Select Page
A B C D É F G H Í J K L M N O P Q R S T Ü V W Z

Género de discurso cujo aparecimento na cultura ocidental tem como marco consagrado a publicação, em 1580, do livro do pensamento francês Michel de Montaigne (1533-1592), justamente intitulado Ensaios. Nele foram reunidos textos quase sempre bastante curtos e fragmentários, aparentemente desconectados, sobre temas os mais díspares, como, por exemplo, a tristeza, a desigualdade entre os homens, os canibais, a educação das crianças ou os cavalos de guerra. Justificando essa disparidade e servindo de fio condutor do livro, está uma curiosidade assumidamente despretensiosa, que privilegia a inquietude sobre a certeza, o problema sobre o sistema, a sugestão e a expressividade sobre a clareza assertiva. Através desse movimento discursivo, Montaigne encena o próprio movimento do pensamento a se constituir, de modo ao mesmo tempo precário e complexo, a partir de experiências individuais de ordem existencial e intelectual, anteriormente a qualquer formalização teórica e disciplinar. “Eu sei por experiência”, nos esclarece ele, além de alertar sobre a pouca importância de seus escritos, que versariam apenas sobre ele mesmo e seus interesses, sem nenhuma aspiração ao universal e à posteridade.

Tal despretensão decorre, na verdade, de uma identificação com o cepticismo que o leva a reconhecer o carácter relativo e provisório de todo o conhecimento e a recusar toda forma de ortodoxia de definição unívoca e atemporal da verdade, seja através da religião, essa postulação do cepticismo montaigneano, intrinsecamente associada a sua opção discursiva, foi quase sempre menosprezada, ao passo que se legitimou uma prática filosófica e cientifica pautada justamente por aquilo que ela recusava. E o ensaio foi relegado à condição de género menor, incapaz de contribuir para a sistematização de um saber verdadeiro; ou se viu esvaziado de sua forma e função específicas, passando a ser confundido com qualquer texto de menor extensão e alcance que os tratados, mesmo que vazado como estes numa linguagem assertiva e generalizante, norteada pela erudição metafísica da filosofia clássica ou pela objectividade formal e técnica do cientificismo.

Hoje em dia, no bojo de todo um processo de questionamento da filosofia e da ciência institucionalizadas, o valor ético e político da despretensão céptica vem sendo reactivado. E o ensaio tem intensificada tanto sua produção quanto a própria tematização de seu significado. Nele passa a ser ressaltada a atitude de suspeita face aos saberes constituídos e a consequente opção por uma lógica da experimentação que permite às ideias emergirem sem acabamento absoluto. Nesse sentido, ele representaria um espaço de resistência às práticas de homogeneização que eliminam ou domesticam conflitos e contradições – práticas essas cuja presença dominante pode ser percebida em instâncias as mais diversas da vida cultural, seja nos discursos uniformemente informativos da comunicação de massa, seja nos discursos académicos submetidos a definições disciplinares e teóricas apriorísticas.

Tal função de resistência tem como um de seus fundamentos básicos a consciência da linguagem, o reconhecimento da espessura das palavras, do carácter violento e arbitrário da relação que elas estabelecem com a realidade e com os objectos de conhecimento. Daí decorre, por um lado, que se torna implausível crença na imediatez e na neutralidade dos conceitos e em sua capacidade de referir-se objectivamente a uma verdade original e universal, infensa a toda contaminação humana e histórica. E, por outro lado, que o trabalho intelectual passa a ser compreendido como efeito de um esforço de escritura, atento às diferentes possibilidades de forma e estilo, às nuanças significativas motivadas por cada uma, tornando mais ágil, flexível e problematizante o uso dos conceitos. Por esse viés, o ensaio se mostra um género impuro, que se dedica à reflexão crítica mas ao mesmo tempo compartilha com a arte da possibilidade autonomia estética. Considerado literário, muitas vezes comparado à poesia, ele permitiria, como ela, a aventura lúdica do espírito, fazendo convergir a racionalidade e a fantasia, o método e a imaginação.

Não se obrigando à coerência sistemática, o discurso ensaístico sabe recorrer à imagem e à metáfora, tira partido do movimento digressivo, percorre diferentes campos de saber, fugindo à compartimentalização e à especialização disciplinar. Sem abrir mão do trabalho com o conceito – o que o distinguir, afinal, da poesia e da arte em geral – ele vai reconhecer sua mediatez, sua condição de linguagem e vai se propor a fazer dele um uso imediato. Em outras palavras, vai se apropriar de conceitos originários de sistemas filosóficos e científicos os mais diversos e, libertando-os do peso dessa origem, da pureza e transcendência que ela lhes impunha, vai vê-los funcionar e significar a partir de sua inserção numa forma discursiva nova, de sua colaboração numa experiência intelectual específica e provisória. Desse modo, foge aos padrões frios da descrição analítica e da erudição metafísica, para se definir como interpretação.

Enquanto interpretação, a experiência intelectual vivida no ensaio tem duas fortes marcas, relacionadas entre si e intrinsecamente dependentes da forma imprimida à sua linguagem. Em primeiro lugar, ela não só supõe como ressalta a importância da subjectividade, da perspectiva ao mesmo tempo individual e histórica a partir da qual determinados temas ou objectos serão seleccionados e submetidos a uma avaliação. Fundada nessa premissa, ela se organiza de modo a, evitando todo impressionismo solipsista, dialogar com outras experiências com as quais compartilha os mesmos objectos de interessa, os métodos e conceitos que retoma e actualiza, o próprio contexto sócio-cultural que lhe dá sentido. Conforme as palavras de José Clemente, em El ensaio, o ensaio é uma “propedêutica cordial”, polémica por excelência: sua natureza supõe o diálogo, sua escritura supõe leitura. Não só porque todo bom ensaísta deve ser um bom leitor de experiências alheias, mas também porque sua escritura em aberto, analítica e simultaneamente avaliativa, preocupada em identificar e problematizar, necessita do leitor que funcione como término das questões propostas e ao mesmo tempo como início de um seu possível outro desdobramento.

A cordialidade, a abertura, a polémica são marcas da escritura ensaística que revelam o tipo de força deflagrada por sua despretensão – despretensão manifestada também sem sua relação com aquilo que se propõe conhecer. de facto, ela tem como sua segunda premissa a impotência para produzir ou para descobrir algo absolutamente original, como propõem a arte e a ciência. Pois interpretar significa aí apenas reordenar o já-existente, hiper-interpretar o que já foi objecto de interpretações anteriores, iluminado, segundo Theodor Adorno, a pletora de significações encasulada em cada fenómeno cultural. Face a ela, cabe reconhecer a impossibilidade de um saber pleno resignar-se ao parcial e ao fragmentado que, paradoxalmente, revela, em sua plenitude, o insólito das coisas, a fluente realidade da vida em seu carácter humano e histórico, libertada da imobilidade que lhe impõem as ideias de origem, natureza e verdade.

bibliografia

B. Berger: Der Essay (1964); Carlos Burlama Köpke: Do Ensaio e de suas Várias Direcções (1964); M. Butor: Essais sur les essais (1968); Paul Oliver: Teach Yourself Writing Essays and Reports (1996); Reda Bensmaia: The Barthes Effect: The Essay As Reflective Text (1987); Robert Scholes e Carl H. Klaus: Elements of the Essay (1969); Silviano Santiago: “Análise e interpretação”, in Uma Literatura nos Trópicos (1978); Sílvio Lima: Ensaio sobre a Natureza do Ensaio (1964); Theoder Adorno: “El ensayo como forma”, in Notas de Literatura (1962).