente com a peripécia, como, por exemplo, no Rei Édipo. [Esta é] aquela que melhor corresponde à essência da fábula e da acção, porque o reconhecimento com peripécia suscitará terror e piedade, e nós mostrámos que a tragédia é a imitação de acções que despertam tais sentimentos. E demais a boa ou má fortuna depende das mesmas acções. (1452a 30-1452b 2)

O discípulo de Platão coloca-nos perante uma questão que não se limita à discussão dos atributos que melhor qualificam um qualquer  como trágico. Está em causa algo mais vasto e complexo que se prende justamente com os próprios fundamentos da filosofia aristotélica, em particular os processos de aquisição do conhecimento. Se, tal como alega, aquilo que distingue o homem dos restantes seres vivos é o facto de possuir uma alma intelectiva, então cumpre-lhe tentar desenvolver as capacidades mentais, desbravando, com base nas sensações, caminho em direcção à verdade. Isso não se processa, porém, a partir da ordem errónea com que essas sensações chegam ao intelecto. Impõe-se, pelo contrário, o procurar abstrair-se daquilo que a alma sensitiva lhe fornece, fazendo remontar os efeitos às suas causas. Ou seja, só atingimos o verdadeiro conhecimento indutivamente, quando se revela a necessidade das causas e o modo pelo qual elas se concatenam umas nas outras para gerar determinados efeitos.

Não é esta demanda pela verdade, todavia, aquilo que confere ao reconhecimento dimensão trágica. O que mergulha o indivíduo no desespero irredimível, na contemplação do mais absoluto terror, não é tanto a apreensão daquilo que está na origem da sua queda quanto a insuportável percepção de que sua integridade moral foi estilhaçada por um seu próprio acto ou juízo. Incorrer num erro  que pode ter por consequência a própria morte, seja a dele, seja a daqueles que formam o seu universo afectivo, e admiti-lo, eis o que está no centro da experiência trágica.

A contemplação da verdade precipita outro elemento característico da tragédia segundo os cânones aristotélicos, i.e., a catástrofe: a existência humana torna-se insustentável, conduzindo ora à auto-mutilação, como em Édipo Rei, de Sófocles, ora à loucura e à morte, como em Rei Lear, de Shakespeare, ora ao suicídio, como em Emilia Galotti, de G. E. Lessing.

Mas não é apenas no género dramático que o reconhecimento encerra a personagem num labirinto inescapável de sofrimento. Em muitos textos de natureza diversa vamos encontrar também esse momento crucial em que à iluminação do espírito do protagonista se sobrepõe a mais sombria das experiências emocionais. Os textos bíblicos, por exemplo, nas suas caleidoscópicas visões da moral divina, encerram muitos momentos em que os homens são amiúde confrontados com o fruto da sua fraqueza. Não admite o fraticida que «é maior a minha maldade que a que possa ser perdoada» (Génesis, 4.13)? E o que dizer de Pedro, assaltado por aguda dor ao descobrir que inscrevera no seu cadastro moral a mais abjecta das reacções ao negar o seu Mestre três vezes, quando pouco tempo antes prometera assinar com o próprio sangue o vínculo que o ligava ao Nazareno (S. Mateus, 26.35)?

Isto não significa, contudo, que o divino ou os seus ditames morais seja a única força motriz desse instante epifânico em que todas as dúvidas sobre a nossa natureza se dissipam. É certo que, neste ou naquele texto, a presença intimidatória de uma entidade suprema se insinua na confissão do espírito mais intrépido, mas para o homem emancipado de Deus (ou, para todos os efeitos, de qualquer ideia de divino) a dor não é menos intensa, a aflição menos sufocante. No caso da Aparição, por exemplo, a voz existencialista de Vergílio Ferreira acaba por construir duas dimensões do reconhecimento. Por um lado, é Alberto Soares, o narrador-personagem-principal, que no epílogo expia a arrogância dos seus ensinamentos admitindo-se como culpado, enfim, na doutrinação do assassino de Sofia: «Ao contrário do que esperava, não fui notificado para o julgamento do Carolino. Da minha culpa, aliás, quem poderia decidir além dele, de mim, de nós, dos que sabem a linguagem que é ignorada pela lei?». Por outro, é o próprio Virgílio quem tenta comunicar uma revelação que, nas palavras de Eduardo Lourenço, «consiste no incomunicável da verdade dessa mesma revelação». Escritor e personagem palmilham ambos, afinal, um mesmo terreno onde todo o conhecimento conduz ao reconhecimento da sua própria falência, logo à impossibilidade de se erigirem certezas que sustenham a existência humana.

Embora o reconhecimento só pareça ganhar sentido dentro de uma determinada economia narrativa, também em certas realizações literárias desprovidas de um fio diegético, como é o caso da poesia lírica, ele está presente, em particular no tom confessional que informa o olhar do poeta sobre a sua própria vida, ela tomada como metáfora de tragédia: «Erros meus, má fortuna, amor ardente,/Em minha perdição se conjuraram;/ Os erros e a fortuna sobejaram,/ Que pera mim bastava o Amor somente.» E adianta: «Errei todo o discurso dos meus anos/Dei causa a que a Fortuna castigasse/As minhas mal fundadas esperanças.» (Camões) Outro, séculos mais tarde, também admitia: «Razão feroz, o coração me indagas,/ De meus erros a sombra esclarecendo…» (Bocage, «Sobre estas duras, cavernosas fragas»).

 

Bibliografia:

 

Aristóteles: Poética. Tradução de Eudoro Sousa (1964, 1994); Penelope Murray (ed.): Classical literary criticism (2000); Joseph S. Catalano: Thinking matter: consciousness from Aristotle to Putnam and Sartre (2000); Patricia Garrido Camacho: El tema del reconocimiento en el teatro español del siglo XVI: la teoría de la anagnórisis (1999); Kenneth McLeish: Aristotle’s Poetics (1998).