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Não existe na designação Prosa poética contradição de termos, ao contrário do que possa supor. Com efeito, discurso em prosa (prorsa oratio, “Discurso que avança”) opõe-se a discurso em verso (“discurso que avança e retrocede”), e não a poesia. Prosa e verso são dois princípios de segmentação do discurso (há outros, como a lista, em que a linearidade é substituída pela sequencialidade vertical, ou como a constelação da Poesia Concreta). Não se pode de qualquer modo esquecer que primeira forma de expressão literária é o discurso metrificado. Só relativamente tarde surge a prosa, em escritos filosóficos e, depois, no romance helenístico. Aqui o princípio da referencialidade narrativa sobrepõe-se pela primeira vez ao princípio rítmico na elaboração do discurso literário.

Curtius e Ribémont referem o facto de na Idade-Média verso e prosa alternarem com facilidade e frequência, havendo inclusivamente um exercício de escola que consistira em transformar o discurso metrificado em prosa livre. O contrário, a versificação do discurso em prosa, também não era coisa rara. Acima da cisão (discurso em) verso (discurso em) prosa estava a regência dos princípios gerais da Retórica, que impunham á prosa de estilo a clausula ritmada, isto é, a conclusão do período operada dentro de certas regras de vocalismo e de acentuação. Em latim tardio, assim como em vernáculo medieval, a clausula foi reduzida ao cursus (planus, tardus, velox), três tipos de acentuação rítmica finalizante. E se é facto que estas regras se perderam, a verdade é que todo o bom prosador narrativo encontra intuitivamente um ritmo adequado para os seus fechos de período.

Com a Renascença floresce enfim a prosa narrativa livre de imposições rítmicas rígidas, de acordo com o espírito humanizante da época, avesso aos requintes, requebros e enigmas discursivos que colocavam p. ex., os romances de Chrétien de Troyes. Boccaccio, Margarida de Navarra, Thomas Morus, Erasmo são alguns exemplos. Esta prosa narrativa, embora usasse o ritmo como fonte de elegância ilocutória, apresentava unidades mínimas discursivas, isto é, frases, regidas primariamente pelo princípio gramatical. O verso continua então a constituir-se como a unidade mínima dum discurso regido primariamente pelo princípio rítmico. A Prosa poética virá representar um compromisso na importância relativa dos dois elementos formantes do discurso: o semântico e o formal. O que a caracteriza é a manutenção, ainda que por vezes à espera de ser desocultada, do princípio rítmico, em detrimento do semântico narrativo. Sendo assim, a função referencial da narração perde em importância no caso da Prosa Poética: “It seems obvious that an increasing number of books advertising themselves as novels refuse to tell tales” (Hayman, cit.). Poderia dizer-se também assim: “refuse to bes read as tales”. Ou seja, como discurso que avança, discurso tendente a um desfecho, a um fim. Tudo isto se exemplifica p. ex., em Beckett: “The reader of Molloy waits not for somethings to happen so much as for something to be said, something taht can pass for an event on the page” (Hayman, cit.).

Mas nem é preciso mobilizar Beckett, ou Joyce, ou os poetas do Oulipo: “Même lorsqu’íl accorde une importance capitale au sens du message qu’il entend délivrer (C’est-à-dire à ce qu’il y a de comum entre le texte et une traduction), l’écrivain ne peut pas ne pas être sensible aux structures qu’il emploie et ce nést pas au hassard quíl adopte une forme au lieu d’une autre”. O começo da descrição da serra, na chegada dos amigos de Paris, n’A cidade e as Serras, é dado no enunciado seguinte: “A grandeza igualava a graça”, o que pode ritmicamente reduzir-se à equação (gr=gr). Estamos perante a realização duma das exigências da Prosa poética, realização pontual numa obra de prosa narrativa: a motivação rítmica.

Não esqueçamos no entanto que já Aristóteles se referia a livros científicos em discurso matrificado, não os considerando poesia. Ao discurso pertence, além do ritmo que o fundamenta exteriormente, a imagética que decorre da revelação subjectivae instaura um enigma semântico e semiótico, decorrente duma “necessidade interna”, não semanticamente mediada. “Desvinculadas da sua racionalidade utilitária, as coisas do mundo – até as mais insignificantes ou primitivas – têm a possibilidade de se mostrarem belas pela “Necessidade Interna” (Rosenfield, cit.). Qualquer tema serve com efeito à Prosa poética (não há temas em si poéticos ou não ), contento que perca as arestas objectivas e utilitárias, uma das quais é a que pode chamar-se “ética da narrativa”, ou seja, o caminho em direcção a um fim exemplar. A Prosa poética leva assim não tanto à fruição semântica, como á fruição das unidades semióticas e, especificamente, de pronúncia, com marcação de pausas e atenção especial á articulação, á entoação e à criação de melodia. pode haver mesmo interferência na coerência lógico-semântica, bem como na fonologia e sintaxe (Joyce), ou apenas discretas manifestações em puros inserts ( caso citado de Eça de Queirós). O limite é o do “self-generating text”, que de certo modo inverte a função mimétoica do discurso, começando por apresentar-se como puro processo e tornando-se, pouco a pouco, substância gerada pela estrutura verbal, num apelo sobretudo à função sugestiva.

Se a linguagem quer dizer (tem função semântica) e, ao mesmo tempo, é (é uma organização com concretude própria), então estas duas funções vão até à latência da segunda no discurso narrativo pragmático, e podem ir até à quase latência na Prosa poética. O conceito remete para o Romantismo, com a sua desagregação dos géneros, e assunção do fragmentário e do misto. Mesmo assim, no Table Talk, Coleridge é ainda rígido na diferença que estabelece entre prosa e poesia, e vai mesmo ao ponto de afirmar que na prosa as palavras só devem significar e nada mais. Interessante, pela sobreposição (afinal mimética) do princípio da verossimilhança estilística ao dogma canónico do género, é a reflexão que Almeida Garrett faz no prólogo ao Frei Luís de Sousa, onde fundamenta a sua decisão pela prosa. Wolfgang Kayser dá o exemplo acabado da correcção do discurso com intenção poetizante: “do bramido do mar e do rugido das ventanias “ vs. “ do bramido do mar e do rugido dos ventos”, primeira versão e versão definitiva dum passo de eurico de Alexandre Herculano: “A substituição de ventanias por ventos cria dois grupos de palavras absolutamente iguais. São duas redondilhas copuladas, que se correspondem ritmicamente até nos pormenores mais pequenos, e nas quais a rima exterior e a interior tornam completa a simetria. Aqui não pode calcular-se que quaisquer impulsos partiram do semântico; aqui, evidentemente, a ênfase rítmica actuou como motivo da modificação.”

Em casos em que, como neste, impera a simetria rítmica, a Prosa poética é fácil de reconhecer. Se no entanto o critério é interno, então pode pôr-se ainda a questão Prosa poética vs Verso livre. A fronteira está nesse caso na visilegibilidade do texto, e isso poderá corresponder à intenção a que S. J. Schmidt chama “intenção de efeito”, em oposição à “intenção de comunicação”. A fala da loucura de Lear (Ay, every inch a king” King Lear, IV, 6) surge nalgumas edições em prosa, e não no canónico verso livre. A opção por uma prosa em si claramente poética representa no entanto neste caso a desintegração da visilegibilidade da poesia. Neste sentido, a Prosa poética é prosodicamente sempre prosa.

{bibliografia}

A. M. Schmidt, Oulipo: la littérature potentielle, 1973; B. Ribémont, “Vers et prose dans lécriture à caractére scientifique médievale: l’exemple de l’encyclopédisme”, in XX Congrès International de Linguistique et Philologie Romanes, V (VIII), Tubinga, Basileia, 1993; C. W. Hayes, A study in prose styles, 1966; D. Hayman, Re-forming the Narrative, 1987; E. Norden, Die antike Kunst-Prosa, 1898; E. R. Curtitus, Literature europea y edad media latina, 1981; F. Mayer, Schöpferische Sprache und Rhythmus, 1959; G.-G. Grager, Essai d’une philospphie du style, 1968; H. Lausberg, Elementos de Retórica Literária, 1993; J. Whatmough, Poetic, scientific and Other Forms of Discourse, 1956; J. L. Austin, How to do Things with Words, 1962; K. H. Rosenfield, A linguagem liberada, 1989; L. T. Milic, Style and Stylistics – An analytical Bibliography, 1967; M. Riffaterre, Essais de stylistique structurale, 1971; M. Halle, “On Meter and Prosody”, in Progress in linguistic (ed. por M. Bierwisch e K. E. Heidolph), Hale, 1971; M. Steinanmann, New Rhetorics, 1967; R. Jakobson, Poética em Ação, 1990; S. J. Schmidt, Text, Bedeutung, Ästhetik, 1970; S. L. Rivarola, Teoría Literaria,. Una propuesta, 1986; T. Todorov, Poética da Prosa, 1979; W. C. Booth, The Rhetoric of Fiction, 1961; W. Kayser, Fundamentos da interpretação e da análise literária, 1948.