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Expressão que aparece frequentemente na discussão hermenêutica actual, quer no âmbito filosófico quer no âmbito teológico. Refere a lógica interna da compreensão hermenêutica, isto é, a regra segundo a qual é necessário compreender o todo de um texto a partir das suas partes e estas a partir do todo. De acordo com H.-G. Gadamer, esta é uma regra cuja origem remonta à antiga retórica e que penetrou na hermenêutica moderna através da problemática protestante das condições de legibilidade e inteligibilidade do texto bíblico. A esta ideia de círculo hermenêutico subjaz, de facto, a apropriação hermenêutica moderna da retórica clássica e com ela um pressuposto que devemos caracterizar do seguinte modo: compreender um texto é, antes de mais nada, poder ser por ele interpelado, de tal modo que uma antecipação de sentido conduz sempre a nossa compreensão. Interpretar não é partir de um grau zero, mas, pelo contrário, de uma pré-compreensão que envolve a nossa própria relação com o todo do texto, embora apenas se torne compreensão explícita quando, por sua vez, as partes que se definem a partir do todo, definem este mesmo todo.

O processo de compreensão distingue-se de outros processos intelectivos, nomeadamente do explicativo, porque parte de um efeito da palavra (narração), procede segundo um movimento circular, aquele que vai da pré-compreensão do todo à compreensão das partes e da compreensão destas até ao sentido do todo .A compreensão hermenêutica alcança a sua justeza quando o seu primeiro critério é a concordância de todos os detalhes com o todo e isto significa que a falta de congruência acarreta necessariamente o fracasso da compreensão.

Devolver ao texto o acento justo sempre foi a missão da hermenêutica, que nunca pretendeu confundir a sua tarefa com a de uma pura detecção lógico-técnica do sentido, prescindindo de toda a verdade do dito. Daí todo o seu esforço em alargar, segundo o modelo de círculos concêntricos, a unidade do sentido compreendido, num vaivém contínuo do todo à parte e da parte ao todo, isto é, rectificando sempre que é necessário a expectativa com que começa. O círculo hermenêutico distingue-se, assim, pela sua origem retórica do círculo vicioso em sentido lógico.

Esta ideia de círculo aparece, pela primeira vez, no contexto filosófico da hermenêutica com F. Schleiermacher (1769-1834), que o recebe de F. Ast, e ao qual dá uma orientação subjectivista que vai marcar a própria hermenêutica de W. Dilthey. Schleiermacher, pensador romântico e fundador da hermenêutica filosófica, introduz algo de novo no âmbito da tradição hermenêutica – uma ruptura histórica de âmbito universal – já que ao contrário da primeira fase, não filosófica, da hermenêutica (cf. hermenêutica) não admite a recepção da tradição como base sólida de toda a necessidade de interpretação. O fio condutor desta será doravante um outro: o pensamento singular de quem se exprime através de uma língua comum. Neste novo contexto, marcadamente romântico, o círculo da parte e do todo adquire toda uma dupla vertente: subjectiva e objectiva. Sendo o texto o resultado da apropriação de uma língua comum e da expressão de um pensamento singular, cada palavra pertence, é claro, ao conjunto da frase, cada texto ao conjunto da obra do respectivo escritor e esta, por sua vez, ao conjunto do género literário ou da literatura correspondente. Mas, por outro lado, enquanto manifestação de um momento criativo, o texto pertence ao conjunto da vida anímica do autor. Só esta totalidade psíquica permite realizar plenamente a compreensão.

Neste mesmo sentido, Dilthey falará de “estrutura” e de “convergência segundo um ponto central”, no qual a compreensão do todo encontra o seu real fundamento. Institui-se, assim, a ideia da reconstrução da intenção mental como verdadeiro critério hermenêutico.

Será com M. Heidegger que a problemática hermenêutica do círculo da compreensão adquirirá todo um novo e importante significado, aquele que ainda hoje lhe damos.

Em Ser e Tempo, o autor retoma a temática do círculo hermenêutico reconhecendo expressamente nela não só a lei fundamental da compreensão hermenêutica, como a estrutura básica de toda a possibilidade humana de intelecção. Quer isto dizer que, enquanto a teoria hermenêutica do séc. XIX detectava no círculo a estrutura da compreensão histórica e literária, concebendo-a sempre no quadro da relação formal entre a parte e o todo do texto e o seu reflexo subjectivo (a antecipação intuitiva do todo a que se segue a explicitação do detalhe), para Heidegger a estrutura circular da compreensão hermenêutica não pode, de maneira nenhuma, desembocar num acto puramente psicológico ou adivinhatório, que permita um acesso directo ao autor e a partir do qual se atinja uma plena compreensão dos textos. Pelo contrário, o que agora acontece é o seguinte: toda a compreensão humana está determinada, de um modo permanente, pelo movimento de antecipação próprio do ser marcado por uma pré-compreensão. O círculo hermenêutico corresponde à estrutura existencial do existir humano no mundo, que é um ser simultaneamente encarnado, finito e inteligente, isto é, sempre já marcado por uma relação ao sentido.

Para Heidegger, e aqui reside a sua novidade, o círculo não descreve apenas a estrutura metodológica da compreensão hermenêutica, mas, pelo contrário, a própria natureza da inteligibilidade humana, isto é, o que sempre acontece quando o homem – já não sujeito omnipotente mas ser finito e histórico – compreende. E o que é que isto significa? Significa o seguinte: porque a existência humana é inteligente, uma compreensão originária acompanha-a sempre em toda e qualquer compreensão particular que realize. É esta a sua condição fáctica inultrapassável. E isto implica que uma tal compreensão – a estrutura ontológica básica do acto humano de ser – precede a própria dualidade metodológica clássica da compreensão dos textos e da explicação da natureza, sendo a própria condição de possibilidade de toda a interpretação.

Neste contexto, claramente não metodológico, aquele que quer compreender um texto antecipa sempre um esboço do conjunto, logo que lhe aparece um primeiro sentido no texto. A sua compreensão consiste no próprio aperfeiçoamento deste projecto prévio, sempre falível – porque finito – e sujeito a revisão por um ulterior aprofundamento do sentido. Interpretar é, assim, partir sempre de conceitos prévios que vão sendo substituídos por outros mais adequados. Heidegger sabe que, devido à sua finitude, quem tenta compreender expõe-se sempre ao erro das opiniões prévias que não se confirmam nas coisas. Logo, que a compreensão apenas se realiza, verdadeiramente, quando percebe que a sua primeira grande tarefa é proteger-se da arbitrariedade das opiniões particulares e dos hábitos de pensamento que passam despercebidos, em ordem a poder dirigir o olhar para as coisas mesmas. Uma consciência hermeneuticamente formada não pode entregar-se, de facto, desde o início, ao acaso das suas próprias opiniões prévias sobre o assunto. Deve, pelo contrário, estar disposta a que o texto lhe diga algo de novo. Mas esta alteridade só pode surgir quando ela própria põe em causa os pressupostos do intérprete, fazendo-os entrar em jogo. São, de facto, os pressupostos não percebidos aqueles que nos tornam surdos à novidade do texto.

Desenvolvendo esta nova caracterização ontológica do sentido do círculo hermenêutico, H.-G. Gadamer, discípulo de Heidegger e autor da conhecida obra Verdade e Método, vai ainda mais longe e caracteriza a pressuposição de sentido que acompanha toda a compreensão como “antecipação da perfeição”. É que, segundo o autor, o homem só compreende o que constitui uma unidade acabada de sentido. Partimos deste pressuposto da perfeição sempre que lemos um texto. De outro modo nem sequer o líamos. E só quando este pressuposto acaba por não se sustentar no decurso da leitura, quando o texto não é compreensível, é que o criticamos, duvidando da sua transmissão e procurando refazer o sentido do texto.

Para o autor, isto significa fundamentalmente que o processo de compreensão não se reduz a uma misteriosa comunhão de almas mas, pelo contrário, é uma participação num sentido comunitário (o que hoje ainda me interpela), que o próprio presente ajuda a reconfigurar de um modo novo, segundo um processo histórico de contínua formação. A antecipação da perfeição, que guia a nossa compreensão, não é também neste caso apenas uma expectativa formal – que pressuponha ser inerente ao texto uma unidade de sentido, que orienta a compreensão do leitor – mas está fundamentalmente determinada por expectativas de conteúdo. Pressupõe-se, antes de mais o seguinte: o texto fala verdade, pode dizer-nos algo de válido, entende mais do assunto que nos levou à leitura, do que nós próprios. O que significa, em última análise, que só quem tem uma pré-compreensão do assunto tratado no texto efectua, de facto, a sua leitura. Só quem confia no valor dos textos, porque tem expectativas marcadas pela abertura à alteridade (e não apenas pela imanência estreita da sua perspectiva singular), pode ser interpelado pela palavra e interpretar. A pré- compreensão, que deriva do ter que ver com o assunto abordado pelo texto, é assim a primeira de todas as condições hermenêuticas.

bibliografia

H.-G. Gadamar: Gesammelte Werke I. Hermeneutik I . Wahrheit und Methode_I. Grundzuege einer philosophischen Hermeneutik (Tuebingen, 1986); H-G. Gadamer: Gesammelte Werke 2. Hermeneutik II. Wahrheit und Methode- 2. Ergaenzungen. Register (Tuebingen, 1986); M. Heidegger: Sein und Zeit (Tuebingen,1979).