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Mais do que contexto, o prefixo “pré” depende do texto, ou melhor, do significante que compõe e estrutura. Assim, no signoPré-Rafaelismo”, esse prefixo confere ao signo um sinal positivo, na medida em que os artistas ingleses – poetas e pintores -, inscritos naquela estética finissecular, recusavam toda estética pictórica posterior a Raffaello di Sanzio ( 1483-1520), responsável, segundo a Confraria Pré-Rafaelita (Dante Gabriele Rossetti, W. Holman Hunt, J. Everett Millais), pela degenerescência da pintura. Já no adjetivo “preestabelecido” haveria uma conotação indiferente, quase neutra, se algum signo pudesse, jamais, não ser comprometido, de antemão, com uma ética e com a estética que postula. No signo composto “pré-socrático”, a parte “pré” do significante soa, no mínimo, estranha, podendo adquirir significação ora positiva, ora negativa. No rol dos que desvalorizam a leva de filósofos gregos, assim denominados, inscrevem-se Sócrates, Platão e Aristóteles, considerados os fundadores da filosofia grega e, por metonímia, da própria filosofia ocidental. Capitaneando a fila dos filósofos que atribuem um valor significativo a esses filósofos,.alçam-se os alemães G. W. F. Hegel, Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger. Para além da ambigüidade de valoração, o termo “pré-socráticos” encerra, em seu prefixo, um equívoco, na medida em que alguns desses filósofos são contemporâneos de Sócrates. Daí, podermos inferir a hegemonia da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, que considera Sócrates o verdadeiro fundador da filosofia ocidental, o marco inicial da filosofia do Ocidente, a gênese do pensamento grego.

No excelente Diccionario de filosofía, o espanhol José Ferrater Mora discute se os filósofos pré-socráticos são os “primeiros filósofos”, discussão a que responde com quatro alternativas: 1. Seriam eles os primeiros filósofos porque “antecipadores, ingênuos e inconscientes, do que somente alcançou maturidade com Platão e Aristóteles”; 2. Os Pré-socráticos foram os primeiros filósofos , não no sentido de uma antecipação ingênua e inconsciente, mas em um sentido fundamental. Com efeito, as posições fundamentais da filosofia ocidental (pelo menos na metafísica) foram tomadas pelos pré-socráticos, de modo que a história posterior da filosofia consiste substancialmente em repetir e refinar o que os pré-socráticos formularam; 3. “Os pré-socráticos foram os primeiros filósofos no sentido de serem os ‘filósofos originários’. Segundo essa opinião, a história da filosofia não é um progresso, mas uma busca do Ser, em que não há aperfeiçoamento como ocorre na ciência e na tecnologia. Já Nietzsche havia sustentado (em La filosofía en la época trágica de los griegos) que Sócrates destruiu a conexão necessária entre a filosofia e o mito, que era viva entre os pré-socráticos; a ‘abertura ao Ser’ dos pré-socráticos foi, por conseguinte, ‘fechada’ por Sócrates. Opinião análoga mantém Heidegger, quando diz que a tarefa da filosofia consiste em ‘repossibilitar’ a citada abertura mediante a destruição da história da ontologia (conforme propunha em Sein und Zeit) e mediante um salto à autenticidade que faça do homem ‘o pastor do Ser’ (como escreveu em Holzwege). O regresso aos pré-socráticos é pois, segundo essa tese, algo muito diferente da adoção de uma filosofia anterior”; 4. Não pode dar-se aos pré-socráticos o título de ‘primeiros filósofos’. Por um lado, não se deve esquecer a contribuição do pensamento ‘oriental’ (Egito, Ásia Menor, Fenícia, Mesopotâmia). Por outro lado, há outras manifestações filosóficas, além da dos pré-socráticos, que podem considerar-se como origens da filosofia (China, Índia)”.

Também chamados de “sábios”, “físicos” ou “fisiólogos”, isto é, aqueles pensadores cujas cosmogonias objetivam um estudo ou reflexão (logos) para explicar a natureza (physis), são estes, por ordem cronológica, os principais pré-socráticos, assim classificados, desde a publicação, em 1903, de seus fragmentos por H. Diels: Tales de Mileto, matemático e filósofo; Anaximandro e Anaxímenes, que se costumam englobar na denominação de Escola de Mileto (entre 640 e 480 a. C); Pitágoras e os pitagóricos, ou Escola Itálica (entre 570 e 480 a. C); Heráclito de Éfeso (545-480 a. C.); Xenófanes e Zenão, ou Escola de Elea (entre 570 e 420 a. C.); Diógenes de Apolônia ; finalmente, os “novos físicos” Empédocles, Anaxágoras, Leucipo e Demócrito. O filósofo espanhol, acima intertextualizado, pergunta-se, ainda, se os sofistas devem ou não ser incluídos entre os Pré-Socráticos, pergunta a que responde categoricamente: “Nosostros seguimos la tesis de la separación entre presocráticos y sofistas, pero no ignoramos por ello los estrechos lazos que los unen y aún consideramos que la aparición de los sofistas representa una crisis dentro de la crisis que se manifestó ya con el advenimiento de la filosofía en la vida griega”.

Da obra pré-socrático chegaram até nós apenas fragmentos, recolhidos por compiladores, em geral muito posteriores; também Aristóteles faz certas exposição da doutrina pré-socrática, sempre em relação com sua própria filosofia, constituindo, destarte, uma fonte secundária. Teriam os pré-socráticos escritos em fragmentos ou os fragmentos que recebemos são resquícios? Eis, talvez, uma verdadeira aporia. Em todo caso, os fragmentos pré-socráticos bastam para configurar um pensamento filosófico originário, original e seminal. Independentemente, portanto, de sua natureza original – fragmentária ou não -, o legado pré-socrático que o rio ( e “rio” é uma metáfora pulsante em Heráclito, constantemente retomada, por exemplo, pelo escritor argentino pós-moderno Jorge Luis Borges) da história nos trouxe marca-se por uma forma poética com conteúdos cosmogônicos, antropológicos, morais, teológicos… Esses fragmentos não têm uma natureza apenas poética, tampouco filosófica, dado que estruturam um discurso, em que a forma poética torna-se essencial para (re)velar um conteúdo filosófico : o “poético-noemático” assume uma natureza de enigma, diferente, pois, da racionalização imposta pela filosofia que recalcou o pensamento pré-socrático. Pelo seu caráter fragmentário e por seu traço essencialmente poético, a filosofia pré-socrática não é de fácil leitura, até porque esses filósofos “primeiros” pouco se interessavam pela lógica da filosofia dominante de Platão. Aliás, Heráclito já fora, na Antigüidade, nomeado “o obscuro”. O filósofo brasileiro Donaldo Schüler pondera, por exemplo: “Heráclito, ao dizer que o oráculo de Delfos não declara nem oculta mas significa, define, com certeza, o seu próprio discurso. Sentindo a insuficiência do sistema lingüístico para desvendar o mistério do mundo, desenvolveu uma linguagem ambígua, alusiva, multissignificativa, apta a apanhar a complexidade da realidade apenas entrevista, discurso que gera outros discursos em corrente sem fim determinável”. Haurindo na fonte perene do mito grego, os Pré-socráticos enunciam, na aurora da filosofia ocidental, interpretações do cosmos e de sua relação com o ser humano: pioneiramente, Demócrito investiga os primeiros elementos e suas combinações, a existência dos “átomos”. Nessa filosofia, saber e poesia ainda são sinônimos, sem a cisão posterior, decretada pela filosofia hegemônica, que impõe a prudência e o método rigoroso. Não admira a fascinação que os Pré-socráticos exerceram sobre Nietzsche, que os considerava “os verdadeiros filósofos”, em que a arte, o pensamento e o saber ligam-se fundamentalmente. Para além do traço poético, que une todo o discurso pré-socrático, Ferrater Mora considera que um “rasgo común de los presocráticos es el haber suscitado, a través de sus especulaciones cosmológicas y cosmogónicas, muchos de los problemas capitales de la ulterior metafísica”.

Tomando Heráclito como emblema dos filósofos pré-socráticos, inserimos um fragmento de Heráclito e seu (dis)curso, do pensador gaúcho Donaldo Schüler: “ De Heráclito (540-480 a. C.) a nós algo se modificou. O mundo se distanciou, como o sentiu Rilke. Somos prisioneiros de signos. Heráclito sentia o mundo uno, vivo e ativo, unido pelo Discurso, que fazia falar – o homem e o universo. O Discurso vive no discorrer, o todo repercute nas partes. Fluxos são também sons como os da lira, percursos como os da flecha, a flecha verbal penetra na polpa viva das coisas, flecha em que já pensava Homero ao falar em palavras aladas. Flechas discursivas ligam falante e universo, harmonia de ritmos e de sons. O ritmo do universo treme na fala, corpo sonoro, verbal, musical. A unidade no fluir, limites que abrem. Dados que rolam no rolar das águas, que ao rolar desvelam, jogo. Do jogo inaugurado por Heráclito participamos”. Se Maria Bethânia, em seu mais recente e esplendoroso show, afirma que “no fundo do mar tem rio”, continuam a fluir, no mar das civilizações, o rio heraclitiano e os fragmentos pré-socráticos.

{bibliografia}

José Ferrater Mora, Diccionario de filosofia, v. III, p. 2895-2897. Donald Schüler, Heráclito e seu (dis)curso.