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Termo que, em narratologia e dramaturgia, se opõe ao de herói, numa dupla acepção.

1. Enquanto protagonista da história narrada ou encenada, o anti-herói reveste-se de qualidades opostas ao cânone axiológico positivo: a beleza, a força física e espiritual, a destreza, dinamismo e capacidade de intervenção, a liderança social, as virtudes morais. Uma vez que a avaliação do herói, feita pelo leitor/espectador, assume sempre aspectos subjectivos, uma vez que, no quadro da apreciação humana das situações de vida e dos acontecimentos, a ambiguidade dos pontos de vista é uma constante, que se inscreve no carácter dialéctico da condição humana, qualquer reacção do protagonista é sempre susceptível de interpretações antagónicas. Assim, na Ilíada, a arrogância de Agamémnon, ao apoderar-se da escrava Briseida, de Aquiles, quando Apolo desencadeia a peste no campo dos Aqueus, como represália pela tomada de Criseida, filha de Crises, seu sacerdote, como despojo de guerra, tal arrogância pode ser lida como uma reacção máscula e afirmação de poder, próprio do chefe, mas também como um abuso desse poder e uma afronta ao príncipe dos Mirmidões. De igual modo, a cólera de Aquiles, como reacção a esse abuso do poder do chefe, pode ser interpretada como um direito legítimo, oriundo da dignidade individual, mas também como um excesso egocêntrico, cujas consequências porão em perigo a vitória dos seus compatriotas. O próprio Ulisses, entre os Sofistas, era recorrentemente objecto de debate: uns admiravam a sua astúcia versátil (polytropon); outros viam nele um mentiroso (Cf. Platão, Hípias Menor). Deste modo, nesta acepção, os protagonistas dos poemas homéricos nem sempre são susceptíveis de uma leitura heróica, mas apresentam também facetas de anti-heroísmo. Por outro lado, a ideologia do leitor/espectador condiciona sempre a leitura do comportamento dos heróis épicos, sobretudo na nossa época, bastante avessa aos códigos aristocráticos. Na tragédia grega, Eurípides, mais do que Sófocles, tem o condão de marcar o comportamento de alguns dos seus protagonistas com a polémica caracterização do excesso, como Medeia, levada pela paixão ciumenta em relação ao marido (Jasão), assassina os filhos comuns, ou Fedra, que se suicida, frustrada com a castidade de seu enteado Hipólito, que o faz ser insensível à sua sedução.

É, todavia, com a paródia que a figura do anti-herói mais se afirma, rompendo com o retrato exemplar dos heróis tradicionais da epopeia. A comédia grega, através da ironia e do sarcasmo, põe em causa, pela pena de Aristófanes, a educação sofística, ridicularizando na figura de Sócrates a incapacidade de distinção entre o raciocínio justo e o injusto (As Nuvens); ou a ética de Eurípides, acusado por Ésquilo de não ocultar o vício e corromper a juventude (As Rãs). A Batraquiomaquia, atribuída a Homero, mas dois ou três séculos posterior, parodia a Ilíada, apresentando os deuses olímpicos envolvidos em combates como ratos e rãs. No romance, Petrónio, no Satiricon, e Luciano, na História Verdadeira, parodiam a Odisseia, as viagens de Ulisses e os seus combates épicos. O próprio Lucano, ao propor, no poema Farsália, uma oposição libertária ao cesarismo (livros IV-X), já que em César dominam os aspectos negativos, esboça uma anti-epopeia. Na sátira latina, Juvenal denuncia a degradação moral da sociedade imperial, envolvendo pessoas ligadas a Domiciano (Sátira IV); Séneca apresenta, na Apocolocyntosis, a caricatura do imperador Cláudio.

Na Idade Média, o sirventês occitânico, os poemas dos goliardos, as cantigas galego-portuguesas de escárnio e maldizer, os contos de Chaucer, satirizam a alta sociedade da época, figuras que representam autênticos anti-heróis. O teatro vicentino, na transição entre Idade Média e Renascimento, merece particular menção na sátira social a todas as classes e grupos, em especial o clero, a aristocracia, os agentes da Justiça.

No Renascimento, o romance picaresco ocupa lugar de primazia na configuração de um anti-herói, agora arvorado em novo tipo de herói: baixa ascendência, fanfarrão, manhoso, mentiroso, valentão, trapaceiro, ladrão. O Lazarillo de Tormes (1554), o Guzmán de Alfarache (1599/1604), de Mateo Allemán, El Buscón (1626), de F. de Quevedo, La Pícara Justina (1605), de F. López de Úbeda, são as obras mais representativas deste tipo original de representação de herói, bem consentâneo com a sociedade barroca espanhola, marcada pelo contraste entre luxo e miséria, aristocracia e plebe, parecer e ser. A sátira seiscentista, francesa, inglesa ou espanhola, reforça o retrato do anti-herói.

O poema herói-cómico, com Le Lutrin (1672), de Boileau, The Rape of the Lock (1712), de Alexander Pope e O Hissope (1812), de António Dinis Cruz e Silva, constitui um particular exemplo do anti-herói, concebido como uma ridicularização das questões triviais, como se fossem algo de essencial à vida humana. O romance iluminista, por seu turno, com Voltaire, Diderot, Swifft, Sterne, etc., problematiza, através da ironia, a sociedade setecentista europeia, com seus valores morais e religiosos.

O romance realista e naturalista acentua, no século XIX, o distanciamento do escritor em relação à sociedade romântica e pós-romântica, com os seus paradigmas e clichés, como o dandismo, o diletantismo, a frivolidade burguesa e o desencanto com o sistema liberal herdado da revolução industrial e com a crença redentora no progresso social e tecnológico (Flaubert, H. de Balzac, E. Zola, Pérez Galdós, Ch. Dickens, Tolstoi, Eça de Queiroz).

No século XX, personagens grotescas e rebeldes configuram uma visão deformada do mundo contemporâneo, contestada pelo herói (anti-herói), em obras como Ulysses, de Joyce; L’ Étranger, de A. Camus; Luces de Bohemia, de Valle-Inclán, entre outras.

2. Na segunda acepção, anti-herói é sinónimo de antagonista, ou personagem que se opõe ao protagonista da história narrada ou encenada.

Na Odisseia, a figura colectiva dos pretendentes constitui um anti-herói em relação a Ulisses, esposo de Penélope, regressado a Ítaca, após vinte anos de ausência (dez de guerra e dez de errância). Turno, rei dos Rútulos, representa, para o herói troiano, investido na missão da fundação de novo reino, em Itália, também desempenha a função de anti-herói, até no contraste comportamental com o pius Aeneas. Na Farsália, de Lucano, Pompeio opõe-se a César como um anti-herói, vergado pelo peso dos anos, carente de experiência guerreira e de chefia militar, resultando de tal conflito um abalo cósmico para Roma, protagonista colectiva que sofre as consequências desta desagregação interna, expressas na crueza hiperrealista da violência e da desolação.

Na tragédia grega, o anti-herói é profusamente ilustrado na tirania de Creonte (Antígona, de Sófocles) ou no adultério criminoso de Clitemenestra (Agamémnon, de Ésquilo).

A luta entre o Bem e o Mal, alegorizada no conflito entre heróis e anti-heróis, nas epopeias védicas (Mahâbhârata e Râmâyana), na Bíblia (anjos versus demónios), nas epopeias persa, africanas ou chinesas, nas canções de gesta medievais.

Na versão da pós-vulgata da Demanda do Santo Graal, o par Lancelot-rainha Genebra, pelo seu adultério, é considerado um anti-herói em relação ao paradigma medieval da demanda da virtude como ideal da perfeição humana, protagonizada por Galaaz.

O conflito de civilizações (Ocidente –Oriente), já presente na Chanson de Roland ou no Cantar de mio Cid (Cristãos-Sarracenos) encontra nas epopeias renascentistas (de Boiardo, Ariosto, Camões ou Torquato Tasso) um extraordinário eco, reflectindo-se tal conflito, n’ Os Lusíadas, no debate e na acção dos próprios deuses (Vénus versus Baco: Europa versus Ásia).

Na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (1614), obra complexa da literatura portuguesa de viagens, o anti-herói, se bem que também seja o Mouro, o Turco ou o Achém, curiosamente, não é tanto o Asiático (Indiano, Chinês ou Japonês), mas o próprio Português, numa autocrítica colectiva que não encontra paralelo em outra literatura: o próprio corsário António de Faria protagoniza esta imagem do anti-herói, violador dos túmulos sagrados dos reis da China, ladrão da lanteá do adolescente ou da noiva chineses. A contra-imagem do herói nacional também se espelha de modo acutilante na sátira seiscentista Arte de Durtar, atribuída ao padre Manuel da Costa.

No teatro vicentino, são os poderosos que assumem um comportamento anti-heróico, sendo, por isso, punidos no Auto da Barca do Inferno e merecendo igual destino no Auto da Barca da Glória. O abuso do poder também está representado nos dramas de Lope de Veja (Fuente Ovejuna, Peribáñez, El mejor Alcalde el Rey), cujas figuras (O Comendador e D. Tello) se opõem à felicidade do protagonista.

No romance realista, o herói romântico, insistentemente ridicularizado (veja-se o Tomás de Alencar, n’ Os Maias, de Eça de Queiroz), não passa quase sempre de um estereótipo de anti-herói, enquanto o romance neo-realista critica, quando não humilha, os poderosos, como o monarca setecentista D. João V, em contraste com a apologia feita ao par protagonista Baltasar Sete-Sóis/ Blimunda Sete-Luas, no romance Memorial do Convento, de José Saramago.